20 Março 2023
O renomado antropólogo argentino Néstor García Canclini, radicado no México, referência obrigatória dos estudos culturais na América Latina, levanta o véu sobre algumas das questões que surgem com as reconfigurações políticas e sociais, as integrações regionais, as migrações e de como as economias afetam os processos sociais e culturais e vice-versa.
A entrevista é de Jorge Fonteveccia, publicada por Perfil, 03-03-2023. A tradução é do Cepat.
Podemos pensar em identidades regionais, como uma identidade europeia, uma identidade latino-americana, uma identidade africana? É possível alcançar essa coerência no continente latino-americano?
Talvez a primeira coisa a dizer seja que nos últimos anos, ou décadas, houve uma passagem das teorias identitárias para análises de outra natureza, com outros conceitos. As identidades são muito importantes, luta-se e morre-se para defendê-las, mas temos de resituá-las um pouco nas condições. Por exemplo, as identidades têm ingredientes-chave como a língua, e outros, de integração da economia e das políticas, sem os quais não há como exercê-las.
Um exemplo seria o da cidadania europeia, talvez o sistema regional, político e econômico mais integrado e que depende em grande parte das articulações culturais. Eles têm um hino, uma bandeira, uma cidadania compartilhada, a cidadania europeia que aparece nos passaportes ao cruzar as fronteiras internas da região.
E como surgiu a União Europeia? Com 12 países que a integravam, falando 11 línguas; isso, claro, cria uma complexidade nos intercâmbios. Cada presidente, cada deputado, nos organismos legislativos regionais, fala a sua língua. Não temos algo assim na América Latina. Os organismos realmente de governabilidade ou de governança regional... nós temos vários organismos que foram criados em diferentes ocasiões.
Alguns que compartilham a integração com os Estados Unidos, como a OEA, outras como a Segib, a Secretaria-Geral de Governos Ibero-americanos, onde entram a Espanha e Portugal, mas não os Estados Unidos e o Canadá. Então, penso que esse conjunto mostra a complexidade, à medida que passamos da simples identidade às formas práticas institucionais de articulá-la.
E uma coisa que eu gostaria de destacar aqui, no que diz respeito às identidades, é a importância das línguas. Na América Latina, nos comunicamos principalmente em espanhol e português, bastante em inglês, cada vez mais. Mas existem mais de quatrocentas línguas, que correspondem aos povos indígenas ou originários, e a isso devemos acrescentar a complexidade dos 150 milhões de afrodescendentes, que são mais numerosos que os povos originários. A pergunta a que isso nos leva: o que integramos e o que deixamos de fora quando homogeneizamos?
E o que integramos e o que deixamos de fora?
Nós integramos os setores majoritários que falam espanhol e português, as elites que falam inglês, e então há grandes dificuldades, como vimos nos noticiários nos últimos anos, devido a insurreições indígenas ou dos povos originários, e até afro-americanos. No caso do Brasil, isso é muito notório, cuja representatividade é baixíssima ou quase inexistente em organismos governamentais nacionais e internacionais. Isso também corresponde ao seu lugar subordinado na economia ou nas diferentes economias, que às vezes se desdobram em economias regionais, em reivindicações de autonomia e de autogestão.
Segundo as estatísticas econômicas, a América Latina é uma das regiões mais estagnadas do mundo, com menos crescimento, com democracias instáveis, países que não conseguem crescer, muitas vezes esbanjando todas as suas capacidades criativas e naturais. Nesta série de entrevistas, a economista Mariana Mazzucato destacou as consequências dessa estagnação, principalmente em décadas de aplicação das economias neoliberais. Você compartilha dessa visão ou acha que ela pode ser atribuída a outras questões?
Sim, conheço o pensamento de Mazzucato. O atual processo de crítica à economia neoliberal parece-me desafiador e bem elaborado, cujos múltiplos fracassos foram demonstrados em todos os países e fora da região latino-americana. Mas me parece que também temos que considerar aquilo em que muitos de nós nos especializamos, especialmente a antropologia, a sociologia da cultura e da comunicação, que são as integrações culturais com os avanços econômicos estatísticos, por exemplo, a criação de um espaço cultural latino-americano.
Esse é um deslocamento que se deu a partir das reflexões identitárias sobre um possível ser latino-americano, rumo à elaboração, desde os anos 1990, de estudos muito consistentes em que convencionamos falar de um espaço cultural latino-americano. O que é esse espaço? Que base econômica e política ele tem? Pouquíssimas, menos do que na União Europeia.
Mas foi possível, por exemplo, criar programas como o Ibermedia, que multiplicou a produção de filmes de forma surpreendente. Antes da criação do Ibermedia, em 15 anos foram produzidos cerca de 56 filmes em coprodução entre a Espanha e os países latino-americanos. A partir do aporte de fundos, principalmente espanhóis, ao Ibermedia, em apenas sete anos foi possível ultrapassar os anos 90 do século passado, elevando essa quantidade para trezentos filmes. Agora são mais de mil títulos feitos em coprodução da Espanha com diversos países da América Latina, alguns [países] que quase não tinham produção cinematográfica, ou dois filmes por ano.
Então, há sinais que levaram a multiplicar esses “iber”, há ibermuseus, iberpalcos que incluem teatro e dança, iberlivros, etc.; muitos programas de cooperação que caíram um pouco devido à diminuição do aporte espanhol, especialmente desde a época de Aznar, depois as crises recorrentes nos países latino-americanos, que chegaram a não pagar contribuições, alguns em determinados anos. De qualquer forma, esse tem sido um programa bem-sucedido e continua a dar resultados.
Em outros aspectos, poderia se perguntar o que está acontecendo com o público, o que está acontecendo, mesmo antes da pandemia, com a dificuldade de assistir a shows, grandes espetáculos, ou artistas de grande qualidade internacional, que ficam restritos às capitais, a algumas poucas cidades a mais, e que nessas turnês não podem incluir, a menos que sejam transmitidos em formato digital, audiovisual, públicos maiores. Isso também acontece na esfera cultural e em outros espaços onde a participação de latino-americanos em órgãos de governo regional é muito pequena.
Às vezes nos sentimos pouco interessados nos resultados, porque sabemos que são principalmente declarações que não terão muito impacto. Em suma, aí uma das perguntas que permanecem no ar é: o que aconteceu com a modernidade, o que aconteceu com o capitalismo, o que está acontecendo agora na América Latina?
Você mencionou esse programa de cooperação com a Espanha: existe uma Ibero-América, uma América hispano-portuguesa, diferente de uma América do Norte anglo-saxônica? As raízes culturais dos colonizadores marcam uma dificuldade de integrar toda a América em uma só?
Sim e não. Por um lado, a colonização facilita a comunicação em uma ou duas línguas, basicamente em espanhol e em algumas ocasiões integrando o português. Mais recentemente, a hegemonia estadunidense ou anglo-saxônica deu o inglês como língua comum e compartilhada. Sabemos que em muitos países, como na Argentina e no Uruguai, em outra época, o francês teve uma influência muito maior na formação da minha geração e da geração seguinte, depois o inglês se tornou entre as elites, inclusive dos jovens, nos setores mais integrados na economia transnacional, a língua da comunicação.
Mas a incorporação das línguas indígenas tornou-se muito mais difícil. Elas às vezes aparecem em declarações que são lidas e traduzidas para os dois idiomas. Há algumas situações, como a chilena dos últimos anos, que têm mostrado esse reconhecimento de outras línguas, diferentes. Mas isso também pode ser visto no baixo reconhecimento do artesanato, em contraste com as artes plásticas que são expostas na maioria dos museus, bem como em outras diferenças e desigualdades, como as de gênero, o papel desempenhado pelas mulheres, para outros setores que aparecem pouco sub-representados nessas instituições criadas, como os museus ou as salas de concerto e de teatro, com base no modelo europeu. Isso não significa que não possam ser reaproveitados em função de outros programas culturais, como vem acontecendo.
O que acontece do ponto de vista antropológico com a imigração? Países como Equador, Honduras, México, Uruguai, Venezuela, possuem enormes contingentes migratórios, o mesmo acontece em alguns países do Caribe. Que efeito permanente produz esta contínua mobilidade pelo continente?
Nesses países temos 15%, 20% da população, em quase todos eles, que vive fora de seu território, que faz parte principalmente dos 60, 65 milhões de chamados “latinos” nos Estados Unidos, e também está em outros países latino-americanos como deslocados, emigrantes, exilados, migrantes econômicos. Sabemos que existe uma circulação internacional que é interessante, já que falamos de integração, ver isso não só como uma tragédia, o que é, algo cada vez mais difícil de assumir devido aos volumes de migração, mas também como um fator de integração.
De repente temos, com os mais de sete milhões de venezuelanos que deixaram seu país nos últimos dez anos, uma presença maior das culturas venezuelanas do que tínhamos antes, quando o que mais circulava era a música ou certa literatura daquele país. E podemos repetir isso com as volumosas migrações de mexicanos nos Estados Unidos, agora muito mais centroamericanos.
Na fronteira do México com os Estados Unidos, onde pude fazer trabalho de campo durante a década de 1990, agora me surpreendo quando visito Tijuana, ao encontrar acampamentos não apenas de mexicanos de todas as regiões do país, mas também de centroamericanos muito diversos, haitianos, russos, ucranianos, cubanos; em suma, uma constelação de acampamentos, de convivências interculturais, que mostram a complexidade dessa massiva migração multiplicada.
Em grande medida, dizíamos, isso é um drama, uma tragédia, porque decorre de vários fatores. Um é esta reflexão, esta frase quase repetida com as mesmas palavras: “Este país não tem jeito. Vamo-nos daqui”. Isso continua acontecendo não apenas com os jovens, mas, como vimos recentemente na Argentina e foi documentado nos meios de comunicação, famílias de cinquenta anos que tinham casa, vendem o que tinham, seu carro e se mudam para a Espanha ou os Estados Unidos, com a sensação de inviabilidade de suas próprias sociedades.
Em muitos outros casos é mais dramático porque é o resultado de uma violência muito agressiva que leva à expulsão em massa, como está acontecendo, por exemplo, nos países centroamericanos. E em outros casos são estratégias migratórias, talvez seja o que mais se estudou, as famílias decidem que um ou dois membros, geralmente um ou dois dos cinco filhos, vão para os Estados Unidos para enviar remessas.
As remessas cresceram enormemente e se tornaram, por um lado, um fator estabilizador para os países. Boa parte da estabilidade da economia mexicana se deve ao fato de que nos últimos oito anos as remessas passaram de cerca de 25 bilhões de dólares para 58 bilhões de dólares em 2022. É uma renda muito mais significativa do que aquela produzida pelo petróleo, turismo e outras exportações. Esse dinheiro das remessas chega diretamente às famílias com poucas mediações bancárias, de modo que há uma importância positiva das migrações como fator chave para a sustentabilidade das economias, disse a mexicana, mas poderia dizer a salvadorenha, a peruana e muitas outras.
Cinquenta e oito bilhões de dólares em remessas para um país como o México, que é um país grande, mas não muito maior que a Argentina, equivalem a todas as exportações agroalimentares da Argentina, o que sugere que o México terá problemas com os anos, quando o vínculo entre netos e avós for menor do que entre pais e filhos. Ou seja, essas remessas são como exportações que o México deixará de receber dentro de vinte anos, por exemplo.
Sim, e há outros aspectos de perda que já notamos. Muitos dos migrantes para os Estados Unidos, do México, de países centroamericanos, da Colômbia, são altamente qualificados, têm ensino médio ou superior, às vezes doutorado, nos quais o país de origem investiu, e esse dinheiro faz parte do que se perde, do que emigra. Então não é muito racional o que está acontecendo do ponto de vista de nossos países, do pagamento de impostos, da sustentabilidade da educação.
E não é que isso seja ruim, porque muito mais dinheiro deveria ser dado para os fundos educacionais, para as universidades, para as escolas, mas é um descompasso entre o desenvolvimento educacional, que em alguns países como a Argentina é alto, competitivo internacionalmente, e o desenvolvimento econômico e social que não consegue aproveitar esses recursos internamente.
Aproveitando sua condição quase de mexicano-argentino, por estar no México há tantos anos e ter nascido na Argentina, que comparação podemos fazer entre a imigração de italianos, europeus em geral e de espanhóis durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, e essa imigração atual?
Existe um processo de investimento. Antes, os europeus vinham para a América, agora nós estamos saindo. Ou temos que sair, como eu tive que sair da Argentina e vir para o México. Retorno desde 1983 todos os anos, para realizar atividades acadêmicas ou de outro tipo. Participei de eventos, de programas, já trabalhei para a Argentina, com muito prazer; isso resolve muitas questões afetivas, mas há um processo de investimento. De repente aparecem alguns espanhóis, espanholas, alguns estadunidenses que querem morar em países latino-americanos, e há um fenômeno muito recente, digo isso de passagem, porque também pode ser visto na Argentina.
Existem certas zonas da Cidade do México onde com frequência se ouve falar inglês. Há piadas como esta de que alguém vai a um restaurante e há uma garçonete que só fala em inglês, porque há uma boa proporção de pessoas que, com o teletrabalho, preferem viver em Colonia, bairros como La Condesa, La Roma, na Cidade do México, trabalhar aqui, pagar menos aluguel. Embora os custos de alugar um apartamento tenham subido muito e tenham expulsado a população. Então há um dinamismo de ida e volta em que prevalece a saída dos latino-americanos, claro, e essa hemorragia de investimentos econômicos educacionais de que falamos antes.
Em uma entrevista publicada na revista Hypermediaciones em 2019, você dizia que estava trabalhando nas possibilidades futuras da democracia quando os cidadãos forem substituídos por algoritmos. Qual é a relação entre cidadania, algoritmos e democracia?
Teria que fazer uma pequena referência, que eu faço no livro Cidadãos substituídos por algoritmos (Edusp, 2021), que pode ser baixado gratuitamente da internet, que é a seguinte: a mudança inicial mais significativa ocorreu com a videopolítica desde os anos 1960. Poderíamos dizer que a política foi das praças para as telas. Ela nunca abandonou as praças e as ruas, mas o protagonismo da relação dos políticos com os cidadãos foi mediado, à distância.
E embora nos estudos de comunicação daqueles tempos, décadas de 1960, 1970 e ainda hoje, a discussão sobre a interatividade do público seja fundamental, não é passivo com o que lhe é oferecido pelas telas, mesmo no caso da tela mais autoritária da televisão. Essa interação mudou enormemente com as plataformas e redes, porque há uma desigualdade radical de dados acumulados e de articulação algorítmica desses dados com os quais podemos gerir os cidadãos. Há uma nova lacuna.
Pouco se tem falado sobre as lacunas entre quem usava um tipo de televisão ou outro, quem tinha apenas a televisão aberta ou aquela que oferece um repertório pago muito mais amplo. Mas talvez a lacuna mais significativa agora seja aquela entre as promessas de informação e comunicação e a perda de agência dos cidadãos e das comunidades. Poderíamos dizer que tanto a televisão como as redes, mas sobretudo as redes, diante de um julgamento, por exemplo, de um político ou de um criminoso, julgam antes que os juízes. Portanto, há um protagonismo dos atores da comunicação que não existia no passado e que é incentivado.
Até a primeira década deste século pensávamos a comunicação digital desse momento, até 2006 não existiam redes, havia o correio eletrônico, outras formas de ter acesso à informação, consultando-a na tela, com a consequente queda na venda de jornais impressos, mas nos informávamos de uma forma mais diversificada, mais livre, digamos, um pouco entre aspas. Essa interatividade ficou altamente assimétrica desde a segunda década do século XXI, quando as redes, as plataformas sobretudo, os chamados servidores, se apropriam dos nossos dados e os tratam além do que poderiam fazer as corporações ou empresas tradicionais.
Falando de cidadãos substituídos por algoritmos, você disse que em alguns países como a Argentina a fragilidade dos partidos políticos os tornou dependentes dos diferentes dispositivos de mídia. Gostaria de ouvir sua opinião sobre qual é o papel da mídia na política hoje.
Suponho que quando dizemos meios de comunicação estamos nos referindo sobretudo aos meios de comunicação da segunda geração, como a televisão e/ou alguns anteriores, como as editoras. Pelos números, pelas referências que se tem, parece que a principal tarefa desses meios é sobreviver. Como continuar fazendo televisão, conseguir publicidade quando a publicidade se desloca para as plataformas, como trabalhar com os enormes recursos da televisão, recursos econômicos, audiovisuais e de comunicação, quando em muitos países grande parte dos jovens já não assiste mais televisão, ou liga o aparelho que tem no quarto para assistir plataformas, filmes, ou os assistem no celular, em qualquer lugar, não precisa estar em casa.
É difícil decidir como se comportar mesmo quando os estudos sobre estas questões têm aumentado, mas me parece que os estudos avançaram mais na descoberta dos novos comportamentos dos públicos, das audiências. O que aconteceu, poderíamos dizer, ao passar do consumo ao acesso. Usávamos o consumo para nos referir a ir a uma livraria, a um teatro e ver uma peça, ou ao cinema, a lugares onde a cultura era oferecida situada e agora o acesso designa comportamentos, em parte deslocalizados, embora nos localizem.
Porque, quando o Google nos informa no final do mês, você realizou essas atividades, esteve em tais cidades e caminhou tantos quilômetros, mostra como eles nos observaram, mas estas atividades estão deslocalizadas para o sujeito que as faz, e que sente que pode começar a assistir a um filme enquanto está no transporte público e terminá-lo de assistir em casa ou na casa de um amigo, compartilhando, comentando.
São formas de acesso muito diferentes que não substituem, apesar do que se temia, o consumo clássico da oferta cultural situada, mas geram dinâmicas de outro tipo, como dizíamos, muito assimétricas naquilo que o consumidor pode escolher e modificar sem que se saiba e/ou com alguma privacidade. E o que as plataformas podem fazer para se adaptar rapidamente a essas mudanças de comportamento para que seus negócios não diminuam?
O que sabemos sobre isso hoje é muito mais do que sabíamos há dez anos. Porém, a minha impressão é que existem várias dificuldades. Na indústria editorial, antigas inércias das antigas editoras e da própria empresa estão mudando para se recompor a partir de novos modelos de negócios e formas de acesso aos bens, aos livros, às revistas. E na televisão, parece-me que talvez haja mais dinamismo, mas à custa de aliar-se a outros meios. Até vinte anos atrás era fácil fazer a distinção.
No curso de Comunicação havia disciplinas que eram estudos sobre a televisão, estudos sobre o mundo editorial, estudos sobre o rádio e teses que se especializavam em cada um destes meios de comunicação. Hoje é muito difícil fazer isso sem relacionar, como na realidade acontece, os diferentes meios que se articulam, a televisão tomando conteúdos da imprensa, por outro lado, das redes sociais, das plataformas digitais. Portanto, todas as telas estão interligadas e às vezes isso resulta na monopolização das telas por algumas poucas, cinco ou seis, grandes corporações globalizadas.
Você encontra algum denominador comum entre os eleitores brasileiros que votaram em Bolsonaro, os coletes amarelos na França, os decepcionados “waps” de Trump, os “huachicoleros” mexicanos [quadrilhas de criminosos que atacam e roubam combustíveis dos oleodutos]? Há algo que os torna semelhantes e os unifica?
Procuro ser cauteloso ao fazer essas comparações, pois há aspectos que nos são muito comuns, como a indignação, o mal-estar profundo, radical, com o sistema hegemônico francês. Por um lado, o sistema de partidos dos coletes amarelos ou os efeitos que o desenvolvimento capitalista neoliberal teve nos países latino-americanos, assim como nos europeus, africanos e asiáticos.
Mas esses aspectos aparentemente comuns começam a se desfazer quando se olha para o modo como as forças políticas tradicionais se comportam e reagem. O que ocorre, por exemplo, com os sindicatos – que são outra forma de representação clássica junto aos partidos, extremamente importantes em muitas sociedades de países europeus e latino-americanos –, é bem diferente.
Nos países europeus há um declínio de trinta anos na sindicalização, porque grande parte do trabalho é informal. Mas nos países da América Latina pode ser 60%, 70% do trabalho informal; portanto, não são sindicalizados. Podem pedir a um jovem que trabalhe 12 horas por dia por um salário de 300 dólares. Não há quem controle isso, nem mesmo nos países onde se diz que os direitos trabalhistas são um pouco mais protegidos.
Então têm histórias que ainda são fortes; na Europa tem um Estado de bem-estar muito rachado, mas tem peso. Na América Latina, tem sido muito difícil para nós construirmos um mínimo de Estado de bem-estar, e a chegada do neoliberalismo derrubou muitas dessas conquistas, retrocedemos em alguns aspectos para antes de 1900.
Como explica a transmutação das culturas operárias e de outras camadas populares, que outrora apoiaram os partidos progressistas e contribuíram para a construção desse Estado de bem-estar, e agora aprovam políticas econômicas que, digamos, os saqueiam?
É preciso ver país por país. Na Argentina, por exemplo, me parece que os sindicatos ainda são importantes, embora tenham perdido sua presença quantitativa no mundo devido à formalização do trabalho, mas têm uma tradição mais sustentada. Há países como o México, onde os sindicatos foram tradicionalmente cooptados pelo PRI, o partido hegemônico, único em muitas épocas, e agora estão muito fragilizados em uma reconfiguração na qual não puderam intervir para orientá-la, para modelar a perda de conquistas. E outros países onde nem sequer isso se tem, e depois amplos setores agrícolas.
A questão de gênero aqui é muito importante, porque há muitas conquistas que avançaram graças aos movimentos feministas, mas essas conquistas são muito menores do que na política ou na descriminalização do aborto ou ainda em outros direitos humanos básicos, na saúde – são muito menores que nos salários. Um número muito alto de mulheres está bem abaixo dos salários dos homens, e não há movimentos políticos ou econômicos que possam reverter esta tendência.
Parece-me que há aí um problema de representação generalizado: quem os representa e quem tem capacidade de ser confiável? Porque essa confiança se deslocou dos partidos, por vezes para o simples ceticismo, outras vezes para outras forças do movimento, como os movimentos feministas, os movimentos indígenas, os movimentos de direitos humanos, mas no conjunto esses movimentos têm dificuldades de se articular e conseguir mudanças efetivas na governabilidade ou na governança dos países.
Você falava sobre a capacidade de ser confiável. A que atribui a capacidade de acreditar de Javier Milei, que cresceu no ano passado, e se você encontra algum ponto de contato entre essa capacidade de acreditar em outros latino-americanos e norte-americanos, por exemplo o caso de Bolsonaro, ou do próprio Trump, ou Giorgia Meloni na Itália?
Ocorre-me uma primeira resposta rápida que eu não excluiria de nenhuma explicação, embora seja muito difícil de trabalhar, que tem a ver com estas relações complexas entre lógicas políticas e econômicas, e explicações que só pareceriam psicológicas. No entanto, é surpreendente que muitos desses líderes tenham comportamentos psicopáticos. Parece que ser um psicopata traz vantagens eleitorais, talvez em alguns casos, como Bolsonaro, ganhar eleições, ou Trump, mas conseguir porcentagens muito altas, como alguns outros casos que você mencionou.
Mas indo mais ao estrutural, parece-me que os partidos políticos tradicionais estão colaborando muito ativamente para essa descrença e essa irrupção de figuras rebeldes em relação ao regime democrático. Poder-se-ia dizer: se muitos políticos não acreditam nos partidos a que pertencem porque se mudam para outro partido, produzem divisões, fraturas muito desestabilizadoras dentro da sua própria força política, por que os cidadãos acreditariam nesses partidos?
Há uma espécie de força centrífuga exercida pelas dinâmicas políticas em muitos países hoje. Por sua vez, há uma necessidade de se sentir representado, e um certo grau de ilusão, de crença pouco fundada. Poder-se-ia dizer, resumindo muito apressadamente o que acontece em muitos países, não em todos, que há mais ilusões e crenças, ou desejos e crenças, do que ideias, programas racionais que nos permitem escolher quem nos pode representar.
Esses traços psicopáticos que você vê como elemento atrativo têm a ver com os novos meios de comunicação, motivo pelo qual já nos anos 1970 Guy Debord tratava da questão da espetacularização da política, ou os traços psicopáticos são hoje mais atraentes para o público do que há 50 anos?
Existem dispositivos de comunicação como os que mencionávamos sobre a dificuldade de responder ao que a televisão afirma, e que não foram radicalmente superados com o que oferecem os dispositivos digitais, as redes aparentemente mais horizontais. Acreditávamos, penso eu, que todos nós ao mesmo tempo... que finalmente o WhatsApp, até mesmo o correio eletrônico, outras formas de acesso à comunicação mais as plataformas mais recentes nos deram a chance de nos expressarmos.
Todos nós que estivemos no Facebook, que usamos algum tipo de plataforma dessa natureza, sabemos quanta ilusão havia nisso, como isso se inverteu, como depois esses atores como o Facebook intervieram nas eleições, desviaram a informação, fizeram mais uma vez algo que parecia não existir, ou de pouquíssima força na televisão, que era a manipulação, havia interatividade.
E agora descobrimos que há uma espécie de fuga da informação que estamos despejando nas redes. Damos nossa opinião, trocamos informações com os outros, podemos convocar uma passeata pelas redes, pelo WhatsApp, podemos realizar ações, produzir eventos, mas é muito mais difícil modificar estruturas a partir das redes digitais. Além disso, há a descrença.
Precisamos de estruturas nas quais possamos confiar, nas quais possamos produzir mudanças efetivas e duradouras. As manifestações disruptivas são muito valiosas e devem ser lidas. Para os cientistas sociais é preciso pensar o que significa que tantos monumentos estão sendo demolidos, que mudanças estão ocorrendo com a história, a nossa relação com as estruturas de consagração pública, de uso do público.
Há uma disputa muito interessante em todo o continente, até nos Estados Unidos, no Canadá, sobre quem nos representou, que eram aparentes heróis nas guerras e que, no entanto, eram machistas, eram autores de maus-tratos ou tinham outros aspectos em que nos sentíamos rejeitados, sentimos que não nos podem representar.
Tudo isso é necessário, e por sua vez chega um momento em que essa descontinuidade das marchas, das manifestações, precisa se concretizar, como já aconteceu muitas vezes, em novas políticas públicas. Para descriminalizar o aborto é preciso uma lei, tem que fazer lobby junto aos deputados, é preciso se organizar para ter o Estado como interlocutor. Inclusive aqueles atores de direita que se opõem por causa do machismo, por causa de crenças religiosas, devemos conversar, devemos fazer algo mais do que a marcha indignada.
Mas é verdade que os sistemas políticos estão mal adaptados a estas novas condições para canalizar estas indignações, e por vezes o que prevalece é a indignação, a ruptura, o rompimento dos laços sociais.
Você vê alguma relação entre a distribuição regressiva de renda que vem ocorrendo desde a queda do Muro de Berlim e a polarização que divide as sociedades?
Sim, penso que isso foi demonstrado por economistas, sociólogos, por equipes transdisciplinares que trabalharam essas interações. Não é uma relação mecânica, claro, uma consequência automática de que, porque ganhar menos, vou votar na direita. Isso não acontece em muitíssimos casos.
Também devemos repensar a noção de polarização. Existem países como a Argentina, como o próprio México neste momento, onde parece que as explicações binárias são úteis; porém, é preciso duvidar dessa palavra “polarização”, isso existe, mas às vezes encobre outras fraturas. E vemos como aqueles dois polos que pareciam ser a rachadura, deixando um vazio entre eles, na verdade estão muito fraturados dentro de si.
Vemos isso muito claramente na Argentina, no México em relação à próxima campanha presidencial, onde o movimento hegemônico Morena, o partido no governo, tem quatro pré-candidatos e a oposição não consegue articular nada, nem programa, nem lideranças. Então, há mais do que polarização. Há pouco falava da multiplicação de movimentos indignados por questões de gênero, etnia, os jovens que reivindicam educação gratuita, no Chile e em muitas outras sociedades. Em suma, muitos mal-estares acrescidos. E vejo, mais do que polarização, dispersão de demandas não atendidas.
Como interpreta o crescimento do discurso de ódio, os ataques à vice-presidente argentina, Cristina Kirchner, também à vice-presidente da Colômbia, Francia Márquez, e o crescimento do discurso de ódio em muitos países, por exemplo, no nosso vizinho Brasil?
Em sentido estrito, no que se refere a esses dois exemplos que você mencionou das duas vice-presidentes, é algo que a Justiça tem que esclarecer e ainda está sendo investigado. Independentemente do que os juízes façam, esses não são eventos isolados e correspondem, como você dizia, ao discurso de ódio e a certas práticas, não apenas à combatividade na linguagem.
Práticas que atingem a população de forma massiva ou em números escandalosos, como os feminicídios e outras violências atrozes, que me levam a referir um fator crescente de desestabilização democrática, de ocupação de território que ainda não apareceu nesta conversa, e que é o avanço das forças ilegais, de grupos criminosos, cartéis, que não têm a ver apenas com as drogas.
Pesquisadores dos cartéis no México acreditam que há cerca de 22 crimes em que incorrem e isso muda inclusive o modo de se comportar, porque quando lidavam principalmente com o narcotráfico, precisavam interromper por períodos, pelo menos certas horas do dia ou da noite, as rodovias. Como agora também cobram direitos de propriedade, em muitas cidades, de comerciantes e de moradores, como também fazem sequestros, tráfico de órgãos, enfim, uma variedade enorme de crimes, também precisam controlar as cidades e vemos ocupações de território que em parte são responsáveis por essas migrações, essas fugas de populações.
Penso que as mais conhecidas nos últimos anos são da América Central, mas também de outros países. No México, já se passaram mais de vinte anos desde que em Ciudad Juárez e outras cidades na fronteira com os Estados Unidos, observa-se que em uma cidade como Ciudad Juárez, com quase 2 milhões de habitantes, 160 mil pessoas se mudam para os Estados Unidos. Em suma, temos um espectro de atores muito transnacionalizados, muito poderosos dentro dos países latino-americanos, cada vez mais em mais países, e que têm atuação em muitos outros, são atores globais.
Alguns cartéis mexicanos, os mais poderosos, operam em 50, 52 países de vários continentes. Isso também repercute na vida democrática e na vida política e econômica, claro, porque eles oferecem empregos a centenas de milhares de jovens que não conseguem acessar o mercado de trabalho, nem com esses salários ou com jornadas como as que mencionávamos. Por outro lado, têm efeitos políticos.
Na última eleição mexicana, que não era para presidente, mas para governadores e prefeitos, foram mortos cerca de setenta candidatos ou prefeitos em exercício, deputados que aspiravam ingressar nas câmaras provinciais ou nacionais. Temos que colocar esses atores, sobre os quais os governos estão muito confusos, no centro da conversa pública.
Parece-me que é preciso chamar os pesquisadores, os especialistas nessas questões, e ver o que pode ser feito. Existem em alguns países, como explicou, por exemplo, Edgardo Buscaglia, especialista argentino que morou muitos anos no México, agora é professor na Columbia e lidera uma equipe internacional que conseguiu alguns resultados graças à pesquisa que conduziu. Quando o presidente López Obrador ainda estava em campanha, anunciou que convocaria um painel de especialistas internacionais, entre os quais também citava alguns líderes políticos, em questões de cartéis de drogas antes de assumir a presidência. O Papa Francisco estava entre os que deveriam ser convocados, mas esse evento nunca aconteceu.
E o que se vê em quase todos os países latino-americanos são políticas erráticas e muita cumplicidade de políticos ativos com líderes de cartéis locais, etc. Há pouco você mencionou vários processos de decomposição ou de indignação e saída do sistema político em vários países, e mencionou, por exemplo, os bolsonaristas e os “huachicoleros”.
Para quem ainda não ouviu essa palavra na Argentina, os “huachicoleros” são aquelas pessoas que chegam de maneira intempestiva, muito mal cuidada, protegida, para extrair petróleo ou algum líquido derivado dos gasodutos, dos oleodutos. Essa prática teve muita expansão como atividade criminosa que dava dinheiro. Antes da posse do atual governo de López Obrador, o governo enfrentou isso com força militar, comprou alguns caminhões, aparelhos, para transferir o petróleo, a gasolina, e obteve alguns resultados.
Mas hoje há mais “huachicoleo” do que há seis anos. E não são forças políticas, são forças econômicas de cidadãos, de consumidores desesperados que encontram esses caminhos aparentemente alternativos, mas na realidade informais e ilegais, prejudiciais à economia de qualquer país. É muito difícil trabalhar com a complexidade de todo esse fenômeno em que há motivações econômicas, formas muito irresponsáveis às vezes, porque produziu mortes nesses assaltos pontuais.
E é diferente, mas tem algumas analogias com o que aconteceu no dia 8 de janeiro no Brasil, quando forças de cunho relativamente popular, organizadas sub-repticiamente pelo bolsonarismo, invadiram simultaneamente o Palácio do Governo, o Palácio Legislativo e várias outras instituições, praticamente todos os Poderes. Acredito que houve até agora, pelo que percebo de longe, uma reação enérgica e adequada do governo Lula a essa perigosa conspiração.
E têm motivações políticas, mas também econômicas. Muitos dos que agora estão sendo processados eram pessoas contratadas para fazer um bico, aparentemente um trabalho menor, sem medir as consequências que esse ato político-econômico destituinte poderia ter. Penso que devemos prestar muita atenção nesse conjunto de fatores econômicos, que agem de forma destituinte em muitos países latino-americanos.
Qual é a relação entre capitalismo, modernismo, pós-modernismo imbricado no crescimento do chamado “populismo” na região, que serve tanto para definir governos que podem ter ideias de direita como de esquerda?
Penso que vale a pena diferenciá-los. São muitas as formas de desenvolver a modernidade que vimos acontecer na Europa, nos Estados Unidos, de diversas formas e, claro, em diversos países latino-americanos. Temos sido modernos em muitos aspectos e nunca nos tornamos plenamente na América Latina. E a pós-modernidade chegou até nós, isso aconteceu, agora fala-se mais em globalização e desglobalização.
Estamos nos globalizando rapidamente há três ou quatro décadas, mas nos últimos anos vimos o Brexit, movimentos regionais de independência, enfim, muitas forças. Mencionamos algumas delas hoje, embora não as chamemos de desglobalizantes, mas tentam quebrar esses acordos, como a União Europeia, o Mercosul ou outras organizações de integração latino-americanas.
Parece-me que cada um desses conceitos deve ser trabalhado com cuidado, mas o que é central aqui é algo que de forma sintética e rápida pode ser chamado de neoliberalismo, essa etapa do capitalismo diferente das outras, que passa por processos muito autodestrutivos. É preciso estar muito atento.
Como me disse recentemente durante uma conversa o assessor de um presidente latino-americano, quase no final da pandemia, falei como amigo e lhe perguntei como estava lidando com a pandemia. Ele ficou em silêncio por alguns segundos e me disse: “Há tanta autodestruição”.
O que fazemos com os impulsos autodestrutivos de tantas forças econômicas e políticas? E quando digo autodestrutivo, significa que o capitalismo está se autodestruindo. E não mencionamos aqui a crise do planeta, que é uma das formas mais evidentes onde isso está acontecendo.
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“Parece que ser um psicopata traz vantagens eleitorais”. Entrevista com Néstor García Canclini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU