27 Julho 2021
Um portal católico que revelou um padre católico de alto escalão como gay e um usuário regular do aplicativo Grindr e levou à sua renúncia como secretário-geral da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos não revelou onde obteve os dados usados em seu relatório. Mas alguns especialistas dizem que o nível de detalhes incluído na história sugere que quem forneceu as informações tem acesso a grandes conjuntos de dados e métodos de análise que podem ter custado centenas de milhares de dólares – ou mais.
A reportagem é de Michael J. O’Loughlin, publicada por America, 23-07-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Quando ouvi pela primeira vez que isso estava acontecendo, meu queixo caiu”, disse Zach Edwards, o fundador da empresa de análise Victory Medium, à revista America. Especialista em dados, Edwards já ajudou um grupo norueguês de direitos do consumidor a apresentar uma reclamação contra o Grindr em 2020, alegando que o aplicativo gay violava as leis de privacidade europeias ao vazar dados pessoais dos usuários. A empresa foi multada em mais de 11 milhões de dólares no início deste ano pela Autoridade Norueguesa de Proteção de Dados.
Edwards descreveu o nível de detalhe revelado nos dados incluídos no artigo do The Pillar como “alarmante”.
O The Pillar não disse onde obteve os dados sobre o monsenhor Jeffrey Burrill, que renunciou pouco antes de a história sobre seu uso do aplicativo ser publicada. Os editores do The Pillar, J. D Flynn e Ed Condon, não responderam a um e-mail da America perguntando quem forneceu os dados. Edwards disse que adquirir dados que parecem ter sido coletados ao longo de pelo menos três anos pode ser caro e pode ter exigido que uma equipe de pesquisadores os classificasse para identificar indivíduos específicos vinculados aos dados. Ele estimou que o “banco de dados e os esforços de desanonimização” usados para obter detalhes sobre o padre Burrill poderiam ter “chegado a centenas de milhares, senão milhões de dólares”.
O artigo no The Pillar continha alegações de que um telefone associado a Burrill conectava-se regularmente ao Grindr, um aplicativo de paquera usado por gays, durante períodos de vários meses em 2018, 2019 e 2020 de sua casa e escritório em Washington, DC, também a partir de uma casa no lago da família em Wisconsin e de outras cidades, incluindo Las Vegas.
“A inclusão dos [destinos de férias do monsenhor Burrill] mostra um nível de obsessão por rastreamento”, disse Edwards. “Todo católico deve esperar que esse seja o caso, porque esse é o único cenário que não é um pesadelo distópico.”
É possível, disse ele, que uma pessoa ou organização guardasse rancor contra o monsenhor Burrill e rastreasse apenas seus dados. Mas ele teme que os dados desde 2018 tenham sido comprados e que quem quer que tenha acesso a eles agora provavelmente tenha mais informações para divulgar.
“Ou é uma organização maior rastreando vários padres, e então mais coisa virá”, ou estava focada apenas em Burrill, disse ele. Ele pode imaginar uma situação em que os dados pudessem ser usados para chantagear ou extorquir líderes religiosos.
A especificidade da geolocalização incluída na história do The Pillar sugere que quem forneceu as informações para a publicação teve acesso a um conjunto de dados incomumente abrangente que teria ido além do que está normalmente disponível para as empresas de publicidade.
“Essa é uma venda de dados muito cara e perigosa”, disse ele.
Grandes conjuntos de dados “não-identificados” como este – informações que não contêm nomes ou números de telefone – são frequentemente vendidos em conjunto para fins publicitários ou mesmo para rastrear viagens em massa durante epidemias. Os dados usados como base para a história do The Pillar parecem ter rastreado Burrill, por meio de um processo conhecido como reidentificação, que alguns especialistas disseram que pode ter violado contratos de fornecedores terceirizados, que rotineiramente proíbem a prática.
Yves-Alexandre de Montjoye, professor de matemática aplicada do Imperial College de Londres, que estudou a facilidade com que indivíduos podem ser identificados por meio de dados supostamente pseudônimos, disse que o relatório do The Pillar era “bastante vago nos detalhes técnicos”.
Mas ele disse que, em geral, um pesquisador ou equipe de analistas pode identificar um indivíduo com acesso a apenas alguns pontos de dados. Ele deu como exemplo uma pessoa fictícia que vive em Boston: o dispositivo móvel dessa pessoa pode enviar um sinal de uma sala de aula do MIT pela manhã, de um café da Harvard Square à tarde, depois à noite em um bar em Back Bay, seguido por um sinal de uma casa em South Boston.
“Alguns desses lugares e horários serão suficientes” para corresponder a outras informações que um pesquisador possa saber sobre um indivíduo que, em conjunto, tornam possível identificar o usuário do dispositivo móvel, disse Montjoye. Essas outras informações podem incluir registros imobiliários, postagens em mídias sociais ou mesmo agendas publicadas. Mesmo em grandes cidades com milhões de pessoas, não é difícil usar apenas alguns pontos de dados para identificar um indivíduo, pois “muito poucas pessoas estarão nos mesmos lugares e quase ao mesmo tempo que você”.
Os cofundadores do The Pillar defenderam sua história contra as críticas que a consideraram jornalisticamente antiética, dizendo em um comunicado que “descobriram uma correlação óbvia entre o uso de um aplicativo de conexão e uma figura pública de alto escalão que era responsável de forma direta pelo desenvolvimento e supervisão de políticas que abordam a responsabilidade clerical no que diz respeito à abordagem da Igreja à moralidade sexual”.
Daniella Zsupan-Jerome, diretora de formação ministerial da Escola de Teologia da St. John University, em Collegeville, Minnesota, disse que cada vez mais a tecnologia de vigilância e rastreamento não produzirá homens justos adequados para o ministério. Em vez disso, disse ela, vai contribuir para uma cultura de suspeita e perpetuar a falta de confiança na Igreja Católica.
“Por que não investir em processos de formação que insistem em uma cultura de honestidade, transparência e integridade de caráter?” disse ela, acrescentando que se e quando os líderes religiosos forem encontrados com falhas morais, é necessário criar espaço para conversas entre os fiéis. “Infelizmente, muitos de nós já tivemos a experiência de descobrir informações escandalosas sobre um padre ou líder pastoral. Esta é uma experiência chocante, muitas vezes associada a uma sensação de traição, tristeza, pesar, raiva, nojo e até desespero”, disse ela.
“As comunidades que vivenciam essa necessidade precisam de espaços para conversar, compartilhar honestamente e se reunir para lamentar a perda de confiança ocorrida”.
Horas antes de The Pillar publicar seu relatório, a Agência Católica de Notícias (CNA, nas siglas em inglês) publicou uma história afirmando que a organização havia sido abordada por uma pessoa em 2018 que “afirmava ter acesso à tecnologia capaz de identificar clérigos e outros que baixam aplicativos populares de paquera, como Grindr e Tinder, e para identificar suas localizações usando os endereços de internet de seus computadores ou dispositivos móveis”. A história dizia que a CNA recusou-se a aceitar informações desta pessoa.
Em um comunicado, o Grindr chamou o relatório do The Pillar de uma “caça às bruxas antiética e homofóbica” e disse que “não acredita” que foi a fonte dos dados usados. A empresa disse que tem políticas e sistemas em vigor para proteger os dados pessoais, embora não tenha dito quando eles foram implementados.
Edwards, que critica as proteções de privacidade do Grindr, disse: “Esta é a pior coisa que poderia acontecer aos negócios deles”.
Pode não haver muitos meios legais para proteger indivíduos como Burrill.
“Casos como esse só vão se multiplicar”, disse Alvaro Bedoya, diretor do Centro de Privacidade e Tecnologia da Escola de Direito de Georgetown.
Os ativistas pela privacidade há muito tempo lutam por leis que evitem esses abusos, embora nos Estados Unidos elas existam apenas em alguns estados e, em seguida, em formas variadas. Bedoya disse que a renúncia de Burrill deve mostrar o perigo dessa situação e, finalmente, estimular o Congresso e a Comissão Federal de Comércio a agirem.
O senador norte-americano Ron Wyden, democrata do Oregon, disse que o incidente confirma mais uma vez a desonestidade de uma indústria que afirma falsamente proteger a privacidade dos usuários de telefone.
“Os especialistas alertam há anos que os dados coletados por empresas de publicidade nos telefones das pessoas podem ser usados para rastreá-los e revelar os detalhes mais pessoais de suas vidas. Infelizmente, eles estavam certos”, disse ele em um comunicado. “Corretores de dados e empresas de publicidade mentiram para o público, garantindo-lhes que as informações coletadas eram anônimas. Como este terrível episódio demonstra, essas alegações eram falsas – os indivíduos podem ser rastreados e identificados”.
Shira Ovide, autora de um boletim informativo de tecnologia do The New York Times, escreveu que a saída e renúncia de Burrill “mostra as consequências tangíveis das práticas das vastas e amplamente não regulamentadas indústrias de coleta de dados dos EUA”.
“Obtemos benefícios desse sistema de coleta de localização, incluindo aplicativos de tráfego em tempo real e lojas próximas que nos enviam cupons”, escreveu Ovide. “Mas não devemos ter que aceitar em troca a vigilância perpétua e cada vez mais invasiva de nossos movimentos.”
Edwards disse que a compra e venda de dados não é regulamentada e que práticas “duvidosas” são comuns. Mas essas vendas geralmente não geram manchetes.
“Devido ao quão sofisticados os corretores de dados são e ao quão grande esta história se tornou, tenho uma forte intuição de que quem os vendeu agora conhece a história”, acrescentou. “E então eles estão imediatamente tentando limpar seus nomes ou destruir discos rígidos”.
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EUA. O que nós sabemos e não sabemos sobre os métodos usados para rastrear o Grindr do secretário-geral dos bispos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU