20 Outubro 2020
A palavra e a coragem de Dom Paulo Evaristo Arns fazem falta neste Brasil de 2020, por tudo que sua história representou na luta pelos direitos humanos, escreve Paulo Vannuchi, integrante da Comissão Arns, jornalista, ex-ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, em artigo publicado por Rede Brasil Atual - RBA, 19-10-2020.
Era março de 1973. As pesadas portas metálicas de nossas celas acabavam de ser trancadas às 17 horas, para reabrirem de manhã. Ao custo de uma greve de fome de 32 dias, derrotada em sua meta de impedir a dispersão entre várias unidades, os presos políticos tinham pelo menos conquistado um regime prisional mais suportável.
Estávamos na Casa de Detenção de São Paulo, pavilhão 5, a poucos metros do local onde 111 brasileiros seriam massacrados em 1992, crime que segue impune ainda hoje. Os ferrolhos metálicos faziam um barulho forte na ala dos presos políticos, durante vários minutos, até que as 50 ou 60 celas individuais estivessem fechadas. O resto era silêncio.
Me assustei quando voltei a ouvir o mesmo barulho de ferro meia hora depois. Quase pânico quando percebi que a cela sendo aberta era a minha. Ali estava o temido chefe-de-disciplina da prisão, Luís de Paula, mas desta vez acompanhando uma luz que trajava vestes de bispo católico. Com gentileza e suavidade, essa luz ordenou ao funcionário: me deixe aqui com ele por 15 minutos. Depois quero falar com todos eles. O senhor poderia mandar abrir as portas das celas?
Confesso que o pedante ateísmo que eu tentava praticar desde os 17 anos – regra obrigatória na militância de esquerda antes da Revolução Sandinista – sofreu um forte abalo. Senti que ainda resistia em meu coração um pouco da fé ardorosa do coroinha criança, filho de um pai que cursou seminário claretiano durante 12 anos, até abandonar a vocação e procurar minha mãe.
Dom Paulo fazia uma corajosa – quase atrevida – visita de solidariedade aos presos políticos, tachados pelo regime e por toda a mídia como perigosos terroristas. Nos primeiros minutos, ficou só comigo para contar sobre a decisão de celebrar missa na Catedral da Sé denunciando a morte sob torturas de Alexandre Vannucchi Leme, meu primo, quase-irmão, ambos nascidos em 1950, que tinha nos visitado ali naquele mesmo Carandiru três meses antes.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
O nome daquele bispo tinha chegado pela primeira vez aos meus ouvidos em janeiro de 1971, pouco antes de ser preso, pela homilia que mandou celebrar em todas as missas dominicais da Arquidiocese para denunciar as torturas infligidas no Departamento de Ordem Política e Social (Deops) de São Paulo ao padre Giulio Vicini e Yara Spadini. Dentro da cela, foi a primeira vez que tive o privilégio de ver aquele vulto tão de perto.
Era proverbial o seu bom humor. Lembro que, no final de 1976, ao receber de nossas mãos o convite para meu primeiro casamento, me abraçou e abriu um largo sorriso para Lúcia, dizendo: “Ah! Eu pensei que você fosse ficar padre”. O verbo foi esse mesmo, ficar.
Entre o final de 1979 e meados de 1985 foi meu chefe e protetor, quando fiz parte do grupo responsável pelo clandestino projeto “Brasil: Nunca Mais”. Foram cinco anos de poucos contatos diretos com ele, geralmente a cargo de Jaime Wright e Luiz Eduardo Greenhalgh. Mas a equipe sabia que tinha aquele gigante como escudo e viga de sustentação.
Não consigo lembrar o motivo que me fez pedir uma conversa com ele em meados de 2001. Após algumas semanas na fila, ele me recebeu na igreja ao lado da Faculdade de Direito, templo onde estudaram o poeta dos escravos, Castro Alves, e também Luiz Gama, somente na condição de ouvinte, por ser negro, no Largo de São Francisco.
A conversa foi muito rápida. Imagino que ele concedia umas dez ou doze audiências desse tipo em cada tarde, em alguns dias da semana, já aposentado da titularidade arquidiocesana, mas sempre Cardeal dos Direitos Humanos. Logo de cara me pergunta, sempre sorridente, o que eu estava fazendo da vida. Contei que não tinha terminado a Medicina, havia me formado em Jornalismo e trabalhava há bastante tempo como assessor do Lula.
Como um raio, ele já começou a encerrar a conversa: Ah! Eu quero falar com o Lula! O Lula vai ser o próximo presidente. Avisa que eu quero falar com ele. Tenho de fazer um pedido a ele.
Animado com esse vaticínio, feito um ano antes das eleições, começamos a planejar a visita a sua residência, que era então numa agradável encosta da Cantareira. Acabou ocorrendo no último dia útil antes do Natal. Sou testemunha do pedido apresentado ao futuro presidente.
Na mesma entonação sorridente e afetuosa com que havia ditado as regras ao carcereiro de 1973, ele praticamente ordenou ao visitante: Lula, agricultura familiar! Esse é o segredo da minha família e da minha região em Santa Catarina. Ninguém passa fome. Podem ser pobres, mas possuem uma vida digna. Esse é o meu pedido a você, que será eleito presidente no ano que vem.
Não sei dizer o quanto das decisões do Lula presidente sobre esse assunto se deve a essa conversa. Para mim, o diálogo teve uma certa dimensão de êxtase.
Por tudo o que pregou, realizou e enfrentou enquanto esteve entre nós, não pode restar qualquer dúvida:
Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns, que falta sentimos de sua palavra e de sua coragem neste Brasil de 2020!
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Conversas com Dom Paulo, o cardeal dos direitos humanos no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU