20 Outubro 2020
“Em teoria, o Estado é o responsável pela proteção de seus cidadãos, porém na prática tornou-se os principais infratores”, afirma o padre jesuíta Anthony Samy Cyril sobre a atual situação da Índia.
A entrevista é de Lucía López Alonso, publicada por Religión Digital, 17-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em um país que aparenta garantir direitos, as autoridades exercem violência contra os pobres, os dalits, os tribais, os que são descaradamente discriminados. “A democracia e as instituições democráticas estão agora em jogo”, diz o padre Cyril, de Tamil Nadu (Índia).
Jesuíta desde 1985, o padre indiano dirigiu a editora Vaigarai, da Companhia de Jesus, durante 12 anos, e o Santuário de São João de Britto (mártir e missionário português), em Oriyur, durante cinco anos. Preocupado por integrar o espiritual, o social, o educativo, o econômico e o ambiental em todas as suas missões, hoje trabalha em Gansoville, lutando por justiça para as viúvas, as últimas das últimas em uma sociedade profundamente patriarcal e supersticiosa.
Qual é o seu labor social como missionário jesuíta na Índia? A que coletivos acompanha e onde?
Atualmente dirijo a Associação de Povos da Sociedade Gandhiana (Gansoville), fundada pelo padre Jesudasan, s.j., em 1976, que seguiu o estilo de vida de Gandhi e promoveu seus valores e princípios entre o povo do campo. Prestamos serviços para o empoderamento dos pobres das zonas rurais, em particular o empoderamento das mulheres viúvas e indigentes; o empoderamento das crianças; o empoderamento dos dalits; o empoderamento dos transexuais; e a promoção de um meio ambiente saudável, de alimentos e medicina natural.
Como bom jesuíta, articula a defesa ativa dos direitos humanos com a reflexão intelectual. A que temas dedica suas pesquisas?
Tenho promovido a educação em direitos humanos para crianças e professores em escolas desde 1997. Isso tocou as mentes e os corações das crianças e transformou suas vidas e as de outras pessoas. Eles começaram a olhar para a sociedade e sua vida da perspectiva dos direitos humanos. É por isso que meu ex-provincial, padre Aloysius, repetidamente me exortou a iniciar meu doutorado em qualquer uma das áreas dos direitos humanos. Decidi fazer algumas pesquisas sobre o papel efetivo da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Índia (NHRCI) com uma referência especial ao tratamento de casos de direitos das crianças em Tamil Nadu. Um dos mandatos do NHRCI é promover uma cultura de direitos humanos por meio da educação em direitos humanos entre crianças, jovens e várias autoridades estaduais. Minha pesquisa de doutorado correu bem e em breve será publicada como um livro.
Você trabalha com mulheres na Índia, que também são viúvas. Um país em que sua exclusão chega ao extremo do repúdio em alguns casos.
Na Índia, as mulheres são geralmente consideradas cidadãs de segunda classe. Em todos os aspectos da vida, elas são discriminadas, exploradas e degradadas. Não são consideradas pessoas com dignidade e direitos, mas sim objetos a serem usados e explorados. Como resultado, elas sofrem mais violência e estupro. Entre as mulheres, as mulheres dalit, tribais, rurais e pertencentes a minorias são mais vulneráveis e estão em alto risco. Portanto, de modo geral, o status e a imagem das mulheres são baixos e estão sempre em perigo na Índia.
Quem é viúva? Uma mulher que perdeu o marido fica viúva. A imagem da viúva é muito baixa, altamente negativa. Está profundamente enraizado na cultura indiana. Foi transmitido de uma geração para outra. A Índia representa o segundo maior número de viúvas no mundo, depois da China, que tem 43 milhões de viúvas. Elas sofrem estigmatização social e privação econômica em grande parte porque perderam seus maridos.
De acordo com o último censo (dados sobre o estado civil), houve um aumento exponencial no número de viúvas desde 2001. A população da Índia em 2011 era de 1,21 bilhão, das quais 5,55 milhões são viúvas. Como em 2001, o censo de 2011 encontrou mais viúvas nas áreas rurais do que nas urbanas. Os dados também mostraram que as viúvas representam uma porcentagem significativa da população de Kerala e Tamil Nadu.
As viúvas são as vítimas silenciosas da Índia. Desde a morte dos maridos, em nome da cultura e da religião, são socialmente privadas de todos os seus direitos: o direito a uma vida digna; direito à mobilidade; direito de assumir liderança; direito de propriedade; direito de casar novamente; direito de se vestir da maneira que quiserem, etc. Sua própria visão é considerada abominável. São consideradas e tratadas como “mulheres más”, “azaradas” e “cadáveres vivos”.
A viúva indiana é triplamente discriminada: como mulher, como viúva e viúva pobre. Estão fisicamente vivas, mas socialmente mortas. O antigo problema das viúvas está entrelaçado com a discriminação de gênero e a superstição, questões que penetraram profundamente no espírito de nossa cultura indiana. Surge da noção profundamente enraizada na mentalidade dos povos indianos de que “as mulheres deixam de ter direito a viver no momento em que enviúvam... no momento em que ficam solteiras”.
A presença de viúvas em todas as ocasiões auspiciosas, como casamentos, incluindo os de seus próprios filhos, não é permitida porque as pessoas acreditam que isso traria uma maldição aos recém-casados... Em suma, as viúvas são criaturas indesejadas. Os sogros, com quem tradicionalmente vivem, as renegam e, se voltam para a casa dos pais ou irmãos, não são acolhidas, principalmente pelas cunhadas.
Elas não têm o direito de usar enfeites, fazer embelezamentos simples como outras mulheres de sua idade, como a) manter flores na cabeça, b) pottu na testa, c) aplicar pó de açafrão no rosto, e) vestir kolusu (um ornamento tradicional usado nas pernas). Quaisquer que sejam as razões da morte de seus maridos, elas são culpadas e têm o respeito básico na família negado. As viúvas geralmente não compartilham essa dor com ninguém. Não seriam compreendidas. Elas sofrem em silêncio. A sociedade muitas vezes olha para elas com pena. O que elas precisam não é de pena, mas a afirmação de seus direitos.
As missões confessionais ainda são necessárias em pleno século XXI, com tantas ONGs leigas trabalhando? Missionários e ONGs não estão realizando uma tarefa que corresponderia aos Estados?
Em teoria, o Estado é o principal responsável pela proteção de seus cidadãos, mas, na prática, tornou-se o principal infrator. Eles fazem coisas para publicidade, popularidade, atração, etc. Portanto, o papel da sociedade civil, incluindo as ONGs, é vital agora. Algumas kolusu notáveis respondem com grande coragem e compromisso. Portanto, elas também estão pagando o preço de defender direitos, agora o clima político na Índia é muito antidemocrático e contrário aos direitos constitucionais. Portanto, o papel da sociedade civil será importante na restauração da democracia.
Como a crise e o confinamento do coronavírus estão afetando a população vulnerável? De que forma os jesuítas concentraram seu trabalho para apoiar essas pessoas?
Afetou a todos no país em diferentes níveis. Pessoas vulneráveis, como diaristas, pobres, migrantes, dalits, tribos, foram mais afetadas do que outras. Nós jesuítas, onde estamos presentes, alcançamos o inalcançável em colaboração com outras organizações. A Gansoville em colaboração com o Rotary Club ajudou mais de mil famílias, distribuindo os recursos necessários para seu sustento, mantimentos que poderiam ajudá-las por um mês.
Intelectuais e ativistas como Arundhati Roy disseram que as medidas de prevenção do coronavírus poderiam provocar um “novo sistema de castas” que aparta os infectados. O que opinas?
O que foi dito é verdade. Algumas pessoas afetadas e infectadas sofreram isso. Mas eu diria que é temporal, enquanto o sistema de castas permanece há séculos e segue sem ser abolido.
O padre Stan, jesuíta, apesar de sua idade, foi preso pela NIA. O governo está violando a Constituição? Por que se incrimina a luta dos Adivasi?
O atual governo viola constantemente a constituição da Índia sem consciência. A democracia e as instituições democráticas estão em jogo agora. O Estado de Direito não está em prática. O que aconteceu com Stan é uma violação dos direitos humanos e dos direitos constitucionais. A questão de Stan reuniu ativistas sociais, partidos políticos seculares, minorias e as bases para levantar uma voz contra o governo não democrático.
O que você acha da nova encíclica do Papa Francisco sobre a fraternidade universal? Vai dar muito o que falar?
A maioria de seus pensamentos inspiram não apenas os católicos, mas também outros. Esta encíclica sobre a fraternidade universal é um documento altamente inspirador. Promoverá a relação de amor entre os seres humanos e com a natureza, que finalmente alcançará a paz interior e exterior.
Que imagem você tem da Espanha e de Santo Inácio de Loyola?
A Espanha tem uma grande história. É um país que deu origem a um gigante espiritual, Santo Inácio de Loyola. Seus exercícios espirituais, seus conhecimentos e técnicas ainda são relevantes e o serão no futuro.
Como se pode colaborar com os projetos desenvolvidos pelos Jesuítas em TN?
Colaborando como voluntários; vir para experimentar a vida dos vulneráveis e marginalizados. Esta experiência criará solidariedade e proximidade entre nós. Isso nos dará a oportunidade de praticar a fraternidade universal.
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Índia. “As viúvas são as vítimas silenciosas da Índia, onde as mulheres são cidadãs de segunda”, denuncia o jesuíta Anthony Samy Cyril - Instituto Humanitas Unisinos - IHU