A noite americana de François Truffaut: Uma declaração de amor ao cinema. Artigo de Faustino Teixeira

Jean-Pierre Léaud, Jacqueline Bisset e François Truffaut em A Noite Americana, 1973 | Foto: Divulgação

17 Dezembro 2021

 

"Para Truffaut os filmes eram mais importantes que a vida. Deixava sua vida de lado para vivenciar os filmes. O seu amor pelo cinema era imenso. Era feliz quando estava filmando", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Faustino Teixeira possui graduação em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, graduação em Filosofia pela UFJF, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutorado em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana. Atualmente é professor convidado da UFJF no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, depois de sua aposentadoria como professor titular na mesma Universidade, em 2017. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, atuando principalmente nos seguintes temas: religiões, pluralismo religioso, diálogo inter-religioso, catolicismo e mística.

 

Teixeira é autor de vasta obra. Entre suas publicações, destacamos: Buscadores cristãos no diálogo com o Islã (Paulus: 2015), Cristianismos e Teologia da Libertação (Fonte Editorial: 2014), Teologia e pluralismo religioso (Nhanduti: 2012) e Sociologia da Religião: Enfoques Teóricos (Vozes: 2003). 

  

Eis o artigo. 

 

A noite americana (1973), de François Truffaut (1932-1984) é uma das mais belas declarações de amor ao cinema que já foram feitas. Quando o diretor fez esse filme, estava já com 41 anos, com uma longa bagagem, tendo realizado 12 longas metragens num espaço de 14 anos, entre 1959 e 1973. É o segundo filme do diretor onde ele também aparece como ator. O primeiro foi O garoto selvagem, de 1970.

 

 

Trata-se de um filme dentro do filme [1], a celebração do trabalho cinematográfico. O título, A noite americana reflete o efeito típico dos filmes de Hollywood em que, por meio de um filtro, rodam-se cenas diurnas como se fossem noturnas.

 

O diretor amava os filmes americanos, com sua magia e tradição. Era um cineasta que encarava o cinema como um prolongamento da juventude, como nas brincadeiras de criança: “Queremos recriar algo como num conto de fadas ou no cinema americano, que tanto nos fez sonhar quando jovens” [2].

 

Truffaut desenvolve nesse filme singular a história de uma filmagem: ele quer nos mostrar que “os bastidores de uma filmagem são sempre muito mais interessantes do que o filme em si” [3]. Vemos aqui a produção de um filme como arte coletiva: obra de muitas pessoas.

 

Podemos acompanhar pormenorizadamente essa arte de trabalho minucioso. Podemos acompanhar no filme os atores repetindo diversas vezes as falas e as câmaras bisando cada tomada. Tudo isto para mostrar ao espectador “como é difícil a filmagem de cada plano, de cada sequência” [4].

 

Se os personagens do filme são figuras simples, os atores que os interpretam são “complexos, complicados e multifacetados”, dirá o diretor Ferrand (interpretado por Truffaut) em certo momento, direcionando-se a Alphonse (interpretado por Jean-Pierre Léaud): “Você é ótimo ator e trabalha bem. Há sua vida particular, e nenhuma vida é perfeita. Filmes são mais harmoniosos, mais controláveis que a vida. Não há engarrafamentos, nem tempos mortos. Filmes avançam como trens, entende? Trens na noite. Gente como você e eu é feita para ser feliz no trabalho do cinema”.

 

O garoto selvagem - legendado pt br from Silvana on Vimeo.

 

Em outro momento, o diretor dirá: “Fazer um filme é como viajar numa diligência no Velho Oeste. Quando você embarca, espera ter uma viagem agradável. Lá pelo meio, tudo que você deseja é conseguir sobreviver”.

 

Não é fácil a tarefa de direção cinematográfica: “o diretor é um homem a quem fazem perguntas sobre todas as coisas. Às vezes ele sabe a resposta”. Numa de suas entrevistas após o lançamento do filme A noite americana, Truffaut diria que a melhor maneira que ele poderia encontrar para ignorar algumas perguntas era fingir que tinha problemas auditivos.

 

A grande arte de Truffaut, reconhecida pela linda atriz Jacqueline Bisset (que faz o papel de Julie Baker – a atriz inglesa que faz o personagem do titulo, Pamela) é saber mediante toques sutis, extrair grandes interpretações [5]. Num dos extras que acompanham O DVD sobre o filme [6], há uma pertinente reflexão da estudiosa Anette Insdorf, que fez igualmente uma biografia sobre o diretor.

 

Segundo Bisset, nos filmes de Truffaut, os atores “simplesmente viviam”; eram reconhecidos e bem tratados pelo diretor. Ela disse: “Ele deu-me instruções precisas em certas cenas”, como na posição das mãos. Um dos lindos momentos do filme; também quando ela sai fora do set com o marido e pede-lhe um beijo. O diretor aproveita a “cena”, indicando para Bisset ir devagar e olhar em volta.

 

Ele dizia, simplesmente: “olhe para lá”, ou então “olhe para cá”. Num momento que não tinha nada a ver com o que se passava no filme, o diretor aproveita um momento de naturalidade, que Bisset reconheceu que ficou lindo: “Aprendi a confiar nele” [7].

 

Há uma delicada cena em que os novos amantes, Alexandre e Pamela (sogro e nora de Alphonse), estão num hotel. Eles já concluíram o café da manhã, e Pâmela leva para fora do quarto a bandeja: uma forma de dizer para as camareiras: não perturbem.

 

E então ocorre a cena do gato que vai comer o resto que está na bandeja, colocada no chão. Algo bem semelhante ocorrera em outro filme, La peau douce (Um só pecado, 1964), o quarto longa metragem de Truffaut. Ali também a câmara, discretamente, recolhe-se para não mostrar o ato de amor que se passa entre as quatro paredes do quarto.

 

 

Truffaut era um diretor “perfeccionista não dogmático”, como assinalou a estudiosa e professora americana, Anette Insdorf. Ele “nunca dava ordens, só pedia”. Com grande maestria, conseguia recolher dos artistas grandes momentos de criatividade e arte.

 

Bisset fala também da paciência do diretor, como no cuidado em lidar com a sua pronúncia francesa. Tranquilizava-a nesse campo, justificando que ela não estava fazendo papel de francesa no filme.

 

Sua paciência ocorria igualmente com uma das atrizes do filme, Séverine, que faz o papel da mãe de Alphonse (interpretada pela veterana atriz italiana Valentina Cortese). Em sua presença no filme ela excede no uso de champagne e tem grande dificuldade de memorizar suas falas. Por diversas vezes ela tenta, e erra ... por diversas vezes.

 

Tudo para mostrar a solidariedade de Truffaut com os intérpretes de seus filmes, também com as atrizes que vão envelhecendo, vivendo a experiência da vulnerabilidade, como Séverine.

 

Truffaut era um diretor que adorava as atrizes, as mulheres, a “magia das mulheres”. O cuidado dele com o porte das atrizes, a postura das mãos, os pequenos detalhes. No filme em questão vemos igualmente a sua consideração pelo tema da homossexualidade, que envolve os personagens Alexandre e seu companheiro gay. Ele aparece sempre com pressa, para se encontrar com seu jovem amigo no aeroporto.

 

Dizia o diretor que tristes eram os filmes sem mulheres, como os filmes de guerra, por exemplo. O que eles têm de melhor é quando “um soldado tira do bolso a fotografia de uma mulher e a olha” [8].

 

Como sublinhou Bisset na citada entrevista, para Truffaut os filmes eram mais importantes que a vida. Deixava sua vida de lado para vivenciar os filmes. O seu amor pelo cinema era imenso. Era feliz quando estava filmando.

 

Em cena magnífica do filme, vemos os rolos de celulose se entrelaçarem como se fossem amantes num filme mais tradicionalmente romântico...

 

Outra cena marcante, é a que revolve o sono do diretor Ferrand, quando aparece um menino batendo a bengala na noite escura de Paris, sendo que na terceira sequência, ele chega ao cinema e rouba os cartazes do filme Cidadão Kane, de Orson Welles.

 

 

Vale registrar também a relação de Truffaut com Jean-Pierre Léaud, que se iniciou quando Léaud tinha apenas 15 anos de idade (no filme, os incompreendidos, de 1959): um filme abertamente autobiográfico [9].

 

O diretor e o ator seguem juntos na trilogia: “Beijos proibidos” (1968), “Domicílio Conjugal” (1970) e “O amor em fuga” (1979): “Poucos atores de cinema tiveram seu crescimento e sua evolução profissional acompanhados tão de perto pelos cinéfilos como Jean-Pierre Léaud” [10]. Em reflexão publicada no Cahier du Cinéma, em número especial de 1984, o ator Jean-Pierre Léaud sublinha:

 

“Eu devo tudo a François. Não só ele me passou seu amor pelo cinema, mas também me deu o mais belo trabalho do mundo. Ele fez de mim um ator. Hoje, o ator prefere se calar e deixa falar as personagens. François era o homem que eu mais amava no mundo. Ele dizia a mesma coisa do seu amigo André Bazin. Sinto a falta dele. Sentimos a falta deles” [11].



Além de trabalhar com Truffaut, Jean-Pierre Léaud atuou sob a direção de Jean Jean-Luc Godard, em filmes como Week-End à francesa (1967) e A chinesa (1967). Esse clássico ator da Nouvelle Vague atuou ainda em filmes do Cinema Novo, como O leão de sete cabeças (Glauber Rocha) e Os herdeiros (Cacá Diegues).

 

Sobre o amor de Truffaut aos diretores, há uma cena magnífica no filme, que envolve também a presença do compositor Georges Delarue, dos melhores em trilhas sonoras, que trabalhou com Truffaut em “A noite americana”, e também em outros filmes, como “Duas inglesas e o amor”(1971).

 

Há uma cena, em que o diretor Ferrand recebe uma ligação do compositor Delarue, e o espectador ouve uma linda peça musical, que esteve na trilha de “Duas inglesas e o amor” (quando Claude e Anne, personagens do filme, têm o seu primeiro interlúdio amoroso numa ilha). Uma música associada ao amor.

 

É a música que serve de trilha para o momento onde o diretor abre um pacote de livros, que vão se espalhando na mesa, com os nomes de grandes diretores, apreciados por Truffaut como Rosselini, Hitchcok, Goddard, Buñuel, Carl Dreyer, Bergman, Erns Lubitsch, Roberto Bresson e Howard Hawks.

 

 

O seu amor aos livros está também presente no filme de 1966: Farenheit 451, que termina com uma das mais belas cenas de amor e respeito pela literatura: numa sociedade futurista repressiva, onde os livros são objetos de censura e destruição, os internos de um manicômio “passam os dias recitando o texto de um livro clássico para, uma vez decorado, salvá-lo do extermínio e transmití-lo à posteridade” [12].

 

 

Ao analisar o filme Noite Americana, em especial a relevância de François Truffaut, o escritor Alberto Moravia sublinhou que o diretor “ao contrário de tantos de seus colegas, não enxerga o cinema como espaço privilegiado de uma falsidade misteriosa e inesgotável; a contrário, ele nutre por sua profissão um sentimento de afeição, gratidão e de amor (...). O cinema é uma forma de vida, ou melhor, um substitutivo válido da vida” [13].

 

Notas:

[1] Dentro do filme A noite americana, o filme “Je vous présent Pamela” (Eu vos apresento Pamela; ou então: Esta é a Pamela). No filme Pamela apaixona-se pelo seu sogro, Alexandre: os dois fugirão. No desenvolvimento do filme, Alphonse, aquele que foi traído, vai em busca de vingança.

[2] François Truffaut. Cinématographe 70, 150, 1970.

[3] Tiago Mata Machado. “A noite americana Truffaut filma e festeja o próprio métier do cinema. Folha de São Paulo, 23 de maio de 2003 (Ilustrada).

[4] Sérgio Vaz. + de 50 anos de filmes. A noite americana.

[5] A arte de Truffaut. DVDversátil, com vídeos extras (2 discos).

[6] Ibidem.

[7] Ibidem.

[8] François Truffaut. O último metrô. Grandes diretores no cinema. Coleção Folha de São Paulo, v. 3 (O último metrô), 2018 (livreto que acompanha o DVD, p. 17)

[9] Truffaut nasceu numa família modesta de Paris. Viveu uma infância solitária, marcada pela falta da figura paterna e por pequenos atos de delinquência. Encontrada refúgio nos livros (Balzac) e nas salas de cinema.

[10] François Truffaut. Os incompreendidos. Coleção Folha de São Paulo, v. 15, 2011 (Livreto que acompanha o DVD, p. 52)

[11] Ibidem, p. 55.

[12] Ibidem, p. 27-28.

[13] François Truffaut. O último metrô. Grandes diretores no cinema, p. 8.

 

Leia mais