31 Março 2021
"Bolsonaro não é estadista e sua missão é desmontar a infra-estrutura instalada e o serviço público brasileiro. Seu chanceler vai por caminhos mais tortuosos, porque ao menos cultura geral e razoável grau de alfabetização ele tem. Só não serve para ministro de relações exteriores do Brasil e, menos ainda, em um mundo com pandemia e possível nova ordem hegemônica", escreve Bruno Beaklini, cientista político e professor de relações internacionais de origem árabe-brasileira, editor dos canais do Estratégia & Análise, em artigo publicado no Monitor do Oriente Médio.
Esse artigo foi finalizado cerca de doze horas antes da queda do pior chanceler da história do Brasil. O texto não chega a abordar a substituição de Ernesto Araújo por Carlos Alberto França. Tampouco adentramos na crise política subsequente com características diretas de crise militar. A análise que segue posiciona o Brasil sob o desgoverno Bolsonaro dentro do Sistema Internacional em evidente mudança de hegemonia.
Em alguns momentos da história da humanidade, a concorrência intra-capitalista e a projeção de poder de alguns países e impérios chegou ao clímax. Uma curva ascendente gira o peso do Sistema Internacional, como se planetas começassem a girar em torno de outro eixo gravitacional. O início da década de 2020 do presente século demonstra o crescimento da Ásia, liderada pela China e secundada por Índia e Rússia. A perda da hegemonia pelos países anglo-saxões, componentes do Sistema Cinco Olhos (Estados Unidos, Grã Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), não será por um passe de mágica. Entretanto, alguns fatores levam a esse entendimento, obrigando as demais potências mundiais, importantes países-pivô regionais e demais membros da Assembleia Geral da ONU a anteciparem suas posições para não ficarem perdidos.
Tampouco se trata de um fenômeno novo no planeta. Assim ocorreu quando após a Segunda Guerra Mundial, as potências aliadas (EUA e URSS) suplantaram os impérios europeus em sua expansão, na segunda metade do século XIX. Dentro do mundo Atlântico e ocidental, da década de 1870 até meados da seguinte, a Alemanha unificada e os Estados Unidos, compostos pelas antigas colônias britânicas unificadas após uma guerra civil entre oligarquias, conseguiram empatar com o Império inglês na produção de aço e carvão. Para os padrões do período, esses indicadores implicavam em capacidade de concorrer e disputar mercados através de arranjos oligopolistas. As “disputas econômicas” se entrecruzam com a capacidade bélica e as sucessivas crises de impérios em decadência levaram a humanidade à demencial guerra intra-imperialista e intra-capitalista, a Primeira Guerra Mundial.
Sobreviver no jogo podre do Sistema Internacional não é tarefa fácil. Tentar jogar nas grandes ligas é mais duro ainda. No auge da projeção de poder britânica, na Era Vitoriana, o geógrafo Halford John Mackinder traçou um argumento plausível para países capitalistas solucionarem suas disputas internas de elites, apontando que estadistas eram mais importantes do que grandes investidores. As classes dominantes inglesa e britânica constituíram-se como uma autêntica fusão de frações de classe (nobiliarquia e comerciantes), com duas grandes origens étnico-culturais (saxões subordinando a gaélicos) e o direito comum em defesa dos proprietários diante da massa despossuída. Mackinder foi além e afirmou que uma potência se faz na formação de uma elite dirigente formada por estadistas e, em segundo plano, o homus economicus capitalista. Simples assim. A Razão de Estado garante a acumulação e a projeção de poder do Império.
Na condição inversa, retroalimentada por demenciais ideias supremacistas e afins, se encontra a prioridade absoluta do homus economicus e a permanência de conflitos sem fim, materializada nos Estados Unidos pela chamada Doutrina Wolfowitz. Ocorre que a ainda maior economia do mundo (não se sabe até quando) mantêm elementos de tensões internas acumuladas desde a guerra civil, materializadas entre Democratas (propensão ao estadismo) e Republicanos (cuja vertente mais à direita é o trumpismo voraz). O novo governo do democrata Joe Biden (lembremos que o ex-senador foi vice de Barack Hussein Obama por oito anos, de 2009 a 2016) vai atenuar o modelo econômico interno e gerar a coesão suficiente para a retomada da projeção de poder dos Estados Unidos, perfilando ao lado das classes dominantes, aliadas do Império de Washington. Nesse sentido, ao contrário do governo republicano e da extrema direita com Donald Trump, os EUA precisam projetar-se como parceiros confiáveis e uma sociedade com algo a oferecer além de junk food, blockbusters (a versão contemporânea dos antigos enlatados), séries de fim do mundo, bombardeios não autorizados pela ONU e assassinatos de autoridades com o emprego de drones que violam o direito internacional. Não será fácil mudar essa imagem ultrarrealista. Ainda mais complicada é a situação dos governos de extrema direita que emularam Donald Trump e seus asseclas e agora se tornaram figuras indesejadas.
Como já explicamos em textos anteriores, o chanceler do governo Jair Bolsonaro, Ernesto Araújo, ironicamente afirmou que se sente bem sendo um pária mundial. Infelizmente, a condição psicológica complexa do ministro não coaduna com o bem estar da população. O diplomata de carreira, que ocupa o lugar que outrora foi de pessoas com o quilate de José Maria da Silva Paranhos Júnior (Barão do Rio Branco), San Tiago Dantas e Celso Amorim, se tornou persona non grata junto aos corpos diplomáticos dos Estados Unidos, China e Índia.
Desde o discurso de posse de Ernesto Araújo sabemos o caminho evidente do desastre: “Por isso admiramos os Estados Unidos da América, aqueles que hasteiam sua bandeira e cultuam seus heróis. Admiramos os países latino-americanos que se libertaram dos regimes do Foro de São Paulo. Admiramos nossos irmãos do outro lado do Atlântico que estão construindo uma África pujante e livre. Admiramos os que lutam contra a tirania na Venezuela e em outros lugares. Por isso admiramos a nova Itália, por isso admiramos a Hungria e a Polônia, admiramos aqueles que se afirmam e não aqueles que se negam. O problema do mundo não é a xenofobia, mas a oikofobia – de oikos, oikía, o lar. Oikofobia é odiar o próprio lar, o próprio povo, repudiar o próprio passado”.
Os “heróis” dos EUA que o chanceler tanto admira, em grande parte, são soldados mortos em invasões de territórios distantes. Tanto lá como cá, as forças armadas imperialistas têm uma grande presença do pessoal de baixa patente provenientes da pobreza. Lá, pelo racismo estrutural, a falta de recursos materiais leva jovens com origens latino-americana e afro-americana a invadirem outros países e serem odiados por populações inteiras. Mas não foi só isso. Os governos elogiados pelo chanceler “nova” Itália, Hungria e Polônia eram compostos por protofascistas. Antes, ao citar o rei Dom Sebastião e o louvor à sua morte na Batalha de Alcácer Quibir, Araújo ofende a todos nós, os mais de 18 milhões de nacionais com origem árabe. Em 04 de agosto de 1578, as forças árabes marroquinas subordinadas à dinastia saadiana dizimaram os invasores lusitanos, o que deu fim às cruzadas Mediterrâneas no século XVI. Isso impediu a invasão europeia até a retomada, na década de 1830, com a invasão francesa da Argélia.
Como diplomata de carreira, Araújo sabe que as palavras têm um peso enorme, bem como o decoro do cargo e a expectativa de cumprimento dos acordos. Trump não tinha nada disso e espalhou seu “estilo de governar” entre alguns representantes políticos brasileiros. Quando o chanceler de Bolsonaro se diz “patriota e nacionalista” e comporta-se ao contrário, é porque na sua idealização, o mundo está em confronto de civilizações, e o mundo ocidental greco-romano e sionista-anglossaxão deve ser defendido com todas as forças. Mesmo que para isso o país se transforme em um pária mundial. Qualquer semelhança com as dificuldades deste governo lacaio do Apartheid Israelense em conseguir novas vacinas contra o coronavirus não é nenhuma coincidência.
Bolsonaro não é estadista e sua missão é desmontar a infra-estrutura instalada e o serviço público brasileiro. Seu chanceler vai por caminhos mais tortuosos, porque ao menos cultura geral e razoável grau de alfabetização ele tem. Só não serve para ministro de relações exteriores do Brasil e, menos ainda, em um mundo com pandemia e possível nova ordem hegemônica.
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A “nova ordem” e o pária mundial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU