30 Mai 2022
A violência é endêmica na potência mundial: sua Constituição continua afirmando que “o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado”. A Associação Nacional do Rifle é a principal garantia para evitar qualquer possibilidade de desarmamento.
A reportagem é de Gustavo Veiga, publicada por Página/12, 26-05-2022. A tradução é do Cepat.
Os Estados Unidos regulam sua violência doméstica com uma lei do século XVIII. A Segunda Emenda foi votada em 1791. Tinha se passado dois anos desde a Revolução Francesa, os escravos libertos do Haiti começavam sua luta pela emancipação, Napoleão Bonaparte foi promovido a general e Mozart seria enterrado em Viena. Três séculos depois, a Constituição dos Estados Unidos segue afirmando que “o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado”.
Matar é muito fácil no único país do mundo onde as crianças não estão seguras quando estudam. A possibilidade está ao virar da esquina e já é um costume trágico nas escolas. A Associação Nacional do Rifle (NRA), que teve ex-presidentes como Kennedy, Eisenhower e Theodore Roosevelt entre seus membros, é a principal garantia para evitar qualquer possibilidade de desarmamento. Não importa se aumenta o número de vítimas indefesas, nem mesmo se são meninos que estão na escola primária, como aconteceu em Uvalde, uma pequena cidade do Texas onde predomina a comunidade hispânica, nesta terça-feira, 24 de maio. Os massacres são tão familiares para qualquer cidadão como comer no McDonald's ou assistir aos Simpsons na TV.
A Associação Nacional do Rifle completou 150 anos em 17 de novembro de 2021 e comemorou em grande estilo. Nesta sexta-feira, 27 de maio, receberá pela sexta vez em seu fórum anual um político que reverencia e que voltará a celebrá-lo: “O presidente Trump cumpriu suas promessas ao nomear juízes que respeitam e valorizam a Constituição e a Declaração dos Direitos e, assim, a liberdade de gerações de americanos. Os membros da NRA estão empolgados para ouvi-lo falar e agradecem seu apoio ao nosso direito de manter e portar armas”, disse a organização em um comunicado. À medida que o país volta a estar de luto, o clube com mais de cinco milhões de membros se reunirá no Centro de Convenções George R. Brown em Houston como se nada tivesse acontecido. O evento onde Trump será recebido é patrocinado pela Townhall Media/Bearing Arms. Parte da indústria e comércio de armas.
No ano passado, cerca de 4,7 milhões de americanos solicitaram que seus registros criminais fossem verificados para que pudessem comprar armas em 2022. Foi um número recorde, de acordo com o FBI. Quando se explora a idiossincrasia do habitante dos Estados Unidos que compra fuzis ou pistolas, não é a única estatística que causa alarme além de suas fronteiras. De acordo com a rede de notícias CNN, dos 650 milhões de armas em poder de civis no mundo, 48% estão nos Estados Unidos, um verdadeiro arsenal de destruição em massa, e não aquele que George W. Bush atribuiu maliciosamente ao Iraque de Saddam Hussein até invadi-lo e destruí-lo como um país independente.
A Segunda Emenda antecede até mesmo a consolidação do Estado-nação porque entrou em vigor naqueles territórios que ainda não estavam organizados e as armas eram necessárias para a autodefesa. Três séculos depois, a percepção de que possuir um arsenal é quase um direito divino não mudou no imaginário coletivo alimentado pela indústria de Hollywood. Ter acesso a um fuzil ou balas de grosso calibre no supermercado equivale a comprar um quilo de pão ou um litro de leite em outros países sem a Segunda Emenda.
Uma estatística Gallup de outubro de 2021 baseada na resposta à pergunta, “você acha que deveria existir ou não uma lei que proibisse a posse de armas de fogo, exceto pela polícia e outras pessoas autorizadas?”, descobriu que 80% dos consultados eram contra, 19% a favor e 1% não tinha opinião. O mesmo estudo apontou que desde 1959 a recusa de qualquer obstáculo ao porte de armas vinha aumentando constantemente. Naquele ano, atingiu apenas 36% da população.
Para o homem branco, conservador e seguidor habitual do Partido Republicano, as armas estão associadas a um ritual de iniciação, um sintoma de virilidade que o torna um potencial perigo. Em um artigo publicado em um meio de comunicação apoiado pela Associação Nacional do Rifle, seus autores dizem que “apesar dos argumentos do governo Biden, cidadãos armados ajudam a manter as pessoas mais seguras”.
Também reclamam que os atrasos do Estado nas autorizações para o porte de armas “podem deixar os inocentes indefesos durante muito tempo; isso é especialmente verdadeiro para vítimas de perseguidores e para pessoas que fogem da violência doméstica. O mesmo vale quando a ordem civil é quebrada, como durante tumultos ou desastres naturais, momentos em que a aplicação da lei é muitas vezes sobrecarregada. Alguns escritórios de licenciamento, por exemplo, fecharam ou desaceleraram durante a pandemia da Covid-19”.
Com a Segunda Emenda como álibi legal, os acólitos da Associação Nacional do Rifle defendem o porte de armas longas como se fizessem parte das forças armadas. Em outra publicação da NRA intitulada “Quais armas de fogo têm proteções de ‘uso comum’?”, cita-se uma decisão da Suprema Corte de 1994 (Staples v. USA) que diz: “Para condenar uma pessoa por uma metralhadora não registrada, o governo deve provar que a pessoa sabia que daria disparos automaticamente. A opinião do juiz Clarence Thomas observou: "O AR-15 é a versão civil do rifle militar M-16 e, a menos que seja modificado, é uma arma semiautomática”.
Em um país como os Estados Unido, onde muitos crimes têm uma forte conotação racial, um estudo da Universidade de Rice sustenta que “as atitudes dos estadunidenses sobre a posse de armas se veem afetadas pelo gênero e raça dos possíveis proprietários de armas de fogo”. Em outras palavras, os cientistas autores do estudo Matthew Hayes, David Fortunato e Matthew Hibbing concluíram que há evidências de que os republicanos são mais propensos a defender os direitos das armas do que os democratas. Mas que estes últimos, se brancos, são muito mais propensos a apoiar o direito de uma mulher branca de possuir uma arma de fogo do que qualquer outro grupo.
Os republicanos que apoiam Trump – de acordo com o estudo – também se distinguem por uma característica: são menos favoráveis a que os negros tenham acesso a armas do que qualquer outro grupo racial ou de gênero. Para esse arquétipo de caubói, a Segunda Emenda é uma coisa de brancos. Entre 2020 e 2021, mais de 14 milhões de americanos compraram armas pela primeira vez. Uma pistola ou um fuzil são uma parte indispensável de sua indumentária.
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Massacre no Texas: os Estados Unidos ainda vivem no século XVIII - Instituto Humanitas Unisinos - IHU