20 Agosto 2021
"Diante do que aconteceu no Afeganistão - junto com as escolhas mais específicas para o país e a área geopolítica circunstante - é fundamental fortalecer a visão de uma 'fraternidade universal'", escreve o arcebispo Vincenzo Paglia, presidente da Pontifícia Academia para a Vida, em artigo publicado por Settimana News, 19-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quantas vezes já dissemos e escrevemos: “nunca mais!”? Estamos mais uma vez neste ponto, diante das imagens angustiantes do aeroporto de Cabul. Gente desesperada, aglomerada, pisoteada, agarrada a aviões na ilusão suicida de poder viajar nos trens de pouso.
E pessoas, seres humanos, que obviamente não conseguem, não têm como conseguir e caem no vazio por dezenas de metros. Podemos realmente assistir e permanecer impassíveis?
Imagens terríveis destinadas a permanecer como uma mancha indelével em nossa história, como a foto da Associated Press de Kim Phuc, na época com 9 anos, em 8 de junho de 1972, a menina nua ferida pelo napalm, no Vietnã. Ou as imagens das Torres Gêmeas em chamas. Ou tantos outros horrores que caracterizam estes nossos anos em que sempre dizemos "nunca mais", mas talvez apenas para silenciar a nossa consciência.
É a nossa consciência de ocidentais que deveria começar a clamar, para nos lembrar de uma vez por todas a cultura e as tradições que nos iludimos ter, para inverter o curso. Isso mesmo. O curso da nossa "civilização" deve ser invertido. Devemos fazer isso imediatamente; deve ser feito sem “ses nem mas”.
Deveríamos ter aprendido que a democracia não se exporta com as armas. Como ainda é possível pensar que a política externa do mundo ocidental possa exportar os valores da democracia para outros países e contextos culturais, como se fossem produtos a serem vendidos ou, pior, a serem impostos.
Seria triste se agora abandonássemos o Afeganistão a si mesmo ou, pior, o tornássemos um novo "inimigo".
Em vez disso, acredito que devemos agir rapidamente para recuperar o atraso e o descrédito acumulados em tão poucos dias. Aquelas imagens aterrorizantes de Cabul devem mexer com a nossa consciência: no campo é necessário dar a possibilidade de deixar o país a quem o deseja, a quem tem medo.
E aqueles afegãos e afegãs que desejam entrar no Ocidente devem ser deixados entrar no Ocidente, deixando de lado a burocracia e com um espírito de acolhimento e disponibilidade realmente sem fronteiras. Já temos as experiências: os corredores humanitários testados com sucesso nos últimos anos, por exemplo por Santo Egídio, dizem que é possível. É necessário fazer isso e fazê-lo imediatamente. Desta forma, a credibilidade perdida pode ser recuperada. A decisão de não abandonar ninguém é uma daquelas que devem ser tomadas sem hesitação.
Temos de aprender com os erros cometidos. O apelo também deve ser feito à Europa para que acelere sua política externa mais ousada e de longo prazo.
Na sua bagagem, a Europa tem os instrumentos para interagir com a cultura - as culturas - dos outros universos existentes no nosso mundo e para tecer um diálogo sobre os valores, para contribuir para uma convivência pacífica. Uma Europa provinciana não ajuda a si mesma, nem o Ocidente, nem o mundo. Existe nas bases profundas da Europa aquele ideal de fraternidade universal que é o verdadeiro tesouro a tornar fecundo, a multiplicar.
Aprendemos na escola os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. A partir desta última que o Papa Francisco lembra como a "promessa fracassada de modernidade". A Fraternidade deve redescobrir seu espaço cultural, econômico e político.
O Papa Francisco, com a encíclica "Fratelli tutti", a propôs a todos nós. A pandemia, por sua vez, nos fez perceber de forma dramática que somos todos vulneráveis e todos ligados uns aos outros. Essa ligação de fato (poderíamos dizer essa interconexão efetiva) deve se tornar uma escolha política, econômica e social.
É, assim, a fraternidade como programa também político. Uma humanidade fraterna (e, portanto, diferente e diversificada como são os irmãos e as irmãs biológicos), consciente da unidade da família humana e da casa comum que deve habitar, é a humanidade do futuro.
Hoje, infelizmente, tivemos que reconhecer o fracasso de não ter entendido o país, o Afeganistão, onde estivemos por vinte anos. É preciso não o abandonar.
Não podemos ir embora e jogar a toalha. O Afeganistão continua sendo um país que faz parte da família dos povos. Pelo menos, começamos a entendê-lo melhor. Desde já. Não amanhã, hoje.
Devemos, por exemplo, entender melhor o complexo tecido daquele país, uma teia de tribos, grupos de culturas ... Há comentaristas que sugerem uma nova atenção ao próprio mundo talibã: o Talibã parece ter abandonado a linguagem das "fatwas “e se apresenta de maneira diferente, com laços internacionais mais políticos do que religiosos, enfim, um país mais nacionalista do que islamista. Se essa evolução estiver presente, deve ser compreendida e acompanhada.
Em qualquer caso, não devemos mais julgá-las com parâmetros ocidentais as grandes tradições culturais da área asiática; devem ser compreendidos mais profundamente.
É uma lição que a Igreja também teve que aprender ao longo da história. Os últimos papas falaram disso várias vezes. Quando afirmam que a fé cristã deve ser proposta e não imposta, este é o sentido de uma missão que deve entrar nas profundidades das diversas culturas do planeta.
Um esforço singular é representado pela escolha pelo diálogo feita em Doha em 2019 entre o Papa Francisco e Al-Tayyeb, Grande Imã de Al-Azhar com a assinatura do documento sobre a Fraternidade Humana. Foi uma antecipação significativa da mensagem universal da Encíclica "Fratelli tutti".
É bom reler o início daquele texto: “A fé leva o crente a ver no outro um irmão que se deve apoiar e amar. Da fé em Deus, que criou o universo, as criaturas e todos os seres humanos – iguais pela Sua Misericórdia –, o crente é chamado a expressar esta fraternidade humana, salvaguardando a criação e todo o universo e apoiando todas as pessoas, especialmente as mais necessitadas e pobres”.
Na tradição recente, no que diz respeito à missão da Igreja, fala-se frequentemente de "inculturação", isto é, de levar o Evangelho às culturas locais. A Comissão Teológica Internacional, em um documento de 1989, escrevia: “O processo de inculturação pode ser definido como o esforço da Igreja para fazer a mensagem de Cristo penetrar em um determinado ambiente sociocultural, convidando-o a acreditar de acordo com todos os seus próprios valores, visto que estes são compatíveis com o Evangelho”.
Diante do que aconteceu no Afeganistão - junto com as escolhas mais específicas para o país e a área geopolítica circunstante - é fundamental fortalecer a visão de uma “fraternidade universal”.
Essa visão permite corrigir mais facilmente os erros feitos e fortalece uma inteligência política por meio dos encontros entre as partes.
Uma nova perspectiva emergirá desses encontros. A "revolução" no mundo globalizado não pode deixar de passar pelo caminho da "fraternidade", do encontro, do diálogo, do respeito.
Não nos salvamos sozinhos! Isso é verdade para o Covid-19. Também será verdade para as escolhas políticas em todo o planeta.
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Afeganistão: para além do fracasso do Ocidente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU