16 Agosto 2022
Em novo lance da disputa crucial pelo futuro da tecnologia, decisões judiciais sustentam: conhecimento produzido por máquinas não pode ser patenteado. Mas corporações apelam à “propriedade intelectual” para obter lucros cada vez maiores.
A reportagem é publicada por Outra Saúde, 15-08-2022.
Se uma descoberta científica – digamos, uma vacina para uma doença com letalidade alta – é feita por meio de inteligência artificial (IA), ela pode ser patenteada para gerar lucros para uma corporação ou pessoa? Esse é um debate essencial para o futuro da produção de medicamentos, e algumas decisões judiciais recentes apontam caminhos interessantes. No dia 5 de agosto, uma corte de apelações dos Estados Unidos decidiu que uma IA não pode ser considerada uma inventora e por isso suas descobertas não podem ser patenteadas.
O caso analisado pela corte era o de Stephen Thaler, criador do sistema Dabus. Ele buscava justamente testar a justiça de diversos países, e tentou patentear duas invenções simples feitas por sua máquina: um suporte para bebidas e uma lanterna. Enviou solicitações para 17 jurisdições, entre elas o, Estados Unidos, Europa, China, Austrália e África do Sul e Brasil. O pedido de registro de patente foi negado na maior parte delas. A Alemanha buscou um meio-termo, afirmando que o Dabus poderia ser cocriador, mas seria necessário um humano no registro. Nos EUA, a patente já havia sido negada em outras instâncias – Thaler recorreu e perdeu novamente no início do mês.
O padrão estabelecido para patentes foi elaborado na Organização Mundial do Comércio (OMC) por meio do Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês). Em seu texto, define que para algo ser patenteado, precisa ter os seguintes aspectos: ser uma invenção, ser novo, ter passado por um processo inventivo e ter aplicação industrial. Ou seja, é necessário que haja um ser humano envolvido no processo – máquinas não estão previstas.
Há um argumento consolidado, mas que tem sido cada vez mais questionado, de que as patentes são necessárias para impulsionar a produção de novos medicamentos. Segundo essa teoria, sem elas, as empresas não teriam o incentivo necessário para buscar produzir drogas novas. Mas ela ignora o fato, por exemplo, de que descobertas como as das vacinas contra covid-19 só foram conquistadas com vasto investimento público. Está claro, também, que a indústria não pode se mover apenas pelo lucro: isso faz com que doenças negligenciadas ou menos atrativas comercialmente não sejam “atrativas o suficiente” para que farmacêuticas busquem produzir medicamentos.
Segundo matéria publicada na revista Nature, como não há regras internacionais claras para enquadrar a produção de novas tecnologias a partir de inteligência artificial, a tendência é que cada país vá interpretando as leis à sua maneira. O que não é bom, ainda mais em um cenário em que grandes corporações farmacêuticas operam internacionalmente. A revista científica teme um futuro sem patentes e sugere um tratado internacional para a criação de uma lei de propriedade intelectual para inteligência artificial. Por exemplo, que a patente tenha validade menor que a dos 20 anos atuais. Ou que a propriedade intelectual seja dividida entre o criador da IA, a pessoa que a comanda e o “proprietário dos dados usados para treiná-la”.
Essas novas correntes usadas para proteger uma indústria já tão lucrativa não parecem solucionar os problemas reais das pessoas que precisam de medicamentos, em especial no Sul Global. Mais uma vez, o cenário da pandemia pode ser exemplar para compreendermos que não há justiça global no que diz respeito ao acesso às tecnologias de saúde. Na África, mesmo após mais de um ano e meio de vacinas disponíveis contra a covid, apenas 21% da população foi devidamente imunizada. A inteligência artificial já é vastamente usada para ampliar lucros dos mais ricos do mundo: os algoritmos que organizam as redes sociais para vender cada vez mais, por exemplo. Essa poderia ser a hora de utilizá-la para trazer justiça social e medicamentos para todos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Inteligência Artificial e Saúde: para todos ou para quase ninguém? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU