18 Março 2022
A teóloga e especialista nas áreas de ecologia e ecofeminismo Arianne van Andel conversou com Télam sobre a relação entre religião, justiça socioambiental e feminismos.
A entrevista é de Augusta Ramos, publicada por Télam, 11-03-2022. A tradução é do Cepat.
“Os movimentos feministas e ambientalistas também têm espiritualidade: estão criando novas narrativas que às vezes não estão tão longe do religioso”, assegura Arianne van Andel, teóloga e especialista nas áreas de ecologia e ecofeminismo, lembrando que “a espiritualidade é também um motor de paixão e mexe muito porque conecta com sentidos muito profundos”.
Nascida na Holanda, em 2005 Arianne fixou suas bases no Chile, mais especificamente em Santiago, onde se apaixonou por um chileno e por aquele país. Aí ela continuou seus estudos em Teologia, iniciados na Universidade Livre de Amsterdã, e os aprofundou na perspectiva ambiental e de gênero.
“Aqui na América Latina percebi com mais força o impacto da crise ambiental. Deparei-me com zonas de sacrifício, com comunidades que sofrem com a mineração, com os povos originários que lutam para defender seu território”, conta a Télam.
Por esse caminho, tornou-se membro da Mesa Cidadã sobre Mudança Climática no Chile, onde representa a organização Otros Cruces, participou da subcomissão de Direitos Humanos da Convenção Constituinte do Chile e é autora de Teología en Movimiento. Ensayos eco-teológicos y feministas para tiempos de cambio (Teologia em movimento. Ensaios ecoteológicos e feministas para tempos de mudança).
Por que é necessário aprofundar o diálogo entre religião, movimentos ambientalistas e feminismos?
Quando falamos de religião, falamos de narrativas de sentido que criam visões sobre quem somos como seres humanos e como nos relacionamos uns com os outros e com a natureza. Por isso é muito importante repensar o diálogo com o movimento feminista, pois aí essas relações também estão sendo repensadas. Pode haver embates e também possibilidades de diálogo que são necessários se quisermos repensar as nossas relações e ter uma sociedade mais igualitária.
A mesma coisa acontece com a natureza. Nossa relação com ela é absolutamente determinada pela cultura, pela religião e pelos valores que, embora não sejamos de uma religião específica, mesmo assim carregamos conosco ao longo da história.
Enquanto isso, sobre a relação entre feminismos e natureza, as correntes ecofeministas acreditam que nossa maneira de ver o mundo tem sustentado uma lacuna de gênero e entre seres humanos e natureza, em que as mulheres têm sido mais associadas à natureza e a tudo o que diz respeito à reprodução da vida. Por isso, sustentam que existe uma conexão entre o que nos faz explorar a natureza e o que nos faz discriminar as mulheres.
Nesse processo, como se pode repensar o discurso religioso levando em conta as vozes de atores – como as mulheres, a diversidade sexual e aqueles ligados à luta ambiental – que não foram valorizados?
Temos uma imagem da religião como um todo. No entanto, existem muitas religiões e nas mesmas comunidades há uma diversidade de opiniões. Dentro das narrativas da religião, há sempre contranarrativas. Ao longo da história houve mulheres, pessoas e correntes que questionaram as desigualdades que são legitimadas pela religião.
Acredito que temos que questionar fortemente as narrativas dualistas que promovem a desigualdade, a não decisão das mulheres ou que colocam as mulheres em segundo plano, e também a natureza.
O que você acha da rejeição que a religião desperta em grande parte de setores progressistas, de esquerda ou feministas da sociedade?
Na Otros Cruces vimos o perigo da rejeição por parte das correntes de esquerda e movimentos feministas de tudo o que cheira a religião. É compreensível porque, por exemplo, pessoas da comunidade LGBTQIA+ têm experiências muito dolorosas com a religião. Mas se você rejeita tudo, você deixa tudo o que é religião nas mãos das correntes conservadoras.
Nós tentamos mostrar que os movimentos feministas e ambientalistas também têm espiritualidade: estão criando novas narrativas que às vezes não estão tão distantes da religião. A espiritualidade também é um motor de paixão e mobiliza muito porque conecta com sentidos muito profundos.
Como você vê a expansão de movimentos ultraconservadores como “Não se meta com meus filhos”?
É preocupante. Há uma parte da religião que opta por valores muito fixos, soluções imediatas, fundamentalistas e conservadoras. O crescimento desses movimentos tem a ver com uma idealização de algo que acho que nunca existiu, uma saudade de uma família ‘ideal’ com filhos onde todos são felizes. Na Otros Cruces estamos tentando tornar visíveis as vozes que pensam diferente sobre essas questões dentro das religiões. Assim, buscamos mostrar que existem outras respostas, comunidades LGBTQIA+ religiosas, teólogas feministas, grupos que têm mais dúvidas do que certezas, o que eu penso que seja muito mais saudável.
E a reivindicação da separação entre Igreja e Estado?
O Estado deve ser capaz de governar em um Estado laico para todas as religiões, espiritualidades, visões de mundo e pensamentos ateístas também. Deve promover e facilitar o diálogo. Na América, com uma história de colonização e a religião dominante do catolicismo, geralmente não temos um Estado laico na prática. Primeiro você tem que fazer essa separação para que o Estado realmente governe para todos.
Como você vê a situação ambiental na América Latina?
Pela primeira vez estamos vendo a gravidade da crise climática. Na América Latina vemos a implementação do modelo neoliberal do extrativismo: mineração, agroquímicos, desmatamento, fazendas de salmão no Chile. Uma superexploração da terra para gerar recursos com vistas à exportação. Isso agrava a crise climática. Os incêndios são um bom exemplo disso. Por um lado, são causados pela crise climática que faz subir a temperatura média da Terra. Por outro lado, também estão relacionados com as espécies que plantamos, a quantidade de água disponível, e isso tem a ver com a gestão do território local.
Um dos principais atores da luta ambiental são as comunidades indígenas que buscam preservar os territórios em que vivem. Como você vê a relação atual entre o cristianismo e as comunidades ancestrais?
Historicamente, é um vínculo que remonta à colonização e sempre esteve baseado na discriminação, na falta de compreensão ou valorização das visões de mundo, das espiritualidades e formas de se relacionar com a terra dos povos originários. Em geral, esses povos são os que mais cuidam e sabem administrar os recursos naturais de maneira responsável, que conhecem mais a biodiversidade de cada lugar e que defendem seus territórios com mais paixão. Por isso são eles os que mais sofrem: na América Latina os mais assassinados são as lideranças indígenas.
Em alguns países, a relação com esses povos está mudando um pouco. No Chile, estamos muito esperançosos com o processo constituinte, no qual os povos originários têm assentos e pensamos em um Estado mais plurinacional. Além disso, estamos trabalhando muito para que seja uma Constituição ecológica e aí podem mudar alguma coisa nessas relações.
Tenho a sensação de que são esses povos e suas visões que podem ser a chave para salvar esta humanidade neste momento.
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“Os movimentos feministas também têm espiritualidade”. Entrevista com Arianne van Andel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU