22 Junho 2022
"Ainda somos aquela nação que rejeita a tirania e a demagogia, um país em que o Estado de Direito é fundamental e uma terra que luta pela verdade, pela justiça e por uma união cada vez mais perfeita, mesmo que às vezes nossos fracassos nessa busca possam ser grandes", escreve o jesuíta estadunidense Jim McDermott, em artigo publicado por America, 21-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Se eu tivesse que fazer uma lista de coisas que eu queria fazer na noite de quinta-feira passada, assistir os políticos julgarem o ex-presidente dos Estados Unidos por seu papel no atentado de 6 de janeiro no Capitólio estaria no final da lista. Sendo a política estadunidense o que é hoje, todo o caso parecia oferecer apenas mais uma plataforma para grandes declarações políticas e nenhuma ação concreta.
Em vez disso, o que vi me lembrou o episódio piloto de uma grande série policial da Netflix, como “The Staircase” ou “Making a Murderer”. Fomos imediatamente apresentados a personagens envolventes, principalmente os dois congressistas encarregados de narrar os contornos do caso: o presidente da comissão Bennie G. Thompson, um ex-professor negro de 74 anos de uma cidade do Mississippi de 521 habitantes, cuja integridade e cuidado com o país era evidente em cada sílaba pronunciada com doçura; e a vice-presidente, a republicana do Wyoming, Liz Cheney, que esboçou as linhas gerais do trabalho da comissão com clareza e desapaixonadamente.
A noite foi pontuada por momentos de depoimentos inesperadamente envolventes, como o ex-procurador-geral William Barr que, em uma entrevista gravada em vídeo, disse várias vezes a Donald Trump que as alegações sobre fraude eleitoral eram "mentiras", ou o documentarista Nick Quested, que estava trabalhando em um filme sobre os Proud Boys em 6 de janeiro, descreveu a massa de pessoas indo para o Capitólio horas antes do discurso do presidente Trump na Elipse. Um vídeo de 12 minutos mostrou a progressão dos eventos no Capitólio sem narração, permitindo-nos olhar e tirar nossas próprias conclusões.
Em uma série de televisão, o primeiro episódio é como um guia para o leitor. Isso nos diz em que tipo de espetáculo estamos assistindo, que tipo de coisas podemos esperar ver. Ao assistir ao episódio piloto de “This is Us”, sabe-se que serão vistas histórias tocantes e muitas vezes comoventes que acompanham várias gerações de uma família. Enquanto isso, o primeiro episódio de “Obi-Wan Kenobi” indica que nos espera uma aventura de “ficção científica e espiritual”.
A audiência de abertura do Comitê restrito da Câmara firmou um contrato semelhante com o povo estadunidense. Sinalizou que as audiências seriam repletas de testemunhas articuladas, depoimentos reveladores e uma abordagem metódica e impassível. Uma das coisas mais surpreendentes sobre a noite de abertura, de fato, foi a disposição da comissão de deixar os testemunhos falarem por conta própria. Embora as mídias tenham se concentrado, como sempre, nas declarações mais sensacionais das testemunhas, a própria comissão não mostrou nenhuma vontade de marcar pontos ou fazer polêmicas partidárias. Cada prova foi apresentada como mais um elemento de um quadro maior.
Mas olhando para os trabalhos da primeira noite, não pude deixar de me perguntar se não fossem destinados a ser mais do que apenas uma declaração de missão para as próprias audições. Para mim, eles pareceram uma tentativa de falar sobre a história mais ampla dos Estados Unidos. O governo Trump e a maioria legislativa republicana que o apoiou passaram quatro anos questionando muitos dos pressupostos do projeto estadunidense.
Em particular, eles fizeram com que muitos de nós pensassem se o presidente dos Estados Unidos e aqueles ao seu redor realmente estivessem acima da lei, incluindo a Constituição dos Estados Unidos. Donald J. Trump sempre disse e fez o que queria, fosse prudente ou perigoso, verdadeiro ou enganoso, legal ou ilegal. E até o momento em que não conseguiu obrigar o vice-presidente Mike Pence a invalidar os resultados das eleições de 2020, Trump foi amplamente incontestado pelo Congresso e nunca foi chamado a responder por suas ações. Sua presidência sugeriu que, em vez de uma nação de leis e precedentes históricos, os EUA são um lugar onde o poder acaba por sobrepujar a lei, a justiça e a moralidade.
Na audiência de abertura, o Comitê restrito da Câmara apresentou uma visão muito diferente dos EUA. Embora Donald Trump tenha apostado tudo em si mesmo, os presidentes da comissão se certificaram de não se colocar no centro. Onde ele continuamente fazia afirmações selvagens e sensacionais, a comissão, em vez disso, apresentou pacientemente provas e testemunhos. E onde Trump regularmente descartou qualquer senso de história ou precedentes estadunidenses, as apresentações iniciais do comitê restrito foram notáveis pelo contexto histórico mais amplo dentro do qual o senhor Thompson e a senhora Cheney colocaram repetidamente este caso.
Em sua declaração de abertura, a senhora Cheney chamou a atenção para as estátuas dos ex-presidentes ao redor da cúpula do Capitólio e as pinturas representando os primeiros dias do país, entre os quais uma pintura de 1824 de George Washington entregando voluntariamente o controle das forças do exército do país ao Congresso.
Enquanto isso, Thompson contou a história da promessa manuscrita de Abraham Lincoln, antes das eleições de 1864, que teria atendido a vontade dos eleitores, independentemente de tudo: “Esta manhã, como vem acontecendo há dias, parece extremamente provável que esta Administração não será reeleita. Então será meu dever colaborar com o Presidente eleito”. Thompson ressaltou que Lincoln também havia solicitado o mesmo empenho ao seu gabinete.
Quando eu estava no ensino médio, participei de um fictício Congresso Constitucional de uma semana chamado Convenção II. Em fevereiro, adolescentes de todo o país vieram passar uma semana em Washington para discutir emendas à constituição, com uma sessão final (muito interessante) realizada no Senado.
Embora certamente houvesse divisões entre nós, qualquer senso de partidarismo foi rapidamente superado pela admiração que tínhamos pela tarefa a desenvolver. Desde os primeiros anos de escola fomos ensinados a acreditar na ideia dos EUA, a ver em nossa Constituição as nossas maiores aspirações como povo e a mais alta expressão da própria democracia.
Presidentes e figuras políticas como Lincoln, Elizabeth Cady Stanton e Martin Luther King nos foram apresentados como uma espécie de panteão de super-heróis estadunidenses, modelos do que os EUA poderiam ser. Imaginar que estávamos participando daquele mesmo processo político foi emocionante e nos tornou humildes.
Não tenho dúvidas de que o mesmo senso de história e admiração sobre os EUA é transmitido às crianças de hoje. E embora o governo Trump tenha lançado sérias dúvidas sobre aquela visão de nosso país, a abordagem do comitê restrito parecia falar diretamente àqueles ideais. A apresentação não polêmica e imparcial da sessão de abertura, que continuou nas audiências subsequentes, foi uma tentativa de garantir a todos nós que a história estadunidense que aprendemos quando crianças não é um conto de fadas que os adultos nos contaram para nos ajudar a dormir ou para nos tornar mais fáceis de manipular.
Ainda somos aquela nação que rejeita a tirania e a demagogia, um país em que o Estado de Direito é fundamental e uma terra que luta pela verdade, pela justiça e por uma união cada vez mais perfeita, mesmo que às vezes nossos fracassos nessa busca possam ser grandes.
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Os dois EUA. Artigo de Jim McDermott, SJ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU