10 Fevereiro 2021
O padre Valdecir Mayer Molinari, pároco da Igreja de São Geraldo, na zona sul de Manaus, foi transferido em janeiro para Cuiabá, no Mato Grosso. Nesta entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, Molinari fala sobre o trabalho desenvolvido à frente da Pastoral do Migrante, que acolhe refugiados e imigrantes de várias nacionalidades, entre haitianos, bolivianos, senegaleses, venezuelanos e quem mais precisa de apoio para sobreviver em outro país. A Pastoral do Migrante foi criada por Dom João Batista Scalabrini (1839-1905), fundador da Congregação dos Missionários de São Carlos para cuidar dos imigrantes italianos, em 1887. Em meio a pandemia da Covid-19, a missão dos Scalabrinianos no mundo tem um desafio.
A entrevista é de Izabel Santos, publicada por Amazônia Real, 04-02-2021.
O padre Valdecir Molinari diz que a maior demanda da Paróquia São Geraldo, em Manaus, é responder às necessidades mais básicas dos migrantes, que é a falta de alimentos. “Nesse período de pandemia, já ajudamos mais de 5 mil famílias de imigrantes, entre venezuelanos e haitianos, e até brasileiros. São famílias que estão em situação de fome no meio dessa crise imposta pelo novo coronavírus. Principalmente os imigrantes que dependem de trabalhos informais com a venda de picolés, frutas e outras coisas”, diz.
Os haitianos migraram para o Brasil após o terremoto de 2010 no Haiti. Na ocasião, o padre Valdecir se tornou um dos porta-vozes dos sobreviventes, junto com o colega, o padre Gemino Costa. A paróquia acolheu mais de 10 mil haitianos. “Trazer um carisma [o mesmo que missão ou trabalho] como o nosso [de acolhimento de migrantes] para uma paróquia tão grande, não é fácil. Quando chegamos aqui, a realidade era totalmente diferente”, recordou o padre Valdecir.
Já os venezuelanos se deslocaram para o Brasil a partir de 2014 devido a intensa crise política e econômica provocada pelo governo de Nicolás Maduro e às sanções econômicas internacionais impostas ao país. De acordo com a Acnur (agência de refugiados da ONU), até setembro de 2020, dos 224 mil venezuelanos estariam no país, 20 mil migraram para o Amazonas.
Padre Valdecir Molinari
(Foto: Arquivo pessoal | Reprodução Amazônia Real)
Desde os 12 anos, o padre Valdecir Molinari diz que sabia que queria ser padre. A formação religiosa começou dentro de casa, no sítio onde morava na zona rural de Sabáudia. “Minha opção pelo sacerdócio foi muito cedo e fui aprendendo o que era a vocação sacerdotal e missionária, o que despertou em mim essa paixão pela questão migratória. Fiz uma preparação teológica e filosófica no seminário e vivi uma experiência enriquecedora em uma favela em São Bernardo. Isso me possibilitou abraçar a minha verdadeira vocação”, disse.
Antes de Manaus, Valdecir trabalhou com migrantes temporários, como os cortadores de cana de açúcar e catadores de café que alimentavam as usinas em Guariba, no interior de São Paulo; os novos colonos em Ji-Paraná (RO), com as ocupações de terras entre os municípios de Colniza (MT) e de Apuí (AM); e depois com populações vulneráveis em São Bernardo (SP).
No Mato Grosso, o missionário scalabriniano vai atuar em uma casa de acolhida de migrantes da Paróquia do Espírito Santo, que já possui um trabalho com brasileiros que migram de Rondônia para o Mato Grosso. “Vamos trabalhar com uma situação parecida com a de Manaus, pois esse local virou uma casa de acolhimento de estrangeiros também. Tem venezuelanos que chegam lá de barco, de ônibus de outras maneiras que não é de transporte aéreo”, revelou. Leia a entrevista a seguir.
Qual legado o senhor deixa em Manaus?
O acolhimento de imigrantes que chegam à cidade e à Igreja. Aqui acolhemos a todos, sem perguntar a religião. Avalio que, nesse aspecto, mostramos que a Igreja tem uma missão e que Jesus Cristo está acima de raça e de religião. Nossa missão integrou diferentes pessoas em uma mesma realidade. Geramos a oportunidade de pessoas fazerem cursos de línguas e profissionalizantes, mostramos que somos uma Igreja preocupada com a vida das pessoas. Fora outros projetos que criamos, como a fábrica de picolés e a Casa de Apoio às Crianças Filhas de Migrantes São Geraldo, que possibilitou que mulheres tivessem um lugar seguro para deixar seus filhos enquanto iam trabalhar.
No final de 2010 os haitianos cruzaram as fronteiras e migraram para Manaus. (Foto: Alberto César Araújo | Amazônia Real)
Como foi a experiência com a chegada das duas maiores ondas migratórias de estrangeiros que Manaus viveu no século 21?
No caso mais recente, o dos venezuelanos, tivemos o envolvimento de muitas entidades, como a Cáritas e a Acnur. Mas, no caso dos haitianos, praticamente somente a Igreja Católica deu acolhimento aos imigrantes. Eu não tinha vivido uma experiência como essa antes. Antes, em São Paulo, acompanhei pessoas que vinham de outros estados, temporariamente, para a temporada de corte da cana e para a colheita do café. Mas a realidade nos desafiou de uma maneira diferente aqui em Manaus. Não estávamos esperando uma situação como a que aconteceu com a chegada dos haitianos e nem a cidade estava preparada. Eu vim para a cidade fazer um trabalho com peruanos e colombianos. Me deparei com uma realidade que nunca imaginei encontrar aqui e nos desafiou todos os dias para uma resposta à altura.
Qual tem sido o maior desafio da Paróquia de São Geraldo no atual contexto de pandemia?
Responder às necessidades mais básicas dos migrantes e nosso maior problema tem sido a falta de alimentos. Nesse período de pandemia, já ajudamos mais de 5 mil famílias de imigrantes, entre venezuelanos e haitianos, e até brasileiros. Foi um trabalho que nos prontificamos a fazer através de parcerias e outras ajudas. São famílias que estão em situação de fome no meio dessa crise imposta pelo novo coronavírus. Principalmente os imigrantes que dependem de trabalhos informais com a venda de picolés, frutas e outras coisas. Os imigrantes são a população mais frágil nesse contexto de perdas de empregos e crise econômica.
Padre Valdecir Molinari. (Foto: Alberto César Araújo | Amazônia Real, 2021)
A paróquia recebeu ajuda do governo?
Do governo nós não tivemos nenhum apoio. Tivemos, sim, parcerias com órgãos como o Ministério Público, organizações sociais, empresas e pessoas espontâneas. Da parte do governo nós não tivemos nada.
Fez falta?
Sem dúvida. O governo fez algumas ações. Mas dentro daquilo que a gente já executa e precisa, não. Se o governo quisesse, teria condições e poderia se organizar para atender à população. A gente vê que, infelizmente, o olhar dele não é voltado para quem mais precisa, ainda mais na questão da migração. Nesse momento de pandemia, os migrantes são os que mais sofrem pela falta de políticas públicas que possam assistí-los em suas necessidades. Alguns, poucos, até conseguem acesso, mas a grande maioria, não.
E as pessoas comuns se envolveram nesse trabalho?
De maneira geral, a população se fez solidária. A gente sabe que muita gente ainda tem pessoas que enxergam o migrante como um problema. Mas muitas pessoas foram solidárias, porque já conhecem o nosso trabalho e sabem que existem famílias que contam com a gente.
Os refugiados venezuelanos, indígenas da etnia Warao, abrigados no viaduto Manaus.
(Foto: Alberto César Araújo | Amazônia Real, 2017)
Qual será o maior desafio da Igreja Católica em Manaus daqui por diante?
Hoje, vivemos um momento em que a Igreja se volta para a realidade da fome. Antes, tínhamos o trabalho de olhar para as pessoas. Mas na atual conjuntura do Brasil, não só os migrantes, como pessoas locais, estão passando fome. Agora, vemos uma Igreja que precisa se preocupar com a fome, porque esse tem sido o nosso maior problema.
E quais desafios se impõem a Manaus para o respeito aos direitos humanos e à diversidade?
Precisamos mudar a política no Estado. Manaus só faz mudanças muito pontuais. Na última eleição, Manaus teve a oportunidade de eleger pessoas como o deputado José Ricardo (PT), que tem um olhar diferenciado para as pessoas. Nós temos que escolher pessoas com compromisso político voltado para o ser humano, mas o que temos aqui é um retrocesso. Cheguei aqui há 12 anos e os mesmos compromissos e políticos estão no comando da cidade. Politicamente é um fracasso.
Isso é um reflexo da política nacional?
Isso é o resultado de uma escolha errada que o país fez e está aí o resultado que nós estamos colhendo.
Movimento no centro de Manaus durante a pandemia. (Foto: Bruno Kelly | Amazônia Real)
Qual mensagem o senhor deixa para o povo de Manaus?
O que mais gostaria de ver, desse povo que há 12 anos foi muito acolhedor, é ver o povo amazonense cuidar do Amazonas. Tenho uma tristeza muito grande em ver uma cidade tão bonita mal cuidada. Os governantes e a população não cuidam da cidade como ela merece. Tem que diminuir o lixo e tudo aquilo que entristece o nosso coração. Temos que crescer cada vez mais no nosso espírito cristão e combater o preconceito e a maldade. E ter um coração aberto e acolhedor para que ninguém se sinta excluído ou desprezado.
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Caos na Pandemia: Migrantes estão em situação de fome, diz padre Valdecir Molinari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU