14 Julho 2020
"Por trás do descontentamento manifesto de um pontífice desconsolado, podemos vislumbrar projetos de poder, novos interesses de conquista, o legado de páginas dobradas em razão das forças para deslocar equilíbrios e compatibilidades. Hagia Sophia é o símbolo de um caminho, aquela que, a partir do diálogo entre identidade e cultura, leva ao conhecimento em seu significado mais elevado: a Santa Sabedoria como chave para acessar às diversidades, às convivências difíceis, lugares de troca e de encontro quando tudo parece escorregar em direção à lei do mais forte", escreve Umberto Galimberti, filósofo, antropólogo e psicólogo italiano, em artigo publicado por La Repubblica, 13-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mapa do Mar do Mar de Mármara (Foto: too.by)
O Papa Francisco escolhe o dia internacional do mar para dirigir um pensamento simples e incisivo para um canto único e extraordinário do planeta, um canto onde as correntes do Bósforo tocam o Mar de Mármara, o Mar Negro toca o Mediterrâneo e a Europa encontra a Ásia. O mar une o que a terra divide, diziam os antigos navegadores do "mare nostro", tentando mitigar ou conter pressões nacionalistas, a construção de novas impenetráveis fronteiras.
Uma frase inesperada no Angelus de domingo é carregada de significados: “A ideia do mar me leva para longe. O pensamento vai para Istambul, penso em Santa Sofia. Estou muito triste”. A história como chave de leitura volta prepotente, com suas curvas fechadas, suas feridas sangrentas. Podem parecer uma passagem marginal, uma referência distante a páginas de um tempo desbotado, mas não é assim. Por trás do descontentamento manifesto de um pontífice desconsolado, podemos vislumbrar projetos de poder, novos interesses de conquista, o legado de páginas dobradas em razão das forças para deslocar equilíbrios e compatibilidades.
Hagia Sophia é o símbolo de um caminho, aquela que, a partir do diálogo entre identidade e cultura, leva ao conhecimento em seu significado mais elevado: a Santa Sabedoria como chave para acessar às diversidades, às convivências difíceis, lugares de troca e de encontro quando tudo parece escorregar em direção à lei do mais forte.
O mar das civilizações em caminho, horizonte para todos como viagem inacabada, descoberta contínua, comércio e mobilidade irrefreável. Um itinerário que representou para muitos um percurso de fé e de esperança: a Catedral de Justiniano, a Mesquita de Solimão, o Magnífico e, desde 1935, o museu desejado por Mustafa Kemal Ataturk, fundador da Turquia secular e moderna. Um museu para todos, sem certezas ou hierarquias baseadas em livros sagrados de referência, um lugar onde a cultura poderia encontrar formas e conteúdos para espalhar sabedoria e respeito.
Uma obra arquitetônica que tira o fôlego, uma obra-prima do mundo antigo, encruzilhada de culturas dialogantes: grega, romana, cristã e islâmica. Um Patrimônio da Humanidade reconhecido pela UNESCO marcado pelo impulso em direção à construção de pontes e relações fundadas no acesso a um saber construído sobre irreprimíveis diferenças. A recente indicação do Conselho de Estado turco visa reverter as razões de tal caminho: por unanimidade, a virada indica o retorno de Santa Sofia a lugar sagrado no Islã. Um lugar de oração, mas acima de tudo um símbolo de como é possível rebobinar a fita do tempo, retornando à fratura de 1453, à queda do Império Romano do Oriente, ao cerco e à conquista otomana de Constantinopla.
Santa Sofia, em Istambul (Foto: Unsplash)
O efeito é duplo, as palavras essenciais do Papa Francisco vão direto ao cerne do problema. É de se perguntar quais serão as reações do cristianismo do oriente, dos mais de 300 milhões de ortodoxos que correm o risco de viver a reconversão de um lugar simbólico como uma nova contraposição antimuçulmana, uma fratura repleta de consequências. Um golpe de esponja para apagar um museu que há 85 anos conserva, protege e conta as identidades plurais daquele canto do mundo. Além dos apelos ao bom senso dirigidos à liderança turca, as apostas parecem ser a de quebrar o equilíbrio da região.
Erdogan segue um plano preciso: a liderança sunita tem a aparência de um ator global projetado tanto em teatros de crise quanto em interpretações e juízos sobre o passado. Por um lado, intervém movendo peões, tropas e relações de força, pelo outro, destruindo legados e costumes que atrapalham: um novo tempo que apaga o espírito de diálogo da santa Sabedoria para relançar as razões de conflito das identidades contrapostas.
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Erdogan, um tapa na história. Artigo de Umberto Galimberti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU