"O dia da Sobrecarga da Terra ocorre cada vez mais cedo. Na verdade, o que precisamos é superar as Eras do Antropoceno e do Piroceno e caminhar para a Era do Ecoceno, onde o respeito ao meio ambiente coloque a Ecologia no centro do mundo, possibilitando que o ser humano possa viver em paz e harmonia com a biodiversidade e os ecossistemas, repartindo irmãmente e fraternalmente a Nossa Casa Comum, numa verdadeira Ecosfera saudável e feliz", escreve José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador em meio ambiente, em artigo publicado por EcoDebate, 29-11-2021.
O fogo está moldando o planeta como causa, consequência e catalisador. A escala é vasta, o ritmo acelerado.
“Podemos sobreviver sem uma ciência do fogo, mas não podemos viver sem uma cultura do fogo – uma que garante o lugar adequado do fogo na paisagem” - Stephen Pyne
O Homo sapiens surgiu e se espalhou pelo mundo no período geológico do Pleistoceno, mas foi no Holoceno que floresceu a civilização e a espécie humana se tornou uma força onipresente no território global. A população mundial era de cerca de 4 milhões de habitantes no início do período Holoceno, há cerca de 12 mil anos. A estabilidade climática do Holoceno propiciou o florescimento do desenvolvimento econômico e social e o ser humano expandiu as atividades agrícolas, a domesticação dos animais, construiu cidades e montou uma máquina de produção e consumo de bens e serviços jamais vista nos 4,5 bilhões de anos da Terra.
O crescimento da população e da produção foi de tal ordem que prêmio Nobel de Química, Paul Crutzen, avaliando o grau do impacto destruidor das atividades humanas sobre a natureza afirmou que o mundo entrou em uma nova era geológica, a do Antropoceno, que significa “época da dominação humana”. Representa um novo período da história do Planeta, em que o ser humano se tornou a força impulsionadora da degradação ambiental e o vetor de ações que são catalizadoras de uma provável catástrofe ecológica.
Mas o Antropoceno é também a era do Piroceno. A palavra foi cunhada em 2015 por Stephen Pyne, professor emérito da Escola de Ciências da Vida da Universidade Estadual do Arizona. Piroceno foi encarado, inicialmente, apenas com um conceito a mais. Os seres humanos sempre deixaram sua marca no Planeta com fogo, primeiro para adaptar grandes áreas para caçar e criar assentamentos, depois para alimentar as pessoas, abrigar em casas, garantir a mobilidade por meio de navios, trens e carros e para criar conforto e bem-estar para uma população crescente. Mas, no Antropoceno, as queimadas geram custos cada vez maiores e o Piroceno virou uma evidência irrefutável.
O Antropoceno é uma Era sincrônica à modernidade urbano-industrial. A Revolução Industrial e Energética que teve início na Europa no último quartel do século XVIII deu início ao uso generalizado de combustíveis fósseis e à produção em massa de mercadorias e meios de subsistência, possibilitando uma expansão exponencial das atividades antrópicas.
Em 250 anos, a economia global cresceu 135 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 15 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o de todo o período dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. Mas todo o crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas do encolhimento e empobrecimento do meio ambiente. O conjunto das atividades antrópicas ultrapassou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica da humanidade extrapolou a Biocapacidade do Planeta. A dívida do ser humano com a natureza cresce a cada dia e a degradação ambiental pode, no limite, destruir a base ecológica que sustenta a economia e a sobrevivência humana.
No Antropoceno, a humanidade danificou o equilíbrio homeostático existente em todas as áreas naturais. Alterou a química da atmosfera, promoveu a acidificação dos solos e das águas, poluiu rios, lagos e os oceanos, reduziu a disponibilidade de água potável, ultrapassou a capacidade de carga da Terra e está promovendo uma grande extinção em massa das espécies. O egoísmo, a gula e a ganância humana provoca danos irreparáveis e um ecocídio generalizado, que pode se transformar em suicídio.
As emissões de gases de efeito estufa (GEE) romperam com o nível de concentração de CO2 na atmosfera, de no máximo 280 partes por milhão (ppm) prevalecente durante todo o Holoceno, e, em 2019, já está acima de 410 ppm e subindo cerca de 2,5 ppm ao ano, na atual década.
Com mais GEE na atmosfera, a temperatura média tem subido e a Terra está acima de um grau mais quente do que o período pré-industrial, podendo iniciar um período de descontrole climático. Esta possibilidade foi aventada em estudo de Steffen e colegas (2018) que indicou que a Terra pode entrar em uma situação com clima tão quente que pode elevar as temperaturas médias globais a até cinco graus Celsius acima das temperaturas pré-industriais. Isto teria várias implicações, como acidificação dos solos e das águas e aumentos no nível dos oceanos entre 10 e 60 metros.
O estudo mostra que o aquecimento global causado pelas atividades antrópicas de 2º Celsius pode desencadear outros processos de retroalimentação, podendo desencadear a liberação incontrolável na atmosfera do carbono armazenado no permafrost, nas calotas polares, etc. Em função do efeito dominó, as “esponjas” que absorviam carbono podem se tornar fontes de emissão de CO2 e piorar significativamente os problemas do aquecimento global. Isto provocaria o fenômeno “Terra Estufa”, o que levaria à temperatura ao recorde dos últimos 1,2 milhão de anos. Os seja, caso este cenário se torne realidade, seria algo parecido com o apocalipse para a vida humana e não humana no Planeta.
Segundo Stephen Pyne (08/10/2020), ao suprimir todos os incêndios florestais e incessantemente queimar combustíveis fósseis, os humanos perturbaram o papel que o fogo historicamente desempenhou em fornecer equilíbrio ecológico. Assim, é preciso repensar nossa visão sobre o fogo e aceitar sua presença, mudando a forma como administramos as terras e planejamos nossas comunidades.
Pyne constata que os incêndios estão aparentemente em toda parte, e em todos os lugares e cada vez mais ferozes. Eles estão queimando do Ártico à Amazônia, de Nova Gales do Sul à Costa Oeste dos EUA. São visíveis, e sua fumaça projeta sua presença na forma de imensas mortalhas bem afastadas das chamas. Mas igualmente significativos são os incêndios que não estão acontecendo. A Terra é um planeta de fogo, o único que conhecemos. Teve incêndios desde que as plantas nasceram na terra. Remover o fogo de paisagens que co-evoluíram ou coexistiram com ele pode ser tão desastroso quanto colocar fogo em paisagens que não têm história disso. Os incêndios que não vemos – os incêndios que deveriam estar lá e não estão – são um índice de perda ecológica, como a imposição de uma seca em uma paisagem normalmente exuberante.
Ele argumenta que temos muitos incêndios ruins – incêndios que matam pessoas, queimam cidades e destroem paisagens valiosas. Mas também temos alguns poucos bons – incêndios que aumentam a integridade ecológica e mantêm os incêndios dentro de suas faixas históricas. Ao mesmo tempo, com a queima incessante de combustíveis fósseis, temos muita combustão no planeta em geral. A questão é: como a presença do fogo na Terra se tornou tão perturbadora?
Ainda segundo Pyne, o contraste crítico reside em uma dialética mais profunda do que as paisagens queimadas e não queimadas. É uma dialética entre queimar biomassa viva e queimar biomassa fóssil. Estamos retirando coisas do passado geológico, queimando-as no presente com todos os tipos de consequências pouco compreendidas e passando o efluente para o futuro geológico. Habitamos paisagens vivas. Mas temos alimentado cada vez mais esse mundo queimando paisagens líticas, ou seja, biomassa que já existiu, agora fossilizada em formas como carvão e petróleo. Esse choque de reinos de combustão está ondulando não apenas através dos regimes de fogo da Terra, mas seu ar, sua água e sua vida vegetal e animal. Incêndios em paisagens vivas vêm com controles e equilíbrios ecológicos.
Os incêndios em paisagens líticas não têm limites, exceto aqueles que os humanos impõem a si próprios. Cada vez mais, o fogo está moldando o planeta como causa, consequência e catalisador. A escala é vasta, o ritmo acelerado. Artigo de Adam Vaughan (08/09/2021) mostra que pelo menos 33 mil mortes ocorreram no mundo em função da poluição e das queimadas do mundo.
No início de outubro de 2021 o interior de São Paulo (assim como estados vizinhos) foi atingido por fortes tempestades de poeira, devido à falta de chuvas e os terrenos desmatados e assoreados. Em uma fazenda em Santo Antônio do Aracanguá, o fogo atingiu pastagens, canaviais e áreas de preservação, sendo que 4 pessoas morreram. As tempestades de poeira estão virando fenômenos rotineiros no Sudeste e no Centro-Oeste. O roteiro é parecido em todos os casos: a chegada de ventos fortes associados com tempestades acaba levantando a terra ressecada do solo, criando nuvens densas de poeira (chamadas de haboob). No dia 15 de outubro, o aeroporto de Campo Grande, MS, as rajadas de vento atingiram mais de 94 km/h. O vento forte danificou construções e deixou diversos municípios do estado sem energia elétrica ao longo do final de semana. A passagem da nuvem de poeira transformou uma tarde ensolarada e quente em um cenário digno de blockbuster apocalíptico. Um barco-hotel naufragou no rio Paraguai próximo a Corumbá depois de virar na água por causa da ventania. Pelo menos sete pessoas morreram, sendo quatro da mesma família. Os danos econômicos e em vidas humanas são cada vez maiores com o agravamento do aquecimento global.
Além de repensar o Antropoceno e o Piroceno, Stephen Pyne considera que precisamos de uma cultura do fogo que funcione. Seria como Prometeu que roubou o fogo dos Deuses para iluminar o progresso humano. Ele defende a ideia de que podemos renovar nossa antiga aliança e transformar o que se tornou um inimigo implacável em um amigo indispensável. A queima de combustíveis fósseis e a emissão de gases de efeito estufa é o relacionamento errado que a civilização está tendo com o fogo. Portanto, o Piroceno pode nos levar à “Terra estufa”. Por conseguinte, a transformação do Antropoceno em Piroceno pode tornar difícil a sobrevivência global dos seres humanos e das espécies não humanas, transformando a Terra em um Planeta inabitável.
Existem pessoas que acham que o momento atual não é bem representado nem pelo conceito de Antropoceno, nem Piroceno, apresentando como alternativa o conceito de Capitaloceno, que atribui toda a culpa da crise climática e ambiental ao capitalismo. Acontece que o regime capitalista não é só uma relação social entre “expropriados e expropriadores”, mas também um modo de produção industrial baseado nos combustíveis fósseis voltado para atender o consumo em massa da população. Como disse Marx e Engels, em 1848, “a burguesia desempenhou um papel revolucionário na história”. O capitalismo é o modo de produção que mais gerou riqueza na história (e também a maior concentração de renda e propriedade).
Romper com a lógica concentradora de riqueza e com o modelo “Extrai-Produz-Descarta” do capitalismo é urgente e imprescindível. Mas, sair do regime da propriedade privada dos meios de produção para a propriedade estatal, pode até resolver os problemas da desigualdade e da alienação do trabalho, mas não muda necessariamente a relação com o meio ambiente se não for alterado a quantidade e a forma de produzir. Lembrando que na Revolução Socialista na Rússia, Lênin dizia que o socialismo é “eletricidade + sovietes”. Assim, sem surpresas, a URSS implementou um dos modos de produção mais poluidores de todos os tempos e o acidente nuclear de Chernobyl é apenas uma parte da degradação ambiental ocorrida durante o regime dos sovietes. A China que se autodefine como comunista é o país mais poluidor do Planeta.
O mundo precisa de mudanças no padrão de produção e consumo para conseguir evitar os efeitos catastróficos das mudanças climáticas e ambientais geradas no Antropoceno. Atualmente a produção mundial de bens e serviços exige recursos da natureza que estão acima da capacidade de regeneração do Planeta. Distribuir equitativamente a produção é uma questão de justiça social que deve ser implementada. Mas, do ponto de vista ecológico, não basta. É preciso decrescer a pegada ecológica não só dos mais ricos, mas do conjunto das atividades antrópicas (Dasgupta, 13/10/2021).
A Declaração de São Paulo sobre Saúde Planetária diz: “A humanidade, e de fato toda a vida na Terra, está em uma encruzilhada. Nas últimas décadas, a escala dos impactos humanos nos sistemas naturais da Terra aumentou exponencialmente a ponto de exceder a capacidade do nosso planeta de absorver nossos resíduos ou fornecer os recursos que estamos usando. O resultado é uma vasta e acelerada transformação e degradação da natureza. Isso inclui não apenas a mudança climática global, mas também a poluição em escala global do ar, da água e do solo; degradação das florestas, rios, sistemas costeiros e marinhos de nosso planeta; e a sexta extinção em massa da vida na Terra” (The Lancet, 05/10/2021).
O dia da Sobrecarga da Terra ocorre cada vez mais cedo. Na verdade, o que precisamos é superar as Eras do Antropoceno e do Piroceno e caminhar para a Era do Ecoceno, onde o respeito ao meio ambiente coloque a Ecologia no centro do mundo, possibilitando que o ser humano possa viver em paz e harmonia com a biodiversidade e os ecossistemas, repartindo irmãmente e fraternalmente a Nossa Casa Comum, numa verdadeira Ecosfera saudável e feliz.
O ser humano não é dono, mas sim parte da Comunidade Biótica Global, na qual todos os seres vivos estão inseridos. Nenhuma pessoa e nenhuma espécie pode ser feliz sozinha. O futuro da vida na Terra depende da prosperidade comum e compartilhada entre todas as espécies.
ALVES, JED. A crise do capital no século XXI: choque ambiental e choque marxista. Salvador, Revista Dialética Edição 7, vol 6, ano 5, junho de 2015. Disponível aqui.
MARTINE, G. ALVES, JED. Economia, sociedade e meio ambiente no século 21: tripé ou trilema da sustentabilidade? R. bras. Est. Pop. Rebep, n. 32, v. 3, Rio de Janeiro, 2015 (em português e em inglês). Disponível aqui.
MARTINE, G. ALVES, JED. “Disarray in Global Governance and Climate Change Chaos”, R. bras. Est. Pop., v.36, 1-30, e0075, 2019. Disponível aqui.
STEFFEN et. al. Trajectories of the Earth System in the Anthropocene, PNAS August 6, 2018. 06/08/2018. Disponível aqui.
KATE YODER. Como os humanos iniciaram o Piroceno, uma nova Era do Fogo, Eco21, Revista 275, outubro de 2019. Disponível aqui.
Adam Vaughan. Wildfire pollution linked to at least 33,000 deaths worldwide, New Scientist, 08/09/2021. Disponível aqui.
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Sir Partha Dasgupta. Nature: Our most precious asset, 13/10/2021