21 Março 2023
"O movimento de Jesus insere-se numa larga história de luta contra a discriminação na hora da partilha de alimentos, que ulteriormente foi espiritualizada pelos teólogos. Mas o sentido original permanece: a definitiva superação da fome endêmica depende da união das pessoas, da quebra das divisões entre pessoas e agrupamentos, sejam quais forem as confissões religiosas ou as bases culturais. Todos unidos contra um inimigo comum: a fome", escreve Eduardo Hoornaert, historiador, professor emérito e membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA).
Um comentário do tema da Campanha da Fraternidade 2023, da Igreja Católica: Fraternidade e Fome. Uma meditação sobre a postura de Jesus diante da fome.
Por que Jesus, por volta de trinta anos de vida, abandona a família e a aldeia para andar pela Galileia? Há muitas respostas a essa pergunta, mas uma me convence particularmente.
Penso que Jesus ficou inconformado com a fome que ele vê por toda parte. Uma fome endêmica, não casual. Fome no sentido de não saber se vai conseguir se alimentar adiante, se alimentar sempre precariamente. Jesus quer, num primeiro impulso, remediar ao que lhe deve ter parecido uma situação insustentável. A primeira questão, a mais urgente, é conseguir saciar a fome endêmica do povo. Não a fome casual de quem está fora de casa e não tem onde arranjar comida, mas a fome dos que passam necessidade a vida toda. A tarefa é urgente. A fome não conhece espera. A religião dos famintos tem como sinal primeiro e principal a mesa farta, o pão, o vinho, a ‘eucaristia’ (agradecimento) na hora em que pão e vinho aparecem na mesa. A fome do povo constitui a primeira urgência, a mais imediata, que leva Jesus a agir. Eis o contexto em que ele sai do anonimato e se pronuncia diante da sociedade. Jesus se preocupa em dar a comer ao povo, a comida simples de todos os dias: pão e peixe. Ele constata a alegria que toma conta das pessoas quando comida aparece na mesa. Os judeus gritavam: ‘eucaristia’.
Jesus provoca ‘eucaristia’, ou seja, entusiasmo na hora em que a comida aparece na mesa. A evocação da eucaristia apela para um esclarecimento. As igrejas hoje conservam uma prática eucarística bastante cristalizada, que apenas evoca de longe o vivido nos inícios. Em sua origem evangélica, a eucaristia constitui um momento privilegiado de comunicação. As pessoas encontram-se nos bairros populares das cidades, nos sítios onde vivem os camponeses, no cais do porto, no mercado, nas ruas e praças, mas principalmente no interior dos pátios habitacionais, onde diversas famílias moram juntas atrás de um mesmo portão de entrada. Na hora da ceia, os cristãos atualizam seus conhecimentos, ouvem falar de outros grupos, comentam os problemas, comem e bebem juntos, cantam hinos, ritualizam um encontro de fraternidade ao comer em comum, mas não chegam a cristalizá-lo em formas fixas. A eucaristia, nas origens evangélicas, não funciona de modo sistematizado. A comunicação permanece espontânea, cheia de vida: Damos graças a Deus, porque nossa casa dispõe de pão para todos e ainda sobra para uma eventual visita. Aqui não há famintos. Nossa solidariedade elimina a fome. Cresce uma solidariedade bem concreta: na comunhão do pão, do peixe e do vinho, e em certos casos de bens da vida em geral. Um sonho longamente acalentado por Israel: Não haverá pobres entre vocês (Deuteronômio 15, 4). Eis o reino de Deus.
Tudo indica que os impostos são, na época do surgimento do movimento de Jesus, um problema geral para as classes trabalhadoras em todo o Oriente Médio. Diante dessa situação, Jesus recomenda vivamente a comensalidade. Abrir as portas na hora da refeição, deixar entrar quem está na rua. Para os ricos, é difícil. É dentro desse contexto que aparece a famosa frase: É mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus. Ou seja, é quase impossível o rico participar do projeto, como comprova o episódio do jovem rico.
Evocações de mesa farta e de banquete repetem-se ao longo das narrativas evangélicas: elas evocam o cúmulo da felicidade. A felicidade suprema consiste em nunca mais ter fome, nunca mais ter sede (Apoc. 7, 16). Morrer de fome á a última desgraça (Apoc. 6,8). A expressão ‘pão e peixe’ volta o tempo todo. É que a atenção do pobre sempre está voltada para a mesa e o que nela eventualmente se encontra: pão e peixe. Quem passa fome só vê diante de si a miragem da comida farta. Foi Gandhi que disse: Para o faminto, Deus tem figura de pão. Eis o grande sonho dos pobres de todos os tempos e quadrantes do mundo.
Jesus, que frequenta os ambientes do trabalho (Mt 13, 55), tem a comensalidade como primeiro projeto. Daí a orientação dada aos apóstolos: a fraternidade não pode limitar-se a palavras generosas, tem que ter dimensões concretas (Mc 10, 21; Mt 19, 16-30). O que enraíza as narrativas evangélicas no chão da realidade vivida é essa íntima relação com o mundo dos famintos que aparece a cada momento. Jesus lida diretamente com famintos e dirige sua palavra e sua ação em benefício destes. Escreve José Comblin: O evangelho é uma palavra dirigida aos famintos (Comblin, J., A Fome e a Bíblia, em: Estudos Bíblicos 46, Vozes, Petrópolis, 1995, p. 30).
Possuímos um relato revelador da fome dos camponeses na Galileia: a multiplicação dos pães. Três evangelistas o mencionam: Mt 14, 13-21; Mc 6, 31-44 (duas multiplicações); Jo 6, 1-15. Precisa raspar o verniz dos séculos para ver aparecer a narrativa em suas cores originais. O texto foi tão manejado, chegou a nós com tantos exageros, acréscimos e comentários, que se torna quase impossível o reconhecimento do que realmente estava em causa no momento em que foi redigido (Duquesne, J., Jesus, Geração Editorial, São Paulo, 1995, p. 110).
Um caso de fome ocasional. Mas Mt 14, 6, que a Campanha da Fraternidade 2023 resgata, corrige isso. O que importa é a lição que decorre da narrativa da multiplicação dos pães: é possível solucionar a questão da fome endêmica, caso todos colaborem. Trata-se de partilha, de comensalidade. Eis o Reino de Deus em fatos concretos.
Se os quatro evangelistas falam com insistência dessa multiplicação e mostram como foi grande o entusiasmo na hora, e se eles contam como os ajudantes recolhem os restos de pão com extremo cuidado para que nada se perca, é que deve ter havido algo mais que um milagre, num momento de necessidade passageira. Jesus deve ter revelado um plano geral, no sentido de vencer o flagelo da fome. Um plano de colaboração intensa. A imagem de doze cestos com os pedaços de cinco pães de cevada é absolutamente irresistível. As pessoas exclamam: Esse é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo: um homem que faz com que se multiplique o pão na boca do povo. Jesus é profeta pois ele nos multiplica o pão. Eis a reação das pessoas. Mas o que Jesus planeja? A comensalidade. Eis sua proposta.
Isso funcionou, na história do cristianismo? Na sua Primeira Carta aos Coríntios (11, 17-34), Paulo mostra-se insatisfeito com o modo em que os cristãos a praticam (v. 24). O pessoal traz alimentos de casa (Lc 24, 30.35; At 20, 7; Lc 22, 19 etc.), e cada um se apressa a comer sua própria ceia. Enquanto um passa fome, o outro fica embriagado (v. 21). Paulo reclama: Vocês não têm casas para comer e beber? e se alguém tem fome, coma em sua casa (ibidem). Onde fica a comensalidade?
Como se vê, vinte anos após a morte de Jesus, a prática concreta da comensalidade já vai longe do projeto idealizado por ele. A superação da fome endêmica é o reino de Deus. Releitura do evangelho todo. Superar a insegurança alimentar (não saber se haverá uma próxima alimentação).
Termino: o movimento de Jesus insere-se numa larga história de luta contra a discriminação na hora da partilha de alimentos, que ulteriormente foi espiritualizada pelos teólogos. Mas o sentido original permanece: a definitiva superação da fome endêmica depende da união das pessoas, da quebra das divisões entre pessoas e agrupamentos, sejam quais forem as confissões religiosas ou as bases culturais. Todos unidos contra um inimigo comum: a fome. Mt 14, 16. ‘Vocês têm de providenciar comida para o povo’.
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Jesus e a fome. Artigo de Eduardo Hoornaert - Instituto Humanitas Unisinos - IHU