17 Agosto 2022
"O amor requer o respeito profundo ao 'mundo interior' do outro, a paciência nobre de entender a complexidade e mistério que habitam a alteridade".
O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.
No percurso de minhas leituras sobre o Grande Sertão: Veredas, uma questão que brotou nas minhas reflexões envolveu a temática do amor. Foram raras as obras que suscitaram tantas meditações sobre o tema. Esta foi, certamente, uma delas. Com a preciosa ajuda do livro de Kathrin Rosenfield, Os descaminhos do demo [1] (Imago/Edusp, 1993), fui tomando ciência da experiência de Diadorim, que segundo a autora, “nunca manifesta um amor feminino ou sensual” por Riobaldo. Vemos, sim, pistas de sua feminilidade ao longo do livro, mas não um amor que visaria um “corpo sexuado”. Em mais de uma vez, ele manifesta a Riobaldo o desejo de ser apenas amigo ou parente. É alguém que “evita a necessidade de dar forma e significado ao seu amor através da palavra ou do gesto que afirma ou nega simbolicamente a dimensão física e sexual do amor” [2]. Num mundo jagunço marcado pelo machismo incontestável, Diadorim se protege, evitando o ciúme e a violência.
A trilha aberta pela interpretação de Kathrin, ajudou-me a trabalhar outras questões ligadas ao tema. Foi importante para lidar com a questão do amor maduro, que vivo agora nos meus 68 anos de idade. Revendo a letra da canção de Gilberto Gil, A faca e o queijo, de 1995 [3], vejo uma bonita identificação. Ajuda a entender as mudanças que sofrem a vida amorosa, quando a “chama da paixão” vem temperada pelo amor sereno e delicado. Isto é estar diante do que Gil chama de transformações do amor, quando as mãos ganham um jeito novo e peculiar de lidar com o outro. Tornam-se mais sutis, garantida agora por “novos desejos”; também os beijos ganham um tom mais azul e menos carmim. Estamos diante de uma letra poderosa para ilustrar o amor maduro.
Em seu aprendizado amoroso, Gil conseguiu uma ampliação do olhar com a ajuda de Caetano Veloso, que o favoreceu captar “o traço feminino como complementação do masculino”. Foi o bonito aprendizado “de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza”. Vemos isso com muita clareza na canção Super Homem, de 1979 [4]. É quando Gil expressa o traço de sua “porção mulher”, até então resguardada, e assinala que ela é o que de melhor traz em si e o ajuda a viver com esse amplo horizonte que assistimos em suas canções e em sua presença no tempo.
Numa bonita canção de Caetano Veloso, Tiranizar, musicada por César Mendes, ele toca no tema do amor, sinalizando a importância do respeito e liberdade que a vida em comum supõe. A garantia de um amor profundo está na capacidade que ele tem de gerar respeito, confiança, delicadeza. O amor não pode frutificar num ambiente nocivo de controle e ciúme. Diz Caetano na letra, que quando o amor vem construído na prisão, ele já começa a fenecer, se, ao contrário, vem regado com a liberdade, tem muita chance de durar: “Me deixe solto e eu sou todo seu”.
Num livro precioso de Lya Luft, Mar de dentro (ARX, 2002), ela sublinha que há um “espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores” [5]. Nas famosas Cartas a um jovem poeta, Rilke assinala que muitos jovens acabam tropeçando no amor por não respeitarem esse espaço de silêncio e solidão que habita o mundo do parceiro [6]. O amor, segundo o poeta, vem resguardado quando se respeita esse limite do outro e o espaço de sua solidão vem acolhido e saudado. Na visão de Rilke, “o amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer”. Ele requer momentos preciosos de solidão e de respeito à impermeável alteridade. O poeta sublinha que o amor entre duas pessoas constitui “a tarefa mais difícil”, mas também mais nobre, desde que se respeite o espaço do outro. Diante desta tarefa, “todas as outras são apenas uma preparação” [7].
O amor requer o respeito profundo ao “mundo interior” do outro, a paciência nobre de entender a complexidade e mistério que habitam a alteridade. Em outra obra importante, Elegias de Duíno, Rilke fala do complexo mundo dos amantes, que junto com as crianças e os moribundos, são os que mais se aproximam do Aberto e do espaço puro. Através do gozo, eles conseguem atingir quase o ápice da felicidade, mas como tudo que é humano, eles acabam retornando do gozo ao tempo, por receio a um “estado de graça” inalcançável. Vislumbra-se o “espaço livre”, mas o temor ou o limite acendem as luzes de alerta, e se escapa ao passo maravilhoso do desabrochar das flores. Os amantes chegam a participar, por aproximação, da dinâmica do inefável: eles sentem “a obscura presença e se espantam” [8].
Todas essas questões vêm acompanhando minha jornada, seja na forma de meditação pessoal, seja no encontro com os amigos, nas conversas com minha companheira querida, ou nos cursos que venho ministrando sobre Rosa e Clarice Lispector. Num bonito texto que li no dia 13 de agosto, de autoria de Pedro Mairal [9] (FSP), ele faz uma comparação do amor com os acordes da música. Diz que às vezes temos a grande sorte de encontrar uma rica “sucessão de acordes”. Não estamos livres das notas dissonantes, dos conflitos e tensões que marcam qualquer relação. Mas se esta vem pontuada pelo cuidado e delicadeza, há maiores chances de provocar alegria e fruição.
Como mostra Mairal, “somos uma sucessão de acordes bem encaixados, que combina harmoniosamente as tensões, as surpresas, a satisfação do já conhecido, a variações. Funcionam bem”. Isso não acontece, assim, de repente, mas leva tempo e requer maturidade. Ninguém está protegido dos “momentos obscuros” ou “acordes menores e tristes”. Eles também fazem parte da sinfonia da vida, mas podem passar e revelar o outro lado da musicalidade, numa linda sequência de acordes novidadeiros. O autor nos adverte para estar atento ao andar na rua e não observar apenas as demolições em curso, mas captar igualmente as construções que vão se operando. É também muito bonito, continua ele, poder verificar o “esforço gradual” que acompanha a dinâmica de escorar aquilo que cresce aos poucos, e que é musical.
Toda essa dinâmica reflexiva que me habita no momento tem também a ver com o meu olhar sobre o mundo circundante. Tenho visto e em alguns casos acompanhado muitos casais que estão passando por crises no relacionamento, o que me entristece muito. Tive a sorte e a alegria de ter encontrado uma companheira no meu caminho que foi sempre apoio, presença, delicadeza e incentivo. São já quase 45 anos de união que se recria a cada dia, no respeito e na amizade. Vejo, porém, que relações assim são hoje exceção e não regra.
Acho que com minha experiência e vontade posso dar uma contribuição importante nesse campo para muitas pessoas queridas da minha convivência e que passam por situações dolorosas. Lendo hoje o jornal O Globo, deparei-me com uma bonita entrevista de Maria Fortuna com o ator Caio Blat [10]. O ator e Luisa Arraes fazem um par bem interessante, com uma escolha relacional inovadora. Pude conhecer os dois na peça de Bia Lessa: Grande Sertão: Veredas. Fiquei tão comovido e impressionado com o espetáculo, que assisti três vezes. Os dois agora darão continuidade ao mesmo tema em filme que deverá sair em breve.
Caio Blat estará também atuando na próxima novela das seis, Mar do sertão, cujo tema promete. Em sua entrevista, Caio comenta o novo filme em que ele estreia na direção, O debate, que conta com a presença de dois atores experientes: Debora Bloch e Paulo Betti. Os dois vivem a experiência de um casal que ama, mas que depois de 17 anos de casados resolvem se separar. Foi um processo difícil, como indica o roteiro. Eles resolvem romper a aliança “não sem antes expor as entranhas divergindo sobre monogamia, sexo, desejo, ciúme e liberdade”. A separação ocorre num clima de respeito mútuo, com maturidade e afeto. Bem diferente do que costuma ocorrer nesses casos, quando a separação vem acompanhada de raiva ou mesmo ódio, e as pessoas envolvidas acabam perdendo a sanidade. Caio Blat se inspirou em Domingos de Oliveira, que viveu recentemente as dores de uma separação.
Conforme expressou o ator, esse tempo da pandemia foi também um tempo difícil para os casais. Ele diz: “Perdemos a capacidade de ouvir o outro. Famílias brigaram, casais se separaram. O diálogo se rompeu na política e nos relacionamentos”. Atento aos novos tempos e também ao risco do esgarçamento nas relações, Caio Blat buscou junto com Luisa Arraes, sua companheira, um caminho diferente, que me faz lembrar Sartre e Simone de Beauvoir. Cada um tem seu apartamento próprio, no mesmo andar do edifício. Os dois moram “porta com porta” em um prédio da Zona Sul do Rio. Estão divididos apenas por um corredor, e “as portas vivem abertas, mas quando o bicho pega, cada um vai para o seu canto. Para evitar climão, eles mantêm diálogo franco e reveem acordos com frequência”. Busca-se respeitar o momento singular e o espaço de cada um, sem querer uma “fusão” que ofusque as identidades. Como ele assinala: “A gente ajusta de acordo com o momento, encontrando a liberdade e o desejo de cada um”.
Cada casal deve encontrar o seu melhor caminho, no respeito da companheira ou companheiro. E o que é muito importante: evitar deixar que o “vapor do mal” tome conta da relação. É sempre bom prevenir as situações mais difíceis com conversas maduras. E seguir sempre o sábio conselho de santo Inácio: nunca decidir abruptamente nos momentos de maior paixão. Os místicos sempre aconselham o caminho da paciência e da temperança. São conselhos sábios, de quem passou muito tempo trabalhando o mundo interior.
O mestre vietnamita Tich Nhat Hanh, em seu livro Paz a cada passo (Rocco, 1993) alerta-nos para o risco das “formações internas” que podem nascer e crescer quando não abrimos espaços para a auto-crítica. Devemos evitar o máximo que “nós” interiores se firmem, provocando tumultos perigosos para o desenvolvimento de qualquer relação ou diálogo. Há que saber, diuturnamente, desatar nós, e isto pode ocorrer com um ritmo diferente na relação: de acolhida, gentileza, generosidade e cortesia. Não é difícil buscar esse equilíbrio interior e na relação. Diz o monge budista que “se não desfizermos esses nós enquanto eles estão se formando, eles ficarão cada vez mais fortes e apertados” [11].
[1] Kathrin H. Rosenfield. Os descaminhos do demo. Tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro / São Paulo: Imago, 1993.
[2] Ibidem, p. 97.
[3] Carlos Rennó (Org.). Gilberto Gil. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 433.
[4] Ibidem, p. 266 e 268.
[5] Lya Luft. Mar de dentro. 3 ed. São Paulo: ARX, 2002, p. 30.
[6] Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 56.
[7] Ibidem, p. 54-55.
[8] Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 69.
[9] Pedro Mairal. Nosso estranho amor. O Globo, 13/08/2022.
[10] Maria Fortuna. “Perdemos a capacidade de ouvir o outro”. O Globo, 16/08/2022. Segundo Caderno, p. 1 e 3.
[11] Thich Nhat Hanh. Paz a cada passo. Como manter a mente desperta em seu dia-a-dia. 3 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 87-88.
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Sobre o amor. Artigo de Faustino Teixeira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU