22 Setembro 2021
Excluir os componentes religiosos da busca de uma solução política para a questão israelense e palestina significa renunciar a resolvê-los e cair em um fatalismo com riscos mortais; calar-se sobre a religião significa ignorar a natureza teológica – para não dizer teocrática – do Estado de Israel, a sua alegada derivação bíblica, a legitimidade sagrada da posse exclusiva da terra, a imputação à vontade divina da relação de inimizade com os outros povos.
A opinião é de Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano, em artigo publicado por Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, 21-09-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A retirada de Cabul dos Estados Unidos e dos seus aliados da Otan, incluindo a Itália, muda a situação do mundo e nos obriga a repensar as estratégias para conservar a vida e instaurar a paz lá. Em particular, leva-nos a nos perguntar se continua válido o projeto de uma Constituição da Terra e como trabalhar para promover a sua implementação.
O dado mais relevante é a derrota do unilateralismo estadunidense, evidenciada pela renúncia ao domínio sobre o Afeganistão, com o qual tanto Trump quanto Biden concordaram. Isso não significa que os Estados Unidos vão ficar dentro de casa e se fechar em um neoisolacionismo, renunciando à sua intenção hegemônica; em vez disso, eles pretendem se concentrar na revitalização interna, evitando intervenções em todas as partes do mundo, cujo custo em vidas e recursos estadunidenses provou ser muito alto. Resta o pesadelo da China, mas outras prioridades foram abandonadas, começando pela Europa e pelo Oriente Médio.
Todos os problemas, portanto, se colocam de uma forma nova, e é claro que, para levar a bom termo uma Constituição da Terra, não basta que ela seja bem concebida e defendida em princípio, mas é preciso identificar e enfrentar as questões e as situações que mais se opõem a ela e que, se não forem modificadas, tornam improvável a sua instauração.
Uma delas é justamente a política estadunidense, que continua sendo determinante para a construção compartilhada de uma nova ordem mundial, mas igualmente cruciais são os problemas de Israel, do mundo árabe, dos talibãs, da relação com a China, das fronteiras barradas ao povo dos migrantes.
Cada uma dessas situações requer da nossa parte uma atenção e uma elaboração específicas, com a ressalva de que questões que até agora pareciam insolúveis evoluem com o tempo e podem se abrir para novas possibilidades.
Veja-se a “questão israelense”. Segundo a revista Limes, que lhe dedicou um número especial, o quinto de 2021, ela irrompeu na cena sobrepondo-se à questão palestina justamente quando os dirigentes do Estado acreditavam que a tinham encerrado. Eles fizeram isso com a promulgação da lei fundamental de 19 de julho de 2018 que consagrou Israel como o Estado nacional do povo judeu, com o congelamento, endossado pelos estadunidenses, do processo de paz e com a exclusão definitiva de qualquer hipótese de uma “Palestina independente sob qualquer forma e dentro de todas as fronteiras imagináveis”, liquidando assim a mítica solução dos “dois Estados”.
O que reabriu a questão foi a recente eclosão do conflito entre judeus e árabes em Jerusalém e na Cisjordânia, e a troca desigual de bombas e mísseis entre Israel e Gaza. Depois desses eventos, escreve a revista dirigida por Lucio Caracciolo, “vacilam as certezas do Estado judeu”, já que deixou de existir no exterior o incondicional apoio estadunidense a todas as políticas de Israel, que os democratas, ao contrário dos republicanos, não parecem mais dispostos a conceder, e já que se revelou cada vez mais difícil internamente a convivência entre os diversos componentes da sociedade israelense – que a Limes chama de tribos –, uma das quais não é judaica (os árabes), e a outra é ultraortodoxa, ambas em conflito com o Estado, e outra, a majoritária, consiste em judeus seculares (laicos), enquanto a última é a dos judeus nacional-religiosos.
Segundo a revista, esse problema, para o qual “o que está em discussão é a razão estatal de Israel” e também, pode-se acrescentar, a ordem futura do mundo, não tem solução, ou apenas uma solução provisória, embora seja de um “eterno provisório”, como seria próprio de Israel.
Mas pode ficar sem solução um problema dessa magnitude? Como escreveu Mordechai Kedar, um analista israelense e coronel do Exército, há um componente religioso que determina e perpassa todos os aspectos da crise, que, porém, nunca é discutido em Israel e no Ocidente, “porque se trata de sociedades modernistas liberais ateias e/ou seculares que não atribuem centralidade à religião e se sentem desconfortáveis ao tratar de questões confessionais e, em particular, aquelas relacionadas ao Islã” (o artigo é dedicado à jihad que “entrou na nossa casa”).
A observação é muito correta, sobretudo no que diz respeito ao componente religioso do judaísmo que não se ousa enfrentar devido à interdição derivada da tragédia do antissemitismo e da Shoá, que está sempre presente na consciência e põe em crise todas as linguagens.
Porém, excluir os componentes religiosos da busca de uma solução política para a questão israelense e palestina significa renunciar a resolvê-los e cair em um fatalismo com riscos mortais; calar-se sobre a religião significa ignorar a natureza teológica – para não dizer teocrática – do Estado de Israel, a sua alegada derivação bíblica, a legitimidade sagrada da posse exclusiva da terra, a imputação à vontade divina da relação de inimizade com os outros povos; mas também significa ignorar as motivações absolutistas da “recusa árabe” e da onda longa que, da chamada “guerra santa” ou jihad islâmica, chega até ao terrorismo.
Essa remoção de elementos determinantes do problema torna inapelável a sentença da Limes, que em termos de racionalidade geopolítica não entrevê soluções e declara impossível, senão em um provisório que talvez seja eterno, a convivência entre israelenses e palestinos no Estado judaico e, mais em geral, entre as quatro tribos que o habitam.
Quanto a nós, pensamos que devem ser experimentadas todas as possibilidades da política e acreditamos no humanismo das religiões e na sua capacidade de atualizar a sua mensagem em fidelidade às suas próprias premissas. Existe um estereótipo que faz das crenças religiosas o reino do imutável, mas, como diz a experiência, elas são capazes de mudar a si mesmas para responder a problemas novos.
Isso vale para o Islã e a sua leitura do Alcorão, como os maiores sábios muçulmanos mostraram na sua crítica ao extremismo violento, em sua carta de 24 de setembro de 2014 aos líderes terroristas do chamado Estado Islâmico (ela pode ser encontrada sob o título “O Islã não avança com a espada”, na Sala III do site La Biblioteca di Alessandria, “Il Dio che divide” [disponível em italiano aqui]), mas também vale para as outras duas chamadas religiões do Livro, como mostraram as releituras das Escrituras que levaram à conversão da Igreja Católica, que abandonou a união entre religião e poder político, e chegou ao anúncio hoje proclamado de um Deus não violento e de uma salvação capaz de abraçar crentes e não crentes de todas as famílias da Terra (veja-se o documento de Abu Dhabi sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum e, no site Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, o prefácio de Raniero La Valle intitulado “O Deus inédito” [disponível em italiano aqui], ao livro no prelo de Enrico Peyretti, “Non ho scoperto nuove terre” [Não descobri novas terras]).
Mas igualmente isso pode ocorre para Israel e para a sua relação com o judaísmo, sem nada tirar da fé dos Padres. É uma pista de busca que pode ser seguida nessa direção no diálogo com os crentes judeus. O mesmo é verdade para outros problemas em aberto, que devem ser enfrentados sem censuras prévias: na busca de uma nova ordem sobre a Terra, nada de humano nos pode ser estranho.
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A questão israelense. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU