14 Junho 2022
"Não deveríamos mais nos dividir entre os que acreditam e os que não acreditam, mas sim nos unir no exercício do pensamento, com mansidão, sem nenhuma vontade de primado, para pensar e compreender a nós mesmos 'imersos no mistério'", escreve o teólogo italiano Vito Mancuso, ex-professor da Teologia Moderna e Contemporânea da Universidade San Raffaele de Milão, e ex-professor de História das Doutrinas Teológicas da Universidade de Pádua, ao citar a carta pública enviada aos líderes da Igreja italiana pela Coordenação das associações contra os abusos na Igreja Católica na Itália, em artigo publicado por La Stampa, 11-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Tomando a palavra como teólogo e filósofo crente nestas Jornadas da laicidade, eu deveria me sentir como um time que joga fora de casa em um campo particularmente hostil, por exemplo, como a Juventus em Florença. Na realidade, não é assim, porque há anos me defino como um "teólogo leigo" e sempre considerei positivamente o conceito de laicidade. Nem sou o único entre os crentes a fazê-lo, pense-se no padre Balducci, padre Turoldo, Dom Gallo e muitos outros, entre os quis o próprio Papa Francisco, que vê a principal ameaça não na laicidade, mas no clericalismo. Como isso é possível? É assim porque os conceitos de laicidade e religião se desenvolveram ao longo do tempo assumindo significados diferentes e eventualmente opostos.
Cabe ao pensamento identificar esses significados e diferenciar os conceitos, operação necessária principalmente em tempos tão confusos como os nossos.
Parto do conceito de laicidade observando que ocupa três âmbitos de aplicação: a política, a igreja, a consciência.
O primeiro sentido refere-se à distinção entre política e religião e à consequente mútua não ingerência das respectivas instituições: da Igreja nas competências do Estado e do Estado nas competências da Igreja.
O segundo significado designa os cristãos que não pertencem ao clero e ao estado religioso.
A terceira refere-se àqueles que não acreditam em nenhum Deus e desejam que todos os valores e leis de sua vida não tenham nada a ver com fés herdadas de outros. Neste último aspecto, existem diferentes graus de laicidade: há aqueles que estão abertos a toda laicidade (laicidade como abertura mental), aqueles que duvidam de tudo (agnosticismo), aqueles que não acreditam em Deus, mas respeitam a fé dos outros e estão interessados em discuti-la (laicidade positiva), e aqueles que consideram que as religiões são todas superstições e enganos a serem desmascarados (laicismo).
O que quero dizer com laicidade? Para mim é o método que rege a relação entre a esfera interior ou privada e a esfera exterior ou pública da existência. A interioridade se expressa como filosofia de vida e como ética; a exterioridade como direito e política. Bem, a laicidade é o método que permite mediar entre as duas esferas, garantindo que cada um conserve as suas convicções ideais e, ao mesmo tempo, conviva respeitosamente com aqueles que pensam de maneira diferente. A laicidade é o método que permite manter as próprias convicções enquanto promove a convivência mais respeitosa. Por isso, por exemplo, há católicos pessoalmente contra o aborto que consideram um dever ter uma lei que regulamente o acesso a ele. E é também por isso que existem ateus que consideram ser necessário o conhecimento das religiões e o consequente ensino escolástico.
Chegando à religião, até mesmo seu conceito é, na minha opinião, triplamente configurado.
O primeiro significado designa as igrejas e seus ritos, doutrinas, obediências.
O segundo designa a religiosidade interior, o sentimento do coração, o sentimento geral da vida chamado espiritualidade.
O terceiro refere-se ao significado original do conceito latino de "religio", que não é religioso em sentido estrito, mas sociopolítico, pois indica a cola mental que faz os seres humanos se sentirem sócios entre si, levando-os a formar uma societas.
De qual desses três conceitos de religião nós precisamos? Certamente do terceiro, porque sua ausência (hoje conclamada) esfarela a vida civil: sem religio, de fato, não há societas, muito menos civitas. Os antigos sabiam bem disso, pois o segundo rei de Roma, Numa Pompílio, deu à urbe recém-fundada uma religio civilis para obter solidez moral e força militar. E Roma tornou-se uma divindade e teve a história que todos conhecemos. E nós, como estamos hoje?
Heidegger descrevia a situação assim: “O mundo suprassensível dos fins e das normas já não desperta e não sustenta mais a vida. Esse mundo perdeu por si só a vida: está morto. Este é o sentido metafísico da afirmação 'Deus está morto'"(da La sentenza di Nietzsche: Dio è morto, in Sentieri interrotti, La Nuova Italia, pp. 233).
Hoje a morte de Deus, como desaparecimento de metas e normas compartilhadas, é ainda mais evidente do que nos dias de Heidegger. E nossa sociedade está ficando cada vez mais fraca. Talvez seja um sinal de que estamos destinados à extinção, como muitas outras civilizações antes de nós? Ou talvez seja o início de uma grande transformação para uma nova "época axial"? Não sei, acho que ninguém o sabe.
Quanto aos outros dois conceitos de religião, o segundo configura a religião como fato privado e nesse nível entra em cena a mais bela definição de religião que conheço, obra do matemático e filósofo inglês Whitehead: "Religião é o que o indivíduo faz da sua própria solidão”. A solidão designa aqui a interioridade de cada um, e nesse nível a situação é sempre a mesma: alguém sente a necessidade de ligar a sua solidão ao sentido global do todo e, portanto, de ter uma religião, enquanto outros não, nenhuma ligação e nenhuma religião. Como assim? Depende do quê? Não sei, mas certamente não é a ignorância que institui a ligação e não é o conhecimento que a corta, porque senão não se explicaria a fé de cientistas como Planck, Heisenberg ou Fabiola Gianotti, atual diretora do CERN em Genebra.
Por fim, permanece o primeiro conceito de religião, aquele que se refere às religiões estabelecidas. A dimensão comunitária é, na realidade, essencial ao fenômeno humano como tal, e é justamente na natureza social que reside a ambiguidade dos humanos e, portanto, também a ambiguidade de suas religiões.
A agregação e o relativo sentido de pertencimento podem de fato gerar sociabilidade positiva na forma de comunidade, movimento, igreja, etc., mas também podem ter efeitos negativos contrapondo entre suas várias instituições em rivalidade aberta e também achatando a liberdade do indivíduo no conformismo comunitário.
No entanto, já que estamos nas Jornadas da laicidade, gostaria de concluir com um pai do pensamento leigo como Norberto Bobbio. Durante a sua existência sempre se definiu como estranho à fé: "Não sou um homem de fé, sou um homem de razão e desconfio de todas as fés" (MicroMega 2/2000, p. 7). Após a sua morte, porém, em 10 de janeiro de 2004, foi publicado um texto neste jornal, hoje conhecido como Últimas Vontades, no qual Bobbio escrevia: “Não me considero ateu nem agnóstico. Como homem de razão e não de fé, sei que estou imerso no mistério que a razão não consegue penetrar até o fundo, e as várias religiões interpretam de várias maneiras”. Essas palavras descrevem uma relação fé-razão completamente diferente da orientação dominante.
De fato, geralmente se acredita que a fé introduz o mistério, enquanto a razão se livra dele. Bobbio inverte a perspectiva: é a razão que entende que estamos "imersos no mistério", em relação ao qual as várias religiões são todas interpretações imperfeitas. Ele supera assim os dois dogmatismos opostos, o racionalista e o fideísta, e tanto a razão quanto a fé parecem incapazes de apreender o sentido último da vida. É a chamada "douta ignorância". Isso nos ensina que não deveríamos mais nos dividir entre os que acreditam e os que não acreditam, mas sim nos unir no exercício do pensamento, com mansidão, sem nenhuma vontade de primado, para pensar e compreender a nós mesmos "imersos no mistério".
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A inútil divisão entre religião e laicidade é uma barreira ao exercício do pensamento. Artigo de Vito Mancuso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU