25 Fevereiro 2022
"O que sensatamente podemos dizer é que o sofrimento pertence à ordem do mistério do ser. Não há uma resposta ao porquê de sua existência. Se houvesse, ele desapareceria. Mas ele continua como uma chaga aberta em qualquer direção para onde dirigirmos o olhar", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.
A catástrofe ecológica ocorrida em Petrópolis no mês de fevereiro de 2022 com chuvas diluvianas, imensos deslizamentos de encostas, inundações de inteiras regiões, destruição de centenas de casas, caminhos e ruas e com quase 300 vítimas entre mortos e desaparecidos, coloca questões políticas, ecológicas, de responsabilidade dos poderes públicos e de consequências devidas à nova fase da Terra sob o acelerado aquecimento global.
Houve irresponsabilidade dos poderes públicos por não terem cuidado das populações pobres, empurradas para as escarpas da cidade. Há o fato geofísico da serra com densas matas sustentadas sobre rochas e solos encharcados pelas chuvas que ocasiona deslizamentos. Há a própria população que, por falta para onde ir, se instalou em lugares perigosos. Há o alarme ecológico-climático que desequilibra o regime das chuvas que se manifestou em várias regiões do país e agora na serra de Petrópolis mas de modo geral em todo o planeta, e outras razões que não cabe aqui arrolar.Todos estes dados mereceriam ser aprofundados e até apontar culpados.
Mas junto a isso, emerge uma questão existencial e teológica incontornável: Muitos se perguntam: Onde estava Deus nestes momentos dramáticos em Petrópolis, causadores de tantas vítimas, muitas delas inocentes? Por que Ele não interveio se, por ser Deus, poderia tê-lo feito? A mesma pergunta continua reboar: onde estava Deus quando os colonizadores cristãos cometeram bárbaros genocídios de indígenas ao ocuparem suas terras nas Américas? Por que Deus se calou diante da Shoá, o extermínio de seis milhões de judeus enviados às câmaras de gás pelos nazistas ou os mortos nos Gulags soviéticos? Onde Ele estava?
Esta lancinante questão não é de hoje. Possui uma longa história, desde o filósofo grego Epicuro (341-327aC) que por primeiro a formulou,chamada de “o dilema de Epicuro”. É a irrevogável relação de Deus com o mal. Epicuro assim argumentava: “Ou Deus quer eliminar o mal e não pode, portanto, não é onipotente e deixa de ser Deus. Ou Deus pode suprimir o mal e não o quer, por isso não é bom e deixa de ser Deus”.
Num ambiente cristão, ganhou uma formulação semelhante: Ou Deus poderia ter evitado o pecado de Adão e Eva, base de nossa maldade, e não o quis, então não é bom para nós humanos ou Deus não pôde de por isso não quis, não sendo, portanto, onipotente e, por isso, não é também bom para nós. Em ambos os casos, deixa de comparecer como o Deus verdadeiro. Esse dilema permanece aberto até hoje, sem ser respondido adequadamente com os recursos da razão humana.
As ecofeministas, com razão, sustentam que essa visão de um Deus onipotente e senhor absoluto é uma representação da cultura patriarcal que se estrutura ao redor de categorias de poder. A leitura ecofeminista se orienta por outra representação de um Deus-Mãe, ligado à vida, solidário com o sofrimento humano e profundamente misericordioso. Ele está sempre junto do sofredor.
Independente desta discussão de gênero, há que se afirmar que o Deus bíblico não se mostra indiferente ao sofrimento humano. Face à opressão no Egito de todo o povo hebreu, Deus escutou o grito dos oprimidos, deixou sua transcendência, entrou na história humana para libertá-los (Ex 3,7). Os profetas que inauguraram uma religião, baseada na ética, ao invés de nos cultos e nos sacrifícios, testemunham a Palavra de Deus:”estou cansado e não suporto vossas festas…procurai o direito, corrigi o opressor, julgai a causa do órfão e defendei a viúva”(Is 1,14.17). Quero misericórdia e não sacrifícios!
À base desta visão bíblica houve teólogos como Bonhoeffer e Moltmann que falam de “um Deus impotente e débil no mundo”, de um “Deus crucificado” e que somente este Deus que assume o sofrimento humano nos pode ajudar. O exemplo maior nos teria sido dado por Jesus, Filho de Deus encarnado que se deixou crucificar e que, no limite do desespero, grita:”Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste”(Mc 15,34)?
Essa visão nos mostra que Deus nunca nos abandona e que participa da paixão humana. O fiel pode superar o sentimento de abandono e de desamparo e sentir-se acompanhado. Pois, o terrível do sofrimento não é apenas o sofrimento, mas a solidão no sofrimento,quando não há ninguém que lhe diga uma palavra de consolo e dê um abraço de solidariedade. Então, o sofrimento não desaparece mas se torna mais suportável.
Entretanto, a questão fica em aberto: por que Deus tem que sofrer também, mesmo estabelecendo um laço profundamente humano com o sofredor, aliviando sua dor? Por que o sofrimento no mundo e até em Deus?
Não cala nosso questionamento a constatação de que o sofrimento pertence à vida e que o caos é da estrutura do próprio universo (uma galáxia engolindo outra com uma inimaginável destruição de corpos celestes).
O que sensatamente podemos dizer é que o sofrimento pertence à ordem do mistério do ser. Não há uma resposta ao porquê de sua existência. Se houvesse, ele desapareceria. Mas ele continua como uma chaga aberta em qualquer direção para onde dirigirmos o olhar.
Talvez emerja um sentido na luta pela superação do sofrimento: sofrer para que outros não sofram ou sofram menos. Esse sofrimento é digno e nos humaniza. Mas não deixa de ser sofrimento. Por isso nos solidarizamos e sofremos junto com os familiares de Petrópolis e de outros lugares, que perderam entes queridos e rezamos pelas vítimas.
É um ato de razão, a razão reconhecer aquilo que a ultrapassa. Ela se inclina diante de Algo maior, diante do mistério e se obriga a admitir que o sofrimento está aí, produz tragédias e mortes de inocentes. Não há resposta a ele. Ela fica reservada a Deus, Aquele Ser que faz ser todos os seres. A Ele cabe a revelação definitiva do sentido do sem-sentido.
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Deus e o sofrimento humano: questão nunca resolvida. Artigo de Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU