12 Setembro 2022
"Uma derrota apertada (menos de 5%?) de Bolsonaro no primeiro turno, o quadro estará armado para o golpe. Qual vai ser o script deste processo? Bolsonaro vai dizer que as eleições não foram 'limpas' e convocar suas massas para manifestações de protesto, pedindo a anulação das eleições. Seus milicianos vão atuar bloqueando estradas, atacando locais da oposição, agredindo lulistas nas ruas. Se houver tumultos e enfrentamentos com a oposição, as polícias vão intervir sentando o pau nos nossos. Criada a instabilidade política, a generalada vai declarar prontidão militar e, possivelmente, mandar um ultimato para o Congresso, apoiando um pedido de Estado de Sítio de Bolsonaro. Ou mesmo um pedido de pura e simples anulação das eleições. Se o congresso recusar um ou outro dos pedidos, veremos se a generalada estava blefando ou se vai encarar o golpe explícito", avalia Jean Marc von der Weid, ex-presidente da UNE (1969/1971), fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983, membro do CONDRAF/MDA (2004/2016) e militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
Segundo ele, "aos que dizem que faço parte da esquerda alarmista, respondo que nunca fez mal a ninguém planejar pensando em vários cenários e estar pronto para o pior".
Os que temiam um “golpe”, ou pesadas provocações no dia do bicentenário, respiraram aliviados. Segundo vários analistas, Bolsonaro ficou dentro dos limites das “quatro linhas” ao não repetir os ataques ao Supremo e às urnas eletrônicas em seus discursos. Outros passaram a considerar que as ameaças de golpe estão superadas pela aparente ênfase de Bolsonaro no enfrentamento eleitoral. A meu ver esta análise está totalmente equivocada.
Afinal, o que queria Bolsonaro com o colossal investimento de recursos públicos e privados que acabou colocando menos gente nas ruas e praças em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo do que no ano passado? Para quem se assustou com as imagens difundidas durante e depois das manifestações, sugiro rever as do ano passado. Na avenida Paulista, os participantes eram menos de um quinto, no Rio de Janeiro eram pouco mais da metade e em Brasília mais ou menos empataram.
A diferença está no momento político e no uso eleitoral das imagens. As de Brasília se prestam mais à manipulação. O locutor do palanque produziu o mico do ano ao dizer em tom triunfante que “já eram 100 mil”, para ser bruscamente corrigido por um assessor militar (?!) e anunciar “somos um milhão”, sem perder o fôlego. As mídias bolsonaristas, pós facto, ampliaram a mentira para 1,4 milhão. Balela! Quem abrir a imagem da foto no zap vai ver que menos da metade da esplanada estava ocupada.
Nada disso importa muito. Para a propaganda bolsonarista o que vale é a versão e não o fato. Eles puseram gente o suficiente para gerar imagens impactantes que estão sendo usadas para “desmentir” as pesquisas eleitorais. O “datapovo” versus o Datafolha. Isto é mais importante para a outra aposta de Bolsonaro, a que vai buscar melar o jogo, do que para ganhar eleitores. Ao desmoralizar as pesquisas, Bolsonaro prepara o seu discurso de perdedor das eleições, “provando” que tanto as pesquisas quanto as eleições só podem estar trucadas. Nas suas mídias, os bolsonaristas estão dizendo que o energúmeno tem 65% das intenções de voto e Lula 19%! Tudo isso parece absurdo? Para o comum dos mortais é puro delírio, mas para a base bolsonarista trata-se da mais pura verdade. E, na estratégia golpista, é isso que importa.
Quanto ao conteúdo das falas do presidente, se ele não atacou nominalmente os ministros do Supremo ou a própria corte, ele não deixou de dar o seu recado em um formato nem tão subliminar assim: “todo mundo sabe o que é o Supremo”, disse o energúmeno para delírio do gado. Por outro lado, as mensagens em cartazes e faixas foram bem mais explícitas e pediram a intervenção militar, o fechamento do STF e do Congresso, isto tudo em mau português e mau inglês. Aliás, por que será que se preocuparam em mandar mensagens para o mundo? Note-se que a maioria das faixas era de confecção impressa e apenas algumas caseiras. Bolsonaro desafiou o STF com alguns gestos simbólicos, como dar lugar de destaque ao velho da Havan, investigado pelo STF por atividades antidemocráticas, no palanque do desfile militar em Brasília, à frente do vice-presidente, do Ministro da Defesa e do presidente de Portugal e coladinho nele. Por outro lado, no café da manhã, amplamente divulgado, ele não deixou de dar um recado bem mais explícito para seus apoiadores: “64 pode ser repetido”.
O resultado mais importante dos atos, entretanto, foi a excitação provocada entre seus seguidores. Se no ano passado as ameaças muito reais ao STF e ao Congresso geraram decepção e desencorajaram seus seguidores ao não se concretizarem, agora ele elevou ao paroxismo o ânimo da sua base. O discurso ameaçando varrer os comunistas, o PT e o “presidiário de nove dedos” foi na medida do que o gado esperava.
Muitos comentaristas apontaram como um erro a ausência de temas importantes para o eleitorado em geral, como a fome, o desemprego, a miséria, a saúde, a violência, entre muitos outros, no discurso de Bolsonaro. Também foi muito enfatizada a menção às “princesas” e ao poder sexual “imbrochável” dele mesmo. Isto foi visto como um erro eleitoral para o público feminino. Mas para o objetivo de Bolsonaro tudo isto é secundário. Mesmo se as mulheres presentes na massa de apoiadores ficaram incomodadas com a grosseria, inclusive na comparação entre Michelle e Janja, devem ter dado de ombros e pensado: “coisas de Bolsonaro”, desculpando o mito pela sua misoginia. Puxado pelo próprio, improvável, metrossexual, o público urrou com ele: “imbrochável”.
Para quem se assustou com as massas ululantes pedindo golpe, mesmo sem menção explícita do presidente, lembro que este público não é o ator principal de qualquer golpe. Não são estes personagens, predominantemente de classe média e alta, que irão dar as caras em enfrentamentos golpistas. Eles são o suporte político, mas um golpe se faz com gente armada e disposta a matar e morrer. Consta que apenas 20% da opinião pública apoia um regime militar. O problema é a quantidade de gente armada que pensa o mesmo.
O resultado eleitoral do dia 7 foi um avanço de 2% na expectativa de voto em Bolsonaro, segundo o DataFolha. Muito pouco para o investimento feito, não só neste dia como na derrama de benesses do governo há meses. As boas notícias na economia, a golpes de bilhões de reais, favoreceram as classes médias e alta. Mas para os mais pobres a situação não melhora porque a inflação de alimentos continua comendo os valores da ajuda governamental. Se o preço da gasolina caiu 10%, o do leite subiu 60% em um ano e vale quase o dobro do litro de combustível. Não é um acaso que o voto em Lula no segmento até dois salários-mínimos (mais de 50% do eleitorado) continua em alta e garantindo a vitória do petista, pelo menos até agora.
O preocupante, no quadro eleitoral mostrado pela sucessão das pesquisas desde maio, é a leve perda de votos de Lula (3%) no primeiro turno e, muito mais grave, a recuperação lenta de Bolsonaro, diminuindo a vantagem, que já foi de mais de 20%, para 11%. A “boca do jacaré” está lentamente se fechando e já está garantindo um segundo turno para Bolsonaro. A má notícia para este último é que as previsões, até agora, para o segundo turno indicam entre 10 e 13% de vantagem para Lula. Bolsonaro pode crescer mais até o dia 2/10? Mantido o ritmo da sua progressão ele pode chegar no dia da eleição com uma diferença reduzida a 6 ou 8 pontos percentuais. Se o efeito Trump se repetir no Brasil, ou seja, se o voto enrustido em Bolsonaro tiver enganado as pesquisas, ele pode sair das urnas derrotado por uma margem ainda mais estreita.
A estratégia da campanha de Lula nesta reta final para o primeiro turno está centrada em ganhar o voto útil dos eleitores de Ciro. Teoricamente, Lula precisa de 3 a 4% de votos, cerca da metade dos votos que hoje ainda tem o coronel do Ceará. A má notícia é que quem está levando o voto útil de Ciro, até agora, é a parte direitista do seu eleitorado. Na pesquisa do Datafolha, ele perde dois pontos e Bolsonaro ganha dois. O resto fica igual. Supondo que todos os eleitores de Ciro capazes de votar em Bolsonaro já aderiram ao energúmeno, boa parte do que resta deve ter em Lula a sua segunda opção. Em outras palavras, esta aposta não é irreal, mas também não é muito provável, pelo menos no volume de votos necessário. Seria preciso que Ciro encolhesse brutalmente, reduzindo seu voto a uns 2 ou 3% do eleitorado, o que parece difícil.
O preocupante, para mim, é o fato de que a campanha da frente lulista está taticamente mal centrada. Ela oscila entre responder aos ataques de Bolsonaro (disputando o público evangélico, por exemplo) e a ênfase nos temas de maior preocupação do conjunto do eleitorado. E falta uma proposta consistente de enfrentamento dos problemas mais agudos dos mais pobres, a fome e o desemprego. Lula continua insistindo em se eleger com o cacife do seu governo passado e se exime de propor programas mais ambiciosos e concretos, para lá de promessas genéricas. Vai ser suficiente para ganhar a parada? Pode ser, mas não parece estar propiciando um movimento positivo de esperança no futuro, capaz de galvanizar a opinião eleitoral. Parece que Lula está confiando mais no antibolsonarismo do que no voto entusiasmado no seu futuro governo.
O pior de tudo nesta reta final de campanha é que a oposição está apostando apenas na vitória eleitoral, enquanto Bolsonaro está apostando na crise institucional. Não há qualquer reação no campo da esquerda frente às ameaças de golpe. Há denúncias, é claro, e apelos ao judiciário, mas não existe qualquer plano B, o que fazer se (ou quando) o energúmeno provocar a virada de mesa.
Esta situação me lembra a véspera do golpe no Chile, em 1973. Desde logo, são situações totalmente distintas. Mas o que há em comum é a ausência de uma orientação sobre o que fazer no caso de o pior acontecer. Allende levou um milhão de chilenos à Alameda, dias antes do golpe. As massas gritavam em coro: “Allende, Allende, el pueblo te defiende”. Mas como defender o presidente ameaçado? O único momento em que Allende ou os partidos da Unidade Popular deram uma orientação concreta para enfrentar o golpe foi por ocasião da tentativa frustrada de julho, conhecida como “tancasso”. Com o palácio cercado por militares rebeldes, Allende foi para a rádio e conclamou: “vengan a la Moneda con lo que tengan”. Ou seja, venham com as armas que conseguirem e ataquem estes milicos. Não foi preciso, pois forças do exército controlaram os rebeldes, que eram uma espécie de vanguarda porra louca da extrema direita militar que tentava forçar a mão de seus pares. Algo no estilo do general Mourão Filho, em 31 de março de 1964, no Brasil. Mourão também estava fora das articulações dos altos mandos golpistas e forçou um desenlace que deu certo.
Se Bolsonaro tentar o seu golpe, qual vai ser a orientação da esquerda para a sua militância? Ir para a rua? Enfrentar os milicianos, policiais e, eventualmente, as forças armadas? Penso que se deixarmos a iniciativa para Bolsonaro estaremos nas mãos da generalada. Se eles aderirem, o jogo estará jogado e perdido. Como não está dado que os altos mandos das FFAA queiram se arriscar em um processo de enfrentamento, a nossa única chance estaria em tomar a iniciativa de botar o povo na rua em grandes massas antes de Bolsonaro tentar a sua jogada. Mas isto exige preparação, em particular uma preparação política, advertindo a população destes riscos e ficando em alerta total para chamar manifestações maciças. Por enquanto, estamos totalmente desarmados politicamente para esta situação. Se as armas falarem primeiro, vai ser difícil mobilizar os desarmados.
Continuo achando que um golpe clássico vai ser coisa difícil, mesmo levando em conta a pesquisa feita pela inteligência militar que vazou recentemente. Segundo as notícias, a maioria dos policiais militares é bolsonarista e apoiaria um golpe. Entre a oficialidade média (tenentes a coronéis) o resultado é o mesmo. Entre os oficiais superiores da Aeronáutica e da Marinha idem. Mas entre os generais predomina uma posição prudente, senão contrária. E estes são os personagens decisivos em qualquer golpe clássico. Como já disse antes, a militância armada do bolsonarismo, organizada nos clubes de tiro, pode provocar um monte de incidentes locais, mas sozinhos não irão longe. As polícias militares podem, localizadamente, arriscar-se a ações mais ambiciosas, mas também não têm fôlego para tomar o poder. A oficialidade média, sem os comandos superiores, dificilmente vai tomar a iniciativa. Tudo dependerá, portanto, do que vai fazer a generalada.
Penso que, com uma derrota apertada (menos de 5%?) de Bolsonaro no primeiro turno, o quadro estará armado para o golpe. Qual vai ser o script deste processo? Bolsonaro vai dizer que as eleições não foram “limpas” e convocar suas massas para manifestações de protesto, pedindo a anulação das eleições. Seus milicianos vão atuar bloqueando estradas, atacando locais da oposição, agredindo lulistas nas ruas. Se houver tumultos e enfrentamentos com a oposição, as polícias vão intervir sentando o pau nos nossos. Criada a instabilidade política, a generalada vai declarar prontidão militar e, possivelmente, mandar um ultimato para o Congresso, apoiando um pedido de Estado de Sítio de Bolsonaro. Ou mesmo um pedido de pura e simples anulação das eleições. Se o congresso recusar um ou outro dos pedidos, veremos se a generalada estava blefando ou se vai encarar o golpe explícito.
Bolsonaro, na sua estratégia golpista, não faz gestos a não ser para gerar esta situação. Ganhar as eleições é sua aposta menor, até porque é pouco provável. Ele fala para a sua base armada em primeiro lugar. Mesmo a mobilização dos seus fanáticos apoiadores desarmados tem como objetivo dar suporte político aos seus apoiadores armados. Se todos eles agirem sem oposição massiva nas ruas, ficará mais fácil constranger o Congresso a engolir os ultimatos e votar o que Bolsonaro pedir. Com oposição, o quadro pode mudar e a generalada pode vacilar em forçar a barra. As possibilidades de movimentos “revolucionários”, de milicianos, policiais e oficialidade média ficam muito mais difíceis.
Se a oposição adotar uma tática defensiva “para evitar provocações”, vai acabar encurralada em casa, entregando as ruas ao bolsonarismo armado e desarmado. O dia seguinte das eleições do dia 2 de outubro não deveria ser para traçar estratégias eleitorais para o segundo turno. Deveria ser para tomar as ruas e exigir respeito pelos resultados. A meu ver Bolsonaro não vai poder deixar para fazer este banzé depois do segundo turno, pois parte importante do seu argumento para suas bases (as armadas, em particular) é a acusação de trucagem das eleições para beneficiar Lula. Aceitar os resultados do primeiro turno e recusar os resultados do segundo fica muito mais complicado, embora possível.
Aos que dizem que faço parte da esquerda alarmista respondo que nunca fez mal a ninguém planejar pensando em vários cenários e estar pronto para o pior.
Acordem, companheiros e companheiras! Vamos pensar em ganhar a eleição, mas sem esquecer que sem uma forte demonstração de força popular nas ruas o caminho do golpe fica fácil.
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