16 Setembro 2021
O arcebispo elegeu os direitos humanos como fundamento da sua atuação, escreve Eliézer Rizzo de Oliveira, professor titular aposentado de ciência política na Unicamp, em artigo reproduzido por A Terra é Redonda, 15-09-2021.
É muito impressionante, emocionante mesmo, a autobiografia de D. Paulo Evaristo Arns, Da esperança à utopia. Testemunho de uma vida (Rio de Janeiro: Sextante, 2001), depoimento histórico sobre o Brasil posterior à II Guerra Mundial, essencialmente sobre o pós-64.
Prevalece o tom coloquial num estilo tranquilo, mesmo quando os temas e situações não o são. O autor fala de si, dos pais e irmãos, dos imigrantes alemães, da influência da Igreja em sua formação, da sua trajetória de seminarista a Cardeal Arcebispo de São Paulo. Revela-se o político sagaz, o estrategista que reorganizou a Igreja paulistana, o prelado que enfrentou a ditadura com clara e precisa dimensão da sua autoridade (daí apresentar-se com as vestes eclesiais sempre que esta condição era determinante, como nas visitas aos presos políticos), mas também a sua refinada diplomacia. D. Paulo faz desfilar o povo, o pobre, o excluído; os padres e freiras, os poderosos da Igreja e do Estado, civis e militares sobre os quais D. Paulo terá sempre uma palavra de avaliação ou reconhecimento.
Por esta razão, é uma pena que esta obra magnífica não contenha índice de nomes, ou que o próprio autor os tenha omitido, em diversas ocasiões, quando eram essenciais para o entendimento da narrativa.
Sob a ótica da Igreja, o operariado se transforma em sujeito político no contexto das pastorais operárias, dos grupos de reflexão, da leitura da Bíblia, das atividades litúrgicas e das comunidades de base. Não apenas o trabalhador de fábricas, mas o pobre, o desempregado, o imigrante. Ou seja, o povo de Deus em relação ao qual a utopia nega tanto o capitalismo quanto o comunismo, por excluírem o homem do centro de seus sistemas econômicos e de poder. Já a esperança se orienta pelas encíclicas do papa João XXIII.
D. Paulo, que não trabalhou sozinho, compartilha com muitas pessoas o seu labor. Dentre eles o teólogo Frei Gorgulho, dominicano. Soube valorizar o pároco, promover o leigo, incentivar a mulher, acolher o estudante. Foi muito criticado pelo Vaticano, sob o poder supremo de João Paulo II, porque não impediu, ao contrário, autorizou a publicação de obras da Teologia da Libertação que ganharam o Brasil e a América Latina. Como não publicá-las se eram aprovadas previamente por rigorosas comissões de especialistas? Como abafar o sopro do Espírito, ainda que o encantamento desta teologia com o marxismo ferisse de morte as autoridades civis e militares da ditadura, empenhadas numa guerra frontal contra o comunismo?
Fecundado pelo Vaticano II, o movimento ecumênico de São Paulo enraizou-se na política, no social, na religiosidade católica e no diálogo inter-cristão (vejam-se as referências gratas ao pastor pentecostal Manoel de Mello e ao rev. Philip Porter, do Conselho Mundial de Igrejas) e com outras religiões também, especialmente com o judaísmo, berço do cristianismo. Por esta razão, o pastor presbiteriano Jaime Wright, morto recentemente, aparece com tanto destaque: por ser tão próximo de D. Paulo, era conhecido como “bispo auxiliar”.
D. Paulo viveu sob a mira da truculência militar, mas resistiu com a não-violência. No dia 13 de dezembro de 1968, o autoritarismo impôs-se ao país através do Ato Institucional nº 5: a tortura tornou-se símbolo e sina dos que combatiam a ditadura, ainda que por vias pacíficas. A ditadura impôs-se também ao aparelho militar, constrangendo e controlando militares dignos que não compartilharam da violência ilegal e inominável contra presos políticos, como é o caso do brigadeiro Eduardo Gomes, que reconhecia D. Paulo como seu bispo.
Por vezes, tive dificuldade para identificar o teólogo, pois o quadro político e eclesiástico aparece com muita força e destaque. Mas o teólogo está lá, em ideias simples como o Evangelho. Sobre o incrédulo: “Durante meus estudos na Sorbonne havia encontrado pessoas excelentes e que confessavam não terem fé num Deus que influi na História. Eu me perguntava onde buscavam apoio para tanta persistência na bondade e solidariedade”. E sobre o necessitado: “Nunca perguntei pela cor política ou ideológica de uma pessoa. Só me interessou saber se a imagem de Deus estava sendo respeitada e se eu podia prestar-lhe algum auxílio em horas de solidão e de perseguição. O Deus da Justiça é o mesmo Deus do Amor”.
A todos a Cúria acolhia. Nos sangrentos anos 70, quando uma pessoa caía nas mãos da repressão, era a D. Paulo que se recorria, pois ele tinha contatos na área militar que também rejeitavam a tortura. Muitas pessoas foram salvas deste modo.
Daí a importância do seu depoimento afetivo e emocionado sobre Golbery do Couto e Silva, militar e intelectual, ministro do governo Geisel e interlocutor frequente do arcebispo. D. Paulo reconhece a “ação generosa do general Golbery do Couto e Silva, que se tornou meu amigo e resolveu diversos casos que poderiam ter provocado reação nacional e até internacional. Tanto ele quanto eu achávamos que o diálogo é a arma mais eficiente para todas as situações críticas e mesmo para aquelas que parecem insolúveis”. O prelado dos direitos humanos faz justiça a este quadro do regime militar que operou a transição política: “era homem muito inteligente, informado e curioso, com uma conversa informal agradabilíssima. O que era novo para mim é que ele procurava interlocutores na Igreja, que ele considerava mais bem informada que o próprio SNI (…) Golbery logo se revelou totalmente contrário às torturas e chegou a contar pormenores de casos horripilantes (…) Confessava abertamente que aceitava nossa luta contra a tortura e as prisões arbitrárias”.
O arcebispo que levou dezenas de pessoas até Golbery, em busca de seus queridos, teve no militar um parceiro “que também ajudou a preparar um final menos desastroso do que temíamos para a terrível ditadura que sofremos”.
D. Paulo elegeu os direitos humanos como fundamentos da sua atuação, através da Comissão de Justiça e Paz e de pastorais específicas, com forte sensibilidade para a classe média. É possível que alguns leitores e leitoras tenham participado do lançamento desta Comissão de nossa cidade, no dia 25.08.77, na Catedral, quando, numa cerimônia singela e emocionante, D. Paulo afirmou que “vivemos numa época de medo, mas precisamos declarar bem alto que o cristão não tem direito a ter medo”.
Como se vê, foi muito corajoso este homem de Deus. A reação contra os assassinatos de Wladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, na prisão, encontrou D. Paulo à frente da sociedade civil, contribuindo para o fim do regime militar. Pois, para este apóstolo, “o pastor não abandona o seu rebanho quando há uma ameaça”.
* Publicado originalmente no jornal Correio Popular, em 28 de novembro de 2001.
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