13 Mai 2020
O Papa Francisco tem uma adesão radical ao Evangelho, o que o torna incômodo. Com o passar tempo, a sua pregação afiada aumentou a fileira dos inimigos, o seu magistério libertador subverte os rigoristas da doutrina, a sua liberdade interior tira o sono da hipocrisia religiosa.
A opinião é de Francesco Cosentino, teólogo italiano e professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Settimana News, 12-05-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“E, mentindo, disserem todo mal contra vós por causa de mim...” (Mt 5,11)
As Bem-aventuranças, proclamadas por Jesus no Monte, concluem-se assim. Certamente não é um elogio ao desprezo ou um convite a buscá-lo por si só para torná-lo uma medalha à honra, mas sim uma sacudida que Jesus nos dá para despedaçar a tepidez e a imperturbabilidade com as quais às vezes vestimos a fé como se veste uma roupa confortável para a festa.
Não, diz o Mestre: a fé é perigosa, acende no mundo a memória perigosa de um amor que quer transformar a história, é misericórdia que cuida das feridas dos últimos, e espada que fere a hipocrisia religiosa e a arrogância dos poderosos.
Por isso, preparem-se para ser mal vistos, obstaculizados, hostilizados. E, quando não puderem fazer mais nada, começarão a mentir.
Nada pode ser pior do que uma mentira bem construída, divulgada com todos os meios possíveis e depois vendida como verdade: seu poder chega a convencer até grandes massas. Não é por acaso que, por trás de todo regime totalitário, sempre existe uma grande mentira acreditada como verdade.
O prior de Bose, Luciano Manicardi, afirma que “a força da mentira reside no seu poder de recriar a realidade, de moldá-la à vontade, de manipular outras pessoas, induzindo-as a acreditar e a fazer o que nós queremos com base nas nossas mentiras”.
Se um sinal distintivo das Bem-aventuranças é este, fazer o mesmo caminho do Cristo, imaginar Deus e servir ao ser humano com o mesmo fôlego e a mesma compaixão, então a mentira que diz “todo tipo de mal” pode ser simplesmente a reação do mundo quando ele tem à sua frente um autêntico cristão. Não se diz que ela seja, ela não é automaticamente, mas é possível que a mentira seja a reação para armar ciladas ao justo, que nos estorva (cf. Sb 2,12).
O Papa Francisco tem uma adesão radical ao Evangelho, o que o torna incômodo. Com o passar tempo, a sua pregação afiada aumentou a fileira dos inimigos, o seu magistério libertador subverte os rigoristas da doutrina, a sua liberdade interior tira o sono da hipocrisia religiosa. O sonho de uma Igreja que não ocupa espaços, mas inicia processos e que larga as pedras do moralismo e da condenação para se tornar abraço do ser humano, é decisivamente demais. E, como Francisco tem força, coragem e palavra que chega ao coração de todos velozmente, ele pode ser atingido sobretudo com a mentira.
Assim, começaram a circular inúmeras fake news sobre o Papa Francisco. Em princípio, silenciosas e rastejantes, tentaram depois fazer barulho em vários blogs, sites e páginas sociais, que, todos os dias, nos “alegram” com teses delirantes e, ao mesmo tempo, desconcertantes.
Trata-se de um conservadorismo religioso de retorno cheio de ideologia, que desposa algo que ganha corpo de modo cada vez mais preocupante: um mundo de lobbies políticos e econômicos, perturbado por um papa que condena a cultura do descarte gerada pelo capitalismo, coloca a dignidade dos pobres novamente no centro e se faz consciência crítica contra a exploração dos recursos.
Valia para Jesus assim como vale hoje para o papa: se permanecemos no âmbito religioso e sagrado, talvez falando de princípios abstratos, pode ser bom; mas, se começamos a falar dos pobres, dos migrantes, dos explorados, de como nós também somos responsáveis com os nossos estilos de vida por uma progressiva injustiça social que destrói o planeta Terra, então estamos diante da apostasia, do papa que barateia a doutrina, do Evangelho reduzido a socialismo, e assim por diante.
Desagrada, mas não surpreende. A renomada assinatura do Corriere della Sera sabe escrever bem, mas também pode “convencer” o leitor, reunindo, com retórica arte jornalística, alguns lampejos de verdade e algumas mentiras colossais. No entanto, não encanta quem tem olhos e coração para ler a história real desse pontificado e o que acontece na história.
O mais irônico dos ataques contra Francisco é que, para atingi-lo, acabam dizendo, de modo simples, verdades importantes, um pouco como aconteceu com Caifás, que, sem querer, proferiu uma profecia sobre Cristo: “É melhor um só morrer pelo povo do que perecer a nação inteira”.
Assim, Galli della Loggia afirma que “o discurso público de Francisco tende a perder toda especificidade de tipo religioso” assim que sai do âmbito das cerimônias e dos ritos; ao separar culto e vida, louvor e compromisso social, o jornalista diz uma extraordinária verdade: Francisco não é um papa religioso.
Exatamente isso. Não lhe interessa defender um papel e demarcar os espaços de uma instituição, nem ter o controle religioso das consciências e delimitar o poder religioso diante do poder civil e político. Pelo contrário, ele coloca em prática a velha lição de Ratzinger, segundo a qual quanto mais a Igreja perde relevância social e política, mais ela se torna a Igreja de Cristo, despojada de interesses mundanos e preocupada em levar a novidade do Evangelho ao mundo para transformá-lo não como força política, mas como fermento de uma força de outra natureza.
O seu discurso não é especificamente religioso, porque ele sabe que, no coração do Evangelho, não há a religiosidade hipócrita dos escribas e fariseus, mas sim o amor a Deus e ao próximo.
O discurso “social” do papa, além disso, estaria separado da própria doutrina social da Igreja e da própria mensagem do Evangelho, que permanecem em segundo plano, transformando tudo em uma ideologia anticapitalista, que ataca os Estados Unidos e nunca se refere à Europa.
As mentiras têm pernas curtas, especialmente em tempos de comunicação social: basta recuperar a cronologia. É possível ver bem que um discurso oficial do pontífice quase nunca prescinde da riqueza do Evangelho e da beleza dos gestos de Jesus, assim como de amplas referências ao magistério do passado.
Se, depois, o que perturba é a crítica ao capitalismo e ao neoliberalismo atuais, isso é legítimo; mas, depois de anos em que um inimigo igualmente perigoso quanto o comunismo ocupou muitas das intervenções sociais do magistério, também é legítimo que hoje o papa denuncie um sistema que continua semeando no mundo o câncer da injustiça.
Sobre a Europa, são inúmeras as intervenções do Papa Francisco, desde o discurso ao Parlamento Europeu de 2014 até a Regina Coeli do domingo passado.
O fato – diz Della Loggia – é que, sem essa centralidade religiosa do discurso papal, perde-se “aquela que sempre foi a força política da Igreja”. E, também desta vez, apesar de tudo, Della Loggia diz a verdade: o Papa Francisco está convencido de que a “Igreja de Constantino" não faz uma política melhor a serviço do mundo, mas se caracteriza como um conúbio com elementos mundanos do poder político-econômico que, no mínimo, a desnaturalizam.
Eles a tornam poderosa de um ponto de vista mundano, mas perdedora quanto à lógica evangélica. Ele sabe – porque, ao contrário de quem o acusa, ele lê o Evangelho – que a semente do Evangelho do amor que transforma o mundo, a sociedade, as relações e as estruturas é diferente e não desposa a lógica do poder terreno e político.
Ele sonha com uma Igreja despojada, que não se apressa para exibir no mundo a sua própria habilidade de saber entrar no jogo das partes, mas se gloria apenas do amor crucificado de um rei que não é deste mundo. Um rei que, a partir da sua Igreja, quer uma presença histórica e “política” assim como o fermento e a pequena semente escondida.
A última coisa que poderíamos sugerir a Della Loggia é reler aquilo que foi escrito pela companheira de vida, Lucetta Scaraffia, no L’Osservatore Romano do dia 2 de dezembro de 2018: “Com essa sua capacidade de desmascaramento, que ele sabe aplicar a muitas questões, Francisco demonstra como o compromisso espiritual cristão está sempre ligado à verdade e, portanto, à justiça, e como essas devem ser vividas no momento histórico. Isso explica o sucesso – mas também as muitas oposições – àquele que, de fato, é verdadeiramente um papa incômodo”.
Isto também é verdade: um papa incômodo. Que agora esperamos que incomode um pouco a todos, fazendo-nos perguntas sérias e sensatas sobre a nossa adesão ao Evangelho. E, talvez, incomode também os bispos italianos, que talvez, diante dos ataques e das mentiras dirigidas há muito tempo contra o Papa Francisco, deveriam oferecer algum posicionamento mais claro.
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Um papa incômodo. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU