15 Setembro 2020
"Descobrimos que não há valor maior que a vida, a nossa vida e de toda comunidade de vida. Ela surgiu há 3,8 bilhões de anos e a humana há cerca de 8-10 milhões de anos. Ela passou por várias devastações, mas sempre se manteve viva", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e autor de "Covid-19: o contra-ataque da Mãe Terra à humanidade", que será publicado em breve pela Editora Vozes.
Segundo ele, "o que nos salva como seres vivos e sociais é a solidariedade, a cooperação, a generosidade e o cuidado de uns para com os outros e para com o ambiente".
Como afirmou o renomado filósofo alemão Jürgen Habermas, numa entrevista acerca do Covid-19: “Nunca soubemos tanto de nossa ignorância como agora”. A ciência é indispensável para sobrevivermos e dar conta da complexidade das sociedades modernas. Mas ela não pode ser arrogante e pretender, como certos cientificistas postulam, que ela poderia resolver todos os problemas. Mas na verdade, o que não sabemos é infinitamente maior do que sabemos. Todo saber é finito e perfectível. Isso está a se comprovar agora por ocasião da busca desenfreada por uma vacina eficaz contra o Covid-19. Não sabemos quando estará disponível, nem quando desaparecerá a epidemia.
Tal fato tem como efeito o ocaso de um horizonte de vida e de esperança e causa aquilo que tão bem em seu twitter escreveu a juíza e escritora (“A vida não é justa”) Andréa Pachá: “A pandemia fez muitos estragos. Alguns físicos, concretos e definitivos. Outros sutis, mas devastadores. Subtraiu a vontade de rir, de brincar, de fazer planos, mesmo aqueles só utópicos e idealizados, que jamais se realizariam, mas que alimentavam a alma”. Constamos que há profundo abatimento coletivo, melancolia, depressão e até raiva contra uma epidemia contra a qual muito pouco conhecemos e pouco podemos fazer. Todos sentimo-nos rodeados pelo fantasma da contaminação, da intubação e da morte.
O fato é que vivemos não sob uma emergência extraordinária como o tsunami no Japão afetando as usinas nucleares, uma das quais, continua emitindo radioatividade, afetando as costas da Índia, da Tailândia, da Indonésia até as costas da Califórnia ou as grandes queimadas da Amazônia, do Pantanal e das florestas da Califórnia. Com o Covid-19 estamos diante de uma emergência extrema, afetando todo o planeta, consequência de uma profunda erosão ecológica causada pela voracidade das grandes empresas que buscam exclusivamente o lucro material com a derrubada das florestas, o extrativismo, a expansão de monoculturas como da soja ou da criação de gado e a excessiva urbanização do mundo inteiro.
Essa intrusão do ser humano sobre a natureza, sem qualquer sentido de respeito ao seu valor intrínseco, tida como mero meio de produção e não como algo vivo do qual nós somos parte e não donos e senhores, negando-nos a respeitar seus limites de suportabilidade, tem produzido a destruição dos habitats dos milhares de vírus em animais e em plantas que então transbordam para outros animais e para o ser humano.
Temos que incorporar novos conceitos: a zoonose (doença que vem do mundo animal,aves, porcos, vacas, morcegos) e a transferência zoonótica: uma afecção animal transmissível ao ser humano. A partir de agora entrarão no nosso vocabulário não só científico.
Adverte-nos um dos maiores especialistas em vírus David Quammen (Montana nos USA) em seu vídeo “Spillover: the next human pandemic” ( 2015):”é inevitável que volte a haver uma grande pandemia. Pode matar dezenas de milhares, centenas de milhares, ou milhões de pessoas, consoante as circunstâncias e a forma como reagirmos, mas há de aparecer qualquer coisa dessas. Será com certeza um agente zoonótico. Terá origem em animais não humanos. Será certamente um vírus”. Observemos a gravidade desta advertência de um notável cientista.
Face a essa emergência extrema, acrescida com parca mobilidade nacional e internacional, o isolamento social, o distanciamento entre as pessoas e o uso da máscara nos propiciam colocar as questões mais fundamentais de nossas vidas: afinal, o que conta em última instância? O que é definitivamente essencial? Quais as razões que nos levaram a tal situação de emergência extrema? Que devemos e podemos fazer depois que passar a pandemia, se passar? Estas questões são inadiáveis.
Então descobrimos que não há valor maior que a vida, a nossa vida e de toda comunidade de vida. Ela surgiu há 3,8 bilhões de anos e a humana há cerca de 8-10 milhões de anos. Ela passou por várias devastações, mas sempre se manteve viva. E junto com a vida, os meios de vida sem os quais ela não se sustenta: á água, o solo, a atmosfera, a biosfera, os climas, o trabalho e a natureza que nos oferece tudo o que precisamos para viver e sobreviver. E a comunidade humana que nos acolhe e nos oferece as bases da ordem social e espiritual que nos mantêm coesos como humanos. De nada vale a acumulação de bens materiais, a apropriação individual, a pura e simples competição. O que nos salva como seres vivos e sociais é a solidariedade, a cooperação, a generosidade e o cuidado de uns para com os outros e para com o ambiente.
Estes são os valores humano-espirituais, contrários àqueles da cultura do capital material sobre a qual o Covid-19 representou uma espécie de raio que a reduziu em cacos. Não podemos voltar a ela para não provocar a Mãe Terra e a natureza que, caso não mudarmos nossa relação de respeito e de cuidado, nos enviarão outros vírus, talvez ainda mais letais ou até o derradeiro (The Big One) que dizimaria a espécie humana.
Esse tempo de recolhimento forçado é tempo de reflexão e de conversão ecológica, tempo de decidir que tipo de Casa Comum queremos para o futuro. Temos que crescer em solidariedade e em amor a tudo que é criado,especialmente aos humanos, nossos irmãos e irmãs. Seremos o “homo solidarius”, o princípio de uma nova era, da biocivilização, na qual a vida em sua diversidade terá centralidade e tudo o mais a serviço dela. A vida vale por si mesma. Juntos na Casa Comum gozaremos da alegre celebração da vida.
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O Covid-19 nos obriga a pensar: o que é o essencial? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU