"O ensinamento espiritual que inspira a abertura da nova encíclica é, entretanto, inserido pelo Frade Francisco perto do final de sua vida como coluna da 'casa da Sabedoria', onde os capitéis formam esculturas e se correspondem entre si. Não apenas os irmãos são convidados a percorrer esse edifício espiritual, mas todos os crentes e todas as pessoas na terra", escreve Niklaus Kuster, em artigo publicado por L'Osservarore Romano, 22-09-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Niklaus Kuster (1962) é um frade capuchinho suíço, formado em teologia e conhecido estudioso de São Francisco. É professor de história da Igreja na Universidade de Lucerna e espiritualidade franciscana nos institutos superiores da ordem em Münster (PTH) e Madrid (ESEF). Ele homenageou o perfil franciscano do Papa Francisco em seu livro: Franz von Assisi. Freiheit und Geschwisterlichkeit in der Kirche, (Verlag Echter) Würzburg 2019.
O título da terceira encíclica do Papa Francisco, com suas palavras iniciais “Fratelli tutti”, suscita reações às vezes bastante fortes. De fato, Francisco de Assis, que é aqui citado, se dirige a todas as pessoas de fé - irmãos e irmãs no mundo inteiro. A seguinte contribuição ilustra a fonte que dá nome à nova encíclica e pede traduções precisas.
Mesmo semanas antes da terceira encíclica do Papa Francisco ser assinada em Assis e seu texto ser publicado (1), foi deflagrado um intenso debate sobre seu título. Na área da cultura alemã, há mulheres que se propõem a não ler um texto que se dirige apenas aos “irmãos todos”. As traduções pouco sensíveis ignoram o fato de que na obra citada Francisco de Assis se dirige tanto às mulheres como aos homens. O autor medieval defende, como a nova encíclica, uma fraternidade universal. O Papa Francisco coloca em destaque uma pérola espiritual da Idade Média capaz de surpreender as leitoras e os leitores modernos.
Quando a encíclica foi anunciada, a reação da mídia foi justamente a de se perguntar se o Papa Francisco coloca uma citação discriminatória no início (incipit) de sua terceira encíclica. Como é possível que ele, cujas primeiras palavras públicas após a eleição foram "irmãos e irmãs", agora se dirija apenas aos "irmãos todos"? Por que o incipit excluindo as mulheres exclui metade da Igreja? “Apenas os irmãos - ou o quê?”, questiona uma contribuição crítica de Roland Juchem (2).
O diretor do serviço do Vaticano da KNA explica que a nova encíclica inicia conscientemente com as palavras do místico medieval de Assis, que foram fielmente traduzidas. Visto que o Frade Francisco se dirige a seus irmãos, a expressão "omnes fratres" deveria ser formulada no masculino. De acordo com essa lógica, porém, a tradução correta seria "Frades todos”! E então o texto seria lido apenas por uma minoria infinitesimal na Igreja.
O Papa Francisco inicia sua nova encíclica com uma máxima da sabedoria de seu modelo. Quem, com suposta fidelidade ao texto, insiste em uma tradução exclusivamente masculina, não reconhece o verdadeiro destinatário da coletânea medieval: Francisco de Assis, com a composição final de suas "admoestações", dirige-se a todos os homens e mulheres cristãos. As traduções para as línguas modernas devem expressá-lo de maneira precisa e imediatamente compreensível.
Se a encíclica Laudato si' em seu incipit citava o Cântico do Irmão Sol composto pelo Poverello no vernáculo medieval, a terceira encíclica do Papa se reporta a uma coletânea de suas máximas de sabedoria. A fonte utilizada pelo Papa Francisco nas edições modernas dos escritos franciscanos traz o título Admonitiones. A expressão “admoestações” é redutora, visto que no total dos 28 ensinamentos espirituais incluem-se também numerosas bem-aventuranças, um breve tratado e até um cântico à força dos dons do Espírito (3). A edição holandesa realmente prefere falar de “Wijsheidsspreuken” (máximas de sabedoria) (4). Ser dirigidas aos frades vale para a gênese das máximas individuais, não para a coletânea sucessiva.
Quando os tradutores se baseiam no fato de que todas as edições padrão dos escritos franciscanos em todas as línguas do mundo traduzem o omnes fratres da máxima citada na forma masculina, apreendem apenas uma meia verdade. Em outras palavras: a tradução literal da frase latina não reflete o pleno significado que o texto pretende expressar em sua forma final! Na edição italiana das Fonti Francescane, a sexta admoestação começa com as palavras: "Olhemos com atenção, irmãos todos, o bom pastor, que para salvar as suas ovelhas sofreu a paixão da cruz" (5). Já aqui se pode notar que a imagem do pastor e do seu rebanho usada no texto inclui toda a Igreja, e não apenas um grupo de frades. Para reconhecer o destinatário final da coletânea de textos citados pelo Papa, é necessário distinguir entre o nascimento das diferentes partes do texto e sua composição final. Nesta última, a palavra fratres amplia-se do pequeno círculo da fraternitas franciscana a toda a Igreja.
A citada sentença provém de uma coletânea que reflete as discussões espirituais entre os Frades Menores e suas conclusões amadurecidas. A composição geral amplia o horizonte além do pequeno círculo inicial. As máximas individuais são dirigidas aos irmãos de Francisco, aos "religiosos" em geral e também a todas as pessoas ao serviço de Deus (servi Dei). Nos últimos anos de sua vida, Francisco de Assis reuniu 28 ensinamentos espirituais bem selecionados para formar um ciclo que conduz a um edifício espiritual e lembra a "casa da Sabedoria" bíblica, com suas "colunas lavradas" (6). O número simbólico 28 é composto por 4 x 7: o quatro indica o mundo e o sete a criação de Deus, o 28 representa simbolicamente a Igreja como obra de Deus (7). Quem entra em um pórtico artisticamente decorado e se limita a olhar para uma única coluna? Para esse edifício espiritual são convidadas todas as pessoas, sem exceção, e de fato as palavras da coletânea são dirigidas a todos.
Na abertura da coletânea final, a primeira admonitio efetivamente fala da Eucaristia, mas também se dirige de modo programático a todas as filhas e os "filhos dos homens" (8): assim, o texto em latim no curto tratado convidativo indica que o horizonte da esperança se abre para toda a Igreja e para todos os membros da humanidade. No seu percurso através da casa da Sabedoria, descobrirão um caminho para uma "vida que torna feliz" (9). Com efeito, no centro desse ciclo de lições espirituais, Francisco de Assis comenta as bem-aventuranças bíblicas, também dirigidas a todas as pessoas, acrescentando a elas dez bem-aventuranças próprias.
O Papa Francisco não destaca um único texto, mas toda uma coletânea de textos, já definida por Kajetan Esser como a "Magna Carta" da fraternidade cristã (10). O subtítulo da encíclica deixa claro que ela é dirigida, como o documento comum cristão-islâmico de Abu Dhabi sobre a fraternidade universal, para além da própria Igreja, para a humanidade: o Papa Francisco escreve "sobre a fraternidade e a amizade social", que deve unir, sem qualquer exclusão, todas as pessoas em um mundo solidário.
A razão pela qual o Papa Francisco com sua visão fraterna da humanidade faz justamente referência ao seu modelo de Francisco de Assis e coloca uma citação fraterna no início de sua encíclica pode ser brevemente ilustrada. Os escritos transmitidos pelo santo contêm um conjunto de cartas, algumas das quais dirigidas a determinados frades (Leão, Antônio, responsáveis pelo governo), outras a toda a fraternitas dos Minores e a todos os fiéis.
Uma singular carta circular, por outro lado, estende o horizonte ao universal e se dirige a "todas as autoridades e cônsules, aos juízes e reitores em qualquer parte da terra, e quantos a que esta carta chegar" (11). Nenhum papa e nenhum imperador da alta Idade Média se dirigiu à humanidade de uma forma tão universal.
Na Regra de 1221, dirigida aos seus irmãos, Francisco de Assis insere um convite a toda a humanidade que ultrapassa toda fronteira de nação e de religião: não só os fiéis cristãos e não só os que estão empenhados a nível eclesial, mas “todos os povos, gentes, raças e línguas, todas as nações e todos os homens de todas as partes da terra, que são e que serão ... todos nós amamos ... o Senhor Deus” (12).
O místico amplia seus horizontes a toda a família humana na Regra específica para os frades, poucos meses depois de chegar ao Egito na Quinta Cruzada e ter experimentado de maneira impressionante, através do encontro com o Islã, que é possível encontrar sabedoria espiritual e o amor de Deus mesmo fora da própria religião (13). A mesma abertura universal ocorre também com suas máximas de sabedoria, que nas Admonitiones são unidas em um ciclo artístico de curtas lições.
Nos últimos anos de sua vida, Francisco insere aquelas que foram palavras de sabedoria para seus frades em uma composição dirigida a todos os fiéis. O texto latino não requer nenhum acréscimo ou modificação: a expressão "fratres" usada para os frades também inclui irmãos e irmãs carnais ou espirituais, como ainda hoje fazem "fratelli", "hermanos" e "frères" nas línguas latinas. Hoje, as línguas germânicas distinguem entre "Brüder" (apenas irmãos homens) e "Geschwister" (irmãos e irmãs), e igualmente entre "Brüderlichkeit" (sem as irmãs) e "Geschwisterlichkeit" (com as irmãs). Da mesma forma, o inglês distingue entre "brothers" (homens) e "siblings" (irmãos e irmãs), e entre "brotherhood" (frequentemente sem as irmãs) e "fraternity" ou "siblinghood" (incluindo todos).
Depois que a primeira admoestação no início traz todos os "os filhos e as filhas do homem" para dentro da bela casa da Sabedoria, tal destinatário universal também deve ser referido aos fratres da sexta admonito: é dirigida a todas as mulheres e os homens cristãos, e diz respeito a todas as pessoas na Terra.
Sobre a coletânea das 28 Admonitiones, as pesquisas franciscanas afirmam o seguinte: os textos únicos transmitidos deveriam condensar discursos que originalmente tratavam de questões relativas à vida espiritual e comum no âmbito dos frades. Com o tempo, alguns colóquios foram resumidos por escrito e destacados. Algo semelhante com o que aconteceu com os ditos dos antigos padres e madres do deserto no círculo de seus seguidores, transmitidos de forma condensada no Apophthegmata e no Meterikon (14). Mesmo os ensinamentos individuais de Francisco foram anotados nas situações mais díspares por companheiros capazes de escrever e condensados em sua essência. Ele mesmo, no final da vida, combinou esses resultados de discursos comuns assim reunidos em uma obra completa, na qual os ensinamentos adquiriram uma nova dimensão e um novo direcionamento.
Não é por acaso que o primeiro ensinamento começa com uma citação bíblica programática: “O Senhor Jesus disse a todos os que o seguem: Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Os portais românicos das igrejas às vezes convidam a entrar no templo com uma figura de Cristo no tímpano, justamente com esta mesma citação em um livro aberto.
No Edifício espiritual dos Admonitiones, depois de dois ensinamentos preparatórios, dez máximas de sabedoria traçam o caminho para o lugar da ceia. Seguem-se quatro bem-aventuranças bíblicas e outras dez bem-aventuranças franciscanas, antes que dois ensinamentos conclusivos preparem o retorno à cotidianidade. Os ensinamentos individuais, assim se unem para compor uma casa espiritual da sabedoria que se assemelha a uma basílica: à esquerda da nave doze colunas conduzem, como uma "via da verdade" para a área do altar, cujo dossel é sustentado por quatro colunas delgadas e define o lugar de comunhão íntima com Deus.
Depois, do outro lado da nave, doze colunas levam de volta ao portal e marcam a "via de vida". Via - veritas - vida são as chaves para a composição de uma obra completa, cujas palavras isoladas, separadas do contexto em que nasceram, tornam-se uma mensagem para todos os cristãos, homens e mulheres. Quem estiver interessado na coletânea das Admoestações da qual o Papa Francisco tira as palavras iniciais de sua encíclica, em breve encontrará uma análise da composição e da mensagem completa em uma série especializada da PTH Münster (15).
Com as palavras iniciais de sua terceira encíclica, o Papa Francisco remete expressamente a Francisco de Assis. O patrono do seu pontificado fala de uma fraternidade universal que, no Cântico do Irmão Sol, se estende a todas as pessoas e criaturas. Entre as cartas circulares do santo há uma que se dirige universalmente a todas as pessoas da terra. Até na Regra da Ordem de 1221, composta para os frades franciscanos, ele se dirige a todas as pessoas e a todos os povos com um convite a amar juntos o Deus único.
A sexta admonitio citada pelo Papa condensa, partindo do contexto em que nasceu, os resultados de um discurso espiritual no âmbito dos Frades menores. O ensinamento espiritual que inspira a abertura da nova encíclica é, entretanto, inserido pelo Frade Francisco perto do final de sua vida como coluna da "casa da Sabedoria", onde os capitéis formam esculturas e se correspondem entre si. Não apenas os irmãos são convidados a percorrer esse edifício espiritual, mas todos os crentes e todas as pessoas na terra.
O “omnes fratres” ou “fratelli tutti” da encíclica deve, portanto, ser traduzido como citação de São Francisco, de modo que todos os cristãos, homens e mulheres, se sintam envolvidos. O destinatário da citada coletânea de textos estende-se a "todos os irmãos e irmãs" que se encontram nos espaços eclesiais reais e ideais, estendendo-se a todas as pessoas da terra. Nessa abertura, o Papa Francisco também se dirige com sua encíclica a todas as pessoas sobre a terra.
(1) A assinatura da encíclica acontecerá de forma muito simbólica na véspera da festa de São Francisco, 3 de outubro de 2020, na basílica do santo em Assis.
(2) A contribuição foi publicada online em 8 de setembro de 2020: "Titel der neuen Papst-Enzyklika: Nur die Brüder - oder wie?".
(3) Edição italiana: Fonti Francescane. Nuova edizione,editada por Ernesto Caroli, Padua 2004, 107-118 (= FF 141-178). Edição oficial alemã: Dieter Berg / Leonhard Lehmann (ed.), Franziskus-Quellen. Zeugnisse des 13. und 14. Jahrhunderts zur Franziskanischen Bewegung, vol. 1, Kevelaer 2009, 45–55.
(4) Gerard Pieter Freeman / Hubert J. Bisschops / Beatrijs Corveleyn / Jan Hoeberichts / André Jansen (ed.), Franciscus van Assisi. De Geschriften, Haarlem 2004, 108–122.
(5) Fonti francescane 111 (= FF 155).
(6) v. Provérbios 9,1: "A sabedoria já edificou a casa, já lavrou suas sete colunas"; cf. Provérbios 14, 1 e 24, 3-4.
(7) Sobre o simbolismo das Admonitiones como uma igreja ideal aberta a todos: Theo Zweerman / Edith van den Goorbergh, Franz von Assisi - gelebtes Evangelium. Die Spiritualität des Heiligen für heute, Kevelaer 2009, 69-71.
(8) Admonitio I, 14 com Salmo 4, 3 na versão do Volgata: “filii hominum”.
(9) A coletânea das admoestações como percurso de ensinamento sutilmente composto e edifício espiritual é explicada por Zweerman / Van den Goorbergh, Gelebtes Evangelium, 62-94.
(10) cf. Niklaus Kuster, Franziskus. Rebell und Heiliger, Freiburg 42016, 150–154; original: Kajetan Eßer, Anfänge und ursprüngliche Zielsetzungen des Ordens der Minderbrüder, Leiden 1966, 273-276.
(11) Fonti francescane 146 (= FF 210).
(12) Fonti francescane 86-87 (= FF 68-69).
(13) cf. Niklaus Kuster, Spiegel des Lichts. Franz von Assisi - Profeta der Weltreligionen (Franziskanische Akzente 22), Würzburg 2019.
(14) Los escritos de Francisco e Clara de Asís. Textos y apuntes de lectura, ed. por Julio Herranz - Javier Garrido - José Antonio Guerra, Oñati 2001, 40; Pietro Messa - Ludovico Profili, Il Cantico della fraternità. Le ammonizioni di frate Francesco d’Assisi,, Assis 2003; Francisci Assisiensis Scripta - Francesco d‘: Assisi Scritti, edidit crítico Carolus Paolazzi, Grottaferrata 2009, 346.
(15) Niklaus Kuster,Weisheitssprüche des Franz von Assisi. Zum Charakter der Admonitiones und zur Komposition ihrer Sammlung “, em: Möllenbeck, Thomas / Schulte, Ludger (ed.), Weisheit - Spiritualität für den Menschen, Münster 2021 (será publicado no final do primeiro semestre de 2021).