06 Mai 2021
“Ao contrário do que ressaltam os grandes acordos ambientais em matéria internacional, os efeitos da crise ecológica se manifestam de diferente modo não só para cada país, mas para cada grupo social dentro de suas fronteiras”, escreve Gabriel Alberto Rosas Sánchez, doutorando em Ciências Econômicas na Universidade Autônoma Metropolitana (México) e membro da Sociedade Mesoamericana e do Caribe de Economia Ecológica, em artigo publicado por ALAI, 30-04-2021. A tradução é do Cepat.
A crise ambiental direcionou os esforços dos governos e da comunidade científica às implicações da mudança climática e suas diversas manifestações sobre a dinâmica dos sistemas sociais, institucionais e econômicos. Frente à urgência climática, surgiram acordos internacionais, como o Acordo de Paris, o Green New Deal, os Objetivos do Milênio 2030, entre outros, com a finalidade de reverter a situação atual e evitar uma catástrofe de maior dimensão.
No entanto, as ações concebidas como saída parecem ser de curto alcance por causa de uma visão parcial dos fenômenos socioambientais. Com efeito, descartam-se leis básicas dos processos naturais como a entropia, reduz-se o valor da natureza a um caráter monetário, ao mesmo tempo em que a origem do problema ecológico recai sobre os comportamentos dos lares. Enquanto isso, questiona-se fragilmente o papel das grandes empresas mineiras, agroindustriais e a especulação financeira sobre a produção de certos grãos básicos e energéticos, fenômeno conhecido como a financeirização da natureza.
Sobretudo, o aspecto de maior controvérsia dos planos internacionais é assumir que a superexploração da biodiversidade é resultado de uma falha do mercado, de vieses de informação ou da distorção nos preços dos “recursos naturais”. Razão pela qual, a solução estaria em restaurar os mecanismos de mercado assumindo que são espaços neutros de atribuição de recursos, sendo possível reverter as consequências do dano ecológico a partir de um imposto compensatório.
Efetivamente, os mecanismos por trás dos mercados de carbono, que de maneira sintética podem se resumir como o espaço onde os países com baixo nível de emissões de dióxido de carbono podem vender seus direitos a países altamente poluentes, entendem o mundo sob uma ideia que dominou o século XVII, que considerava a relação entre nações como um jogo de soma zero [1]. Outro resultado proveniente da ideia de compensação é considerar a reversibilidade dos danos ambientais. Ou seja, através do dinheiro é possível que o sistema regresse ao estágio prévio, sem considerar que as consequências físicas e energéticas de cada ato de produção são irreversíveis.
Na mesma sintonia, as medidas colocadas em andamento como objetivos desejáveis são construídas de maneira genérica para o conjunto de países em nível global, como se tratasse de uma massa homogênea de habitantes em termos culturais, econômicos, geográficos, políticos e institucionais.
Desta forma, assume-se que cada sociedade tem as mesmas possibilidades de enfrentar os desafios ambientais. Assim, a essência do discurso acerca do desenvolvimento sustentável parece se orientar com fins propagandísticos, ao mesmo tempo em que poupa cada nação signatária, no curto prazo, das pressões sociais em matéria ambiental, delegando as ações para as futuras administrações e estendendo o prazo original estabelecido. Um exemplo são os Acordos do Rio, cuja falta de cumprimento dos objetivos fez com que fossem criados outros acordos. Outro caso é a última reunião solicitada pelo presidente dos Estados Unidos, no marco do Dia da Terra, onde o governo chinês pediu um prazo de 10 anos a mais, ou seja, até o ano 2060 para alcançar o nível de emissões pactuado.
É contra a forma agregada e invariável em que as consequências climáticas são assumidas que surge o conceito de “vulnerabilidade ambiental”. Esta definição busca expressar as consequências diferenciadas que a crise ambiental exerce sobre as pessoas e as comunidades, tendo em conta as características econômicas, culturais, territoriais e sociais particulares de cada sociedade. Como consequência, analisar as relações particulares em que estes elementos se entrelaçam em cada população permite conhecer a exposição e a sensibilidade frente às ameaças ambientais e a capacidade de resposta de cada grupo social.
Quando são abordados os impactos sociais da crise ambiental, é preciso questionar, em primeiro lugar, de que tipo de grupo social se trata, quais são suas condições materiais e qual a sua capacidade de resposta às manifestações climáticas. Para Otto et al. (2008), o nível destas condições preliminares define o grau de vulnerabilidade social frente à mudança climática.
Seguindo Jeannot (2020), cada sociedade e o conjunto de comunidades que a integram possuem diferente estrutura artefatual, assim como são diferentes as crenças, instituições, regras, incentivos, ferramentas, instrumentos, tecnologias, e outros elementos legados pela cultura nacional. Razão pela qual, fatores como a riqueza, o gênero, a idade, a origem étnica e a religião, entre outros, representam um fator de risco diferente.
Comecemos pelas consequências por razão de gênero. As pesquisas sugerem que os choques climáticos exercem um impacto negativo na igualdade de gênero, posto que o aumento de temperaturas está associado ao declínio dos direitos econômicos e sociais das mulheres, sobretudo daquelas cuja atividade principal é a agricultura.
Em uma especialização tradicional do trabalho, as mulheres são relegadas aos cuidados domésticos, coleta de água e atividades agrícolas menores associadas à produção de alimentos para o consumo próprio. Diante das mudanças nas condições climáticas, como secas e perda das propriedades que tornam a terra cultivável, os chefes de família decidem migrar em busca de oportunidades de trabalho.
As mulheres, que inclusive em seu núcleo familiar sofriam a subestimação de suas capacidades e a submissão, veem o aumento da desigualdade por terem apenas a opção de intensificar as atividades domésticas. Procurando, desse modo, as tarefas de cuidado, educação, atenção aos filhos na ausência dos pais, com a conseguinte dificuldade de acessar o sustento por conta própria, através dos trabalhos agrícolas. Isto reduz drasticamente suas possibilidades de se incorporar ao mercado de trabalho como forma de manifestar sua autonomia.
Eastin (2018), em seu estudo para 151 países, aponta que a situação de vulnerabilidade das mulheres se intensifica, conforme se acaba de destacar, quando dependem da agricultura, e em países com menor grau de democracia, devido à falta de regras que retiram das mulheres a proteção e o suporte nestas situações. Além disso, aponta que o sentimento de proteção em uma situação de escassez de alimentos faz com que as mães prefiram ceder sua comida a seus filhos, sem considerar as consequências em termos de saúde que isto representa para elas.
Outro elemento que vem sendo exposto é a sensibilidade dos rendimentos da agricultura às mudanças de temperatura. A evidência destaca que o aumento da temperatura planetária, junto à escassez de água doce, as mudanças nas chuvas e a erosão da terra, trarão consequências no rendimento médio de diversos tipos de grãos.
De acordo com Myres et. al. (2017, a baixa disponibilidade de água e a limitação de nitrogênio pode reduzir o rendimento do milho em 25%, em latitudes baixas, e o trigo em 15%, caso a temperatura aumente 4 graus centígrados. Tal comportamento é contrário ao esperado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que estima um aumento na produção de 60% até 2050, com a finalidade de enfrentar as exigências de uma população maior.
Ao mesmo tempo, a perda do equilíbrio biofísico, a baixa fertilidade da terra e as secas produzirão ajustes na produção e possíveis aumentos nos preços. Parry et al. (2019) prevê que os preços mundiais dos cereais aumentarão de 30 a 70% até 2050. Neste cenário, os alimentos se tornarão inacessíveis para muitas comunidades de baixa renda. As variações climáticas representarão problemas na segurança alimentar. Climas extremos podem conduzir a um ciclo de perdas, contribuindo para situações de pobreza nos lares, pela falta de acesso a elementos indispensáveis para a sua reprodução biológica e social.
Frente ao calor extremo, mudanças na produção de alimentos, dificuldades de acesso à água potável, desenvolvimento de doenças infecciosas, aumentos no nível do mar que tornarão impossível habitar as atuais zonas costeiras, entre outras consequências, muitas famílias terão que buscar novos lugares para viver. As consequências da deterioração ambiental produzirão um aumento nos processos migratórios.
Com efeito, de acordo com Schütte et al. (2018), o deslocamento poderá causar riscos e trazer vulnerabilidade às pessoas, especialmente crianças e idosos. As dificuldades físicas e de saúde das pessoas em idade avançada podem representar riscos no que inicialmente parece ser uma reposta adaptativa frente ao dano ecológico. Mudar para uma nova localização pode reduzir os riscos à saúde, no sentido de que as pessoas podem evitar as consequências de um ambiente adverso, mas apenas no curto prazo.
Os climas extremos têm efeitos diferenciados na população. Como na maioria das ocasiões, as populações pobres são severamente golpeadas. Os lares de baixa renda possuem menos capacidade de resposta para enfrentar os novos cenários. Por um lado, esses lares não possuem as características físicas para suportar as manifestações da mudança climática, como grandes ventos, chuvas frequentes ou frios intensos. Por outro, o trânsito para um esquema energético moderno deixa em sua passagem vários excluídos, principalmente por dois motivos: a) a dificuldade de levar os serviços a certas comunidades pelas características geográficas do território; b) a incapacidade de pagar as tarifas pela baixa renda das famílias e o custo da energia.
Este último fenômeno se relaciona com o conceito de pobreza energética [2], aspecto emergente na análise da dinâmica dos sistemas energéticos do mundo. Os altos custos da energia se tornam uma barreira em situações onde as famílias requerem calefação para o frio, esfriamento quando a temperatura é muito alta ou simplesmente algum combustível para cozinhar.
O atual sistema energético demonstra diferentes características e paradoxos. O sistema energético entendido como um espaço de disputa e apropriação dos fluxos energéticos deixou pelo caminho muitos excluídos na distribuição e acesso à energia. Os grupos excluídos, principalmente as comunidades indígenas e rurais, são vítimas da exploração, da submissão e do despojo em favor do desenvolvimento do sistema energético e econômico do qual estão excluídos.
O dano ambiental por causa da visão mercantil da natureza – por ser considerada um aspecto da competitividade econômica dos países e uma via de lucro para as corporações – foi de tal grau que acarretou uma era geológica citada frequentemente como “Antropoceno”. De acordo com Zalasiewicz et. al. (2017), esta época se caracteriza pelo impacto planetário, com claras consequências: uma marcada aceleração das taxas de erosão e sedimentação, mudanças bióticas que incluem níveis sem precedentes de invasões de espécies na Terra, produção de resíduos em grande escala, o início de uma mudança significativa no clima global e no nível do mar, e perturbações químicas em grande escala dos ciclos do carbono, nitrogênio, fósforo, entre outros elementos.
Ao contrário do que ressaltam os grandes acordos ambientais em matéria internacional, os efeitos da crise ecológica se manifestam de diferente modo não só para cada país, mas para cada grupo social dentro de suas fronteiras. No entanto, as grandes nações industrializadas, que contribuem em maior medida para a deterioração ecológica, cobram de maneira enérgica do resto das nações como se tivessem a mesma capacidade de resposta ou como se tivessem causado o mesmo dano ecológico.
De modo paradoxal, as comunidades que foram excluídas do atual esquema energético e que tem maior grau de vulnerabilidade à crise ecológica, certamente, são as que constroem alternativas para cuidar da natureza.
Efetivamente, existe uma ampla evidencia de que os povos indígenas e as comunidades rurais costumam estar comprometidos, por meio de suas práticas cotidianas, em assegurar os direitos soberanos sobre o território e o cuidado da natureza. Conforme destacam Jenkins et al. (2018), existem diversas cosmologias onde a mudança climática e a crise ambiental tentam ser resistidas através do conhecimento indígena. Embora a atual situação seja consequência das práticas coloniais, as comunidades oferecem ao resto da sociedade seus ensinamentos para assumir a responsabilidade no contexto particular.
A terrível situação que a humanidade enfrenta exige reconhecer, em primeiro lugar, a população mais vulnerável. Este conceito permite identificar os fatores de risco particulares de cada sociedade, com a finalidade de compreender que os riscos ambientais têm efeitos diferenciados, sendo as comunidades ligadas à agricultura, as sociedades rurais, os lares de baixa renda, os grupos indígenas, as mulheres, as crianças e os idosos mais vulneráveis
Esta análise permite conceber a complexidade do fenômeno sociedade-natureza e demonstra as limitações dos diagnósticos supranacionais em matéria ambiental. Seria relevante que as nações e empresas que demonstram ser os principais responsáveis dos atuais níveis de deterioração ambiental assumissem suas responsabilidades, em vez de se limitar a culpar o resto das nações de modo igual, ao mesmo tempo em que apontam as práticas cotidianas dos cidadãos como as principais responsáveis. Embora existam práticas que poderiam ser benéficas, não servirão muito caso não se questione os principais motores do dano ambiental.
O desafio está em modificar uma estrutura produtiva acostumada a explorar a natureza sem nenhum tipo de consideração. Também é importante romper o dogma em matéria ambiental em que se pensa em uma só maneira de fazer política, ao passo que a complexidade do problema requer falar em múltiplas especialidades e políticas, em diversas escalas de ação.
Ter localizados os grupos vulneráveis permitiria redobrar esforços para evitar um desastre maior. É aí que se deve valorizar e incorporar as práticas das comunidades que demonstram uma espécie de equilíbrio entre o fim econômico e o cuidado da natureza, exercendo, além disso, um ato reivindicativo dos grupos excluídos na configuração de um novo sistema energético.
1. Os primeiros economistas do século XVII, denominados como mercantilistas, concebiam o mundo como uma luta entre potências pelos bens naturais. Conforme narra Pincus (2012), acreditava-se que o poder do império inglês dependia do controle das terras e o ouro. Ou seja, o que a Inglaterra possuía, outro não poderia ter. É assim que o nível de riqueza é o mesmo em nível mundial. Em nossa interpretação, os mercados de carbono seguem uma lógica semelhante. As nações industrializadas chegam ao limite de suas emissões e buscam comprar os direitos de outras nações e assim poluir. No entanto, fazem com que acreditemos que uma vez que o número de permissões para poluir é o mesmo, então, parece que a poluição não aumenta do limite esperado.
2. Em uma definição clássica de pobreza energética, Boardman e Houghton (1991) destacam que um lar incorre nesta situação quando não pode ter os serviços adequados de energia com 10% de sua renda.
Boardman, B. y Houghton, T. (1991). Poverty and Power: the efficient use of electricity in low-income households. Bristol Energy Centre.
Eastin, J. (2018). Climate change and gender equality in developing states. World Development, 107, 289-305.
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O que é a vulnerabilidade ambiental e a quem afeta? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU