29 Janeiro 2021
"Estamos diante do avanço de uma nova escravidão, um esvaziamento do mundo interior do homem, portanto, do que ele possui de mais original e autêntico; do que de alguma forma define sua alteridade, dando-lhe consistência própria e permitindo-lhe contribuir para o crescimento do mundo", escreve Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado por Rocca n. 2, 15-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A técnica, que hoje ocupa um papel preponderante na vida humana devido à sua extrema penetração - não há área do cotidiano em que não esteja presente - adquiriu um importante significado antropológico, transformando-se de simples instrumento a serviço da ação humana em fator de mutação da consciência, até se tornar uma verdadeira “nova natureza”. Já tinha antecipado profeticamente isso, a seu tempo,
Ernst Junger, ao denunciar - especialmente em seu famoso Nas tempestades do aço, estamos nos anos trinta do século passado - o "impessoal domínio técnico sobre o mundo", e chegando a prognosticar a metamorfose de o homem em engrenagem de uma máquina de morte, em um autômato, enquanto, por sua vez - observava - as máquinas ganham vida e se tornam autônomas.
As avaliações desse processo, que evolui com desconcertante rapidez e irreversibilidade, variam desde um excesso de pessimismo - há quem o veja como uma séria ameaça à preservação da identidade humana - até uma forma de otimismo iluminista, que olha para as transformações ocasionadas pela convergência entre o homem e a técnica bem como a possibilidade de o homem explodir todas as suas potencialidades, atingindo níveis de conhecimento e inteligência nunca antes experimentados.
Ambas as posições, embora contenham aspectos indiscutíveis de verdade, parecem pautar-se por pressupostos ideológicos, que acabam alterando o juízo, não levando devidamente em conta a ambivalência estrutural de todo fenômeno humano e, na verdade, levando a resultados improdutivos.
Que a técnica tenha um impacto antropológico consistente hoje é um fato inegável. Muitos o destacam, enfatizando o fato de que a própria essência do homem está sofrendo uma verdadeira mudança; o que ocorre é, em outras palavras, uma profunda mutação das instâncias originais que definem sua interioridade. Por isso podemos falar de homo technologicus (outros usam o termo "mediantropo"), isto é, de um homem em quem o encontro entre corpos e dispositivos tecnológicos dá lugar a uma compreensão de si mesmo e a uma forma de agir que - como observa Francesco Parisi (A tecnologia che siamo, edições Codice) - são profundamente condicionados pelos mecanismos da máquina, que influenciam os próprios automatismos de pensamento. A razão subjacente é que a infraestrutura tecnológica se tornou parte de nós, e que as intervenções que são postas em ato, pelo uso de instrumentos cada vez mais sofisticados, causam uma série de “efeitos de retorno”, que incidem sobre a memória, a vida social, a identidade e as escolhas que fazemos. A "tecnologia que somos", portanto - como afirma o título do livro de Parisi com perfeita adesão à realidade - corre o risco de nos conduzir a uma verdadeira reviravolta nas relações: já não é mais o homem que exerce o domínio sobre a técnica, mas a técnica que domina cada vez mais o homem, impondo com força suas próprias dinâmicas e dando origem a uma perigosa forma de dependência.
Estamos diante do avanço de uma nova escravidão, um esvaziamento do mundo interior do homem, portanto, do que ele possui de mais original e autêntico; do que de alguma forma define sua alteridade, dando-lhe consistência própria e permitindo-lhe contribuir para o crescimento do mundo. A estrita lógica da máquina, que se tornou una com o homem, refere-se a categorias de interpretação da realidade e linguagens cujo denominador comum é o rigor factual, a capacidade de obter resultados cada vez mais consistentes ao nível produtivo e de poder calcular com precisão como alcançá-los. Uma lógica de cálculo, portanto; que faz uso de critérios físico-matemáticos, e que implica a marginalização da linguagem simbólica, a única capaz de suportar as relações inter-humanas e com a natureza.
Nesse sentido, é frequente a referência ao niilismo e ao triunfo da vontade de poder nietzschiana. Vittorio Possenti o confirma com pontualidade e rigor, ao identificar cuidadosamente os fatores que contribuíram (e contribuem) para alimentá-lo: da crise dos valores, ao relativismo, à dissolução da própria ideia de verdade. Remetendo a uma expressão contida na encíclica Fides et ratio, que define o niilismo como uma "negação da humanidade do homem", Possenti não hesita em sublinhar o seu "carácter antropológico", afirmando que corresponde a uma visão do homem "como nada além de matéria animada, como simples momento da vida da natureza, um produto casual da evolução cósmica, o homem como paixão pobre e inútil "(Vittorio Possenti, La grande emergenza. L’uomo è cosa inutile?, em Avvenire, 18 de março 2020, p. 21).
Não há dúvida de que essa visão resulta, em muitos aspectos, bem fundada. A ausência de um quadro de valores a que recorrer para avaliar os processos postos em campo desemboca, de fato, na atribuição de primazia à ideologia da técnica, que assume o carácter de critério absoluto e cujo princípio inspirador é o reconhecimento da possibilidade que tudo seja recolocado à disposição do homem e que ele possa manipular tudo sem qualquer limitação. A essa hybris corresponde (e entra em contraste com ela) a questionamento radical da identidade do homem, de sua unicidade e originalidade, devido aos ataques de diferentes áreas das ciências humanas, em especial da psicologia comportamental e, mais recentemente, das neurociências, que, se transformadas em ideologia, atribuindo um caráter dogmático aos resultados de suas pesquisas, acabam negando a liberdade, que é a espinha dorsal do ser humano e a raiz da responsabilidade do agir.
Mas o processo de expropriação da identidade do homem encontra sua expressão mais radical (e completa) quando confrontado com a inteligência artificial; neste caso, o que preocupa não é tanto a oferta ao homem de uma prótese, que lhe permita ampliar as possibilidades de exercer a inteligência e a memória, mas a pretensão de reduzir a inteligência humana aos processos próprios dos mecanismos que regem à ação da máquina ou ainda pensar que seja possível alcançar uma autonomia absoluta desta última, que ao invés é sempre dependente em sua ação dos impulsos que lhe são fornecidos pelo homem, e portanto não pode desfrutar daquela flexibilidade e criatividade capaz de adaptar imediatamente o comportamento a situações que se apresentam com características completamente novas em relação aos modelos previstos nos dispositivos pré-ordenados pelo homem.
É possível sair do túnel? A deriva aqui delineada não parece poder ser contida facilmente: o poder da técnica parece destinado a se espalhar sem que seja possível erguer barreiras que o bloqueiem ou margens que o canalizem. Porém, há quem acredite que uma terceira via possa ser identificada - é assim que Julian Nida Rumelin e Nathalie Weidenfeld a definem em Umanesimo digitale. Un’etica per l’epoca dell’intelligenza artificiale [Humanismo Digital. Uma ética para a era da inteligência artificial, Franco Angeli, Milão] - que evita tanto "visões apocalípticas do futuro, porque acredita na razão humana", quanto "uma atitude entusiasta em relação ao potencial da tecnologia porque reconhece seus limites". Trata-se de uma forma de humanismo, o chamado “humanismo digital” - como o definem - que não renuncia a acreditar que o sujeito tem a possibilidade de reagir aos condicionamentos denunciados, recuperando a sua autoconsciência e a sua capacidade de juízo crítico perante as situações, bem como de exercício do controlo sobre elas. A razão e os sentimentos não podem ser totalmente sufocados e não deixar que aflore aquela forma de sabedoria que permite distanciar-se das pressões externas, adquirindo a consciência da própria liberdade de decisão, por mais que seja sempre limitada e, portanto, sentindo a necessidade de exercer a própria responsabilidade pelo que acontece. O que implica, após a fase de envolvimento passivo, pela dificuldade de uma consciência ainda pré-tecnológica de escapar da dependência, a capacidade de ler e de decompor os mecanismos e as dinâmicas dos vários instrumentos do mundo digital, apreendendo as diferenças qualitativas que caracterizam os processos humanos e reivindicando aqueles espaços de autonomia que pertencem à pessoa enquanto tal. Trata-se de pôr em ato um verdadeiro "despertar antropológico" - como o define Vittorio Possenti -, que envolve um olhar renovado sobre si mesmos e a realidade. Um despertar da mente e do coração, que faça jorrar do fundo aquela linfa vital que faz do homem um ser incomensurável, cuja dignidade consiste na abertura transcendente.
Tudo isso exige, para ser devidamente implementado, a concretização de uma ação educativa abrangente - um processo de autoeducação permanente - que não se contente em favorecer o uso responsável dos instrumentos tecnológicos, mas ofereça uma perspectiva de realização humana e espiritual, centrada no “ser mais”, na adesão aos valores do humanismo perene, único que tem o poder de dar respostas satisfatórias à demanda de sentido. Somente nessas condições o humanismo digital pode se tornar humanismo em sentido pleno, capaz de libertar o homem de toda forma de escravidão e de dependência e abri-lo ao horizonte de uma libertação radical.
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A urgência de um despertar antropológico na era da maquinização do homem e da humanização da máquina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU