07 Janeiro 2021
"Precisamos parar de vê-las como antagônicas, mas como expressões distintas do mesmo processo da construção humana, ou da criação divina, como queiram olhar! Uma está pautada naquilo que vê, enquanto a outra na perspectiva do estar por vir. Ambas se apoiam na busca do encontro, na constituição zelosa do caminho como método, na procura do algo a mais...Todas estão a serviço da grande travessia humana rumo aquilo que ainda não sabemos o que é, nem onde está, mas sabemos da existência e que fatalmente iremos alcançar", escreve Rafael dos Santos da Silva, professor da Universidade Federal do Ceará - UFC e doutorando em sociologia pela Universidade de Coimbra.
A aproximadamente 30 km antes da cidade de Santiago capital da Galícia, mais precisamente na rota romana do místico caminho de Santiago de Compostela, se lê a seguinte inscrição: “sempre siga a rota cênica”, ou seja, a rota mediada pela arte e pela intuição. Logo abaixo, um símbolo celta chama atenção, é a marca do infinito que mais tarde seria associada a ideia do conhecimento e da ciência. Imediatamente emerge uma reflexão: o que exatamente significa aquelas duas mensagens aparentemente contraditórias e ao mesmo tempo complementares, escritas por pessoas diferentes, possivelmente em épocas diferentes, mas trilhando o mesmo caminho? É possível haver fé na ciência? Perguntariam os místicos. Há ciência na fé? Retrucam os céticos. Afinal quem poderia vencer essa questão?
Para refletir a importância da fé e da ciência chamo Teilhard de Chardin, para quem “a ciência com toda a probabilidade será cada vez mais impregnada de misticismo” Neste arremate, o teólogo se esforça para aproximar a emoção da razão, sorrateiramente separada pela metafisica, mas que na realidade são irmãs siamesas, pois nunca foram antagônicas, e sim complementares. O que se sabe é que a fé é uma dimensão associada a ideia da possibilidade, da expectativa gestada no imponderável, enquanto a ciência guarda aspectos da responsabilidade quando se busca uma resposta clara e objetiva aos anseios humanos.
Na prática, a ciência é antes de tudo um ato de fé. Por quê? Porque ela sempre está à procura daquilo que não sabe. A racionalidade humana apenas adaptou-a aos seus métodos, azeitou em suas técnicas. Como quem monta um imenso quebra-cabeça em que primeiro se separam as peças até permitir uma disposição minimamente informativa, assim a ciência se vale de métodos e técnicas de modo que quando somadas e bem utilizadas indicam aos cientistas um caminho outro, permitindo-os juntar aquilo que já é conhecido, até fazer emergir outra coisa até então desconhecida. Em ciência ninguém parte do vazio quântico. É preciso intuir.
Um bom exemplo vem da palavra hipótese. Se a olharmos com atenção veremos tratar-se da formação entre um radical grego “hipo” que significa por baixo, com outra palavra igualmente grega denominada tese, aqui aplicada a ideia de conhecimento. Quando unidas formam a grosso modo, uma nova palavra que significa “por baixo do conhecimento”. Aí podemos observar que a humanidade constrói seu “conhecimento” a partir de algo que já conhece para justamente encontrar aquilo que ainda não conhece, mas que se supõe existir. Logo, o ato de fazer ciência - levantando hipótese - é iniciada pela intuição.
Intuir é essencialmente um ato de fé, e fé é acreditar naquilo que não se pode ver. Paradoxalmente, esses atos caracterizam aquilo que mais singular tem o ser humano. São partes constitutivas da condição humana. Reside aí a centralidade do meu argumento, que passa a se orientar pela imagem da fé como complemento ao uso da ciência, que na sua ausência, só pode ser mediada pela intuição, quer seja social, ou mesmo espiritualmente. Com isso não estou propondo hierarquias entre essas dimensões, apenas reivindicando a circularidade havida entre elas. Nesse sentido, a fé é marcada por um estágio anterior ou posterior ao uso da razão. Dito de outra forma: a fé entra em cena todas às vezes em que a razão acaba, ou do mesmo modo, a fé pode antecipar a racionalidade para fazer intuir o novo. A maioria dos grandes cientistas não gostam dessa ideia porque sabem que reside aí a justaposição que sustenta suas teorias, mas lhe retiram a capa da superioridade tão perseguida pelos céticos.
Quando a penicilina foi descoberta, por exemplo, estavam ali o uso da fé e da ciência, antecipadas pela intuição à razão, dando-se num todo complexo. A fé, no sentido de acreditar em algo que não se via, dava-se como primeira mediadora do cientista. Certamente ninguém ocupa uma bancada de pesquisa e diz que numa quarta-feira às 16:00 vai encontrar um antibiótico, não é isso! Mas, a procura é por essência mediada pela incerteza. Assim, se busca algo que não se sabe! Nesse momento, um elemento místico invade o cientista que vai dar sentido à sua intuição a partir de técnicas e métodos até alcançar um todo racional, mas cuja origem se deu em outro plano. Como ele foi convencido pela modernidade de que fé e ciência não andam juntas, e até que uma delas nem existe, sua descoberta parece ser resultado apenas do seu conhecimento.
Não obstante, sabemos que sem a mediação da fé, não podemos atualizar a expressão coletiva mais profunda. Isso porque a fé nos une pela mística, sem o qual não podemos ser coletivos. De igual modo, a ciência nos impõe a mediação da moral, que na sociedade ocidental atingiu o ápice no individualismo do consumo de massa. Por isso, sem a dimensão da fé a ciência pode produzir destruição. Ser orientada apenas para privatizar o conhecimento e disponibiliza-lo a interesses escusos, ou do mercado excessivamente monetizado. É isso que estamos por reafirmar: sem a mediação da fé, a ciência dar-se ao vazio da razão, apela a associação fria dos números, esvazia-se em positividades efêmeras.
Há um dito popular a nos recobrar a lucidez em que se diz “o sol não pode viver perto da lua”. Mas ninguém já mais cogitou reduzir a importância deste ou daquele astro. O sol não pode viver perto da lua porque ao se pôr, o sol abre espaço para a lua, e está por sua vez vela a humanidade até que o sol volte a brilhar. Cumprem, portanto, funções distintas e igualmente importantes. Assim é a fé e a ciência. Precisamos parar de vê-las como antagônicas, mas como expressões distintas do mesmo processo da construção humana, ou da criação divina, como queiram olhar! Uma está pautada naquilo que vê, enquanto a outra na perspectiva do estar por vir. Ambas se apoiam na busca do encontro, na constituição zelosa do caminho como método, na procura do algo a mais...Todas estão a serviço da grande travessia humana rumo aquilo que ainda não sabemos o que é, nem onde está, mas sabemos da existência e que fatalmente iremos alcançar.
Nesse singular relacionamento, a fé e a ciência são dimensões constitutivas da essência humana, pois se com elas o indivíduo encontraria dificuldades para mediar sua estada terrena, sem elas, tão pouco, conseguiria promover o grande processo evolutivo que nos trouxe até aqui. Nesse sentido, insisto que elas – fé e ciência – não precisam caminhar separadas, pois não são antagônicas. Não disputam absolutamente nada, mas apenas se dão em sequência circular à atividade humana.
Ao fim, e ao cabo, em 2021 vamos precisar retirar da fé e da ciência aquilo que elas têm de melhor a oferecer ao todo civilizatório. Os desafios não são pequenos de modo que a razão da ciência, e a intuição da fé, terão algo a nos dizer. Contudo, já se sabe que é preciso haver fé na ciência para não nos perdermos nas teias da razão pura, e assim respondermos à possibilidade histórica do porvir. De igual modo é necessário haver uma ciência na fé, sempre a nos guiar pelo abstrato da possibilidade que ainda não se materializou, mas já é gestada pela intuição.
Finalmente, se é verdade que o sol não pode viver perto da lua, tampouco podemos imagina-los um sem o outro, pois cada um cumpre sua possibilidade e responsabilidade no todo complexo da nossa existência. Assim é a ciência e a fé, essenciais que são ao projeto humano. Juntas não podem sucumbir a distância dos céticos, nem a pureza intuitiva dos místicos, mas devem nos revelar toda potencialidade da ciência da fé, e a esperança emanada da fé na ciência.
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A Ciência e a Fé – duas dimensões essenciais a humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU