23 Janeiro 2020
"Para o projeto de uma nova constituição ser bem-sucedido requer uma recomposição do tecido político, um retorno da confiança. Isso não será fácil, pois, embora grandes setores da população tenham 'acordado', políticos e dirigentes convencionais continuam a agir para silenciá-los. É necessária uma abertura para a pluralidade de movimentos e, em vez de criminalizá-los, apagá-los ou imobilizá-los, é urgente ouvi-los, respeitá-los e protegê-los, pois é com eles que a confiança na política pode ser reconstruída", escreve Eduardo Gudynas, ambientalista e pesquisador vinculado ao Centro Latino-Americano de Ecologia Social - CLAES. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Nove em cada dez chilenos não têm confiança nos partidos políticos. Essa é uma situação impactante, e mais ainda quando são os políticos que deveriam encaminhar o processo para uma nova Constituição, o mecanismo mais urgente para superar a crise que ficou em evidência desde outubro de 2019. Esses e outros resultados foram encontrados na recente pesquisa do Centro de Estudos Públicos - CEP, confirmando o desordenamento da política convencional, porém também deixando claro que essa crise é mais profunda do que assume boa parte da classe política, seja tanto pela esquerda quanto pela direita [1].
Essa nova avaliação mostra que o Chile enfrenta tensões que somente podem ser descritas como brutais. É que a saída da crise por meio de uma nova constituição que deixe para trás definitivamente as heranças pinochetistas está nas mãos de políticos, porém quase ninguém os respalda. 98% dos chilenos desconfiam dos partidos, 97% do Congresso e 95% do Governo. A política convencional ficou nas mãos de uma minúscula minoria que quase ninguém apoia.
Apesar disso, os partidos políticos que sustentam o governo seguem insistindo em que uma das saídas pode ser uma convenção constitucional “mista”, com 50% parlamentares. Não entendem que os congressistas têm confiança de 3%. O senso comum demandaria se centrar na outra opção, uma convenção com constituintes especificamente eleitos para essa tarefa, e sobretudo provenientes de movimentos sociais. De todo modo, esses políticos convencionais já estão entorpecendo ou bloqueando a postulação de candidatos independentes. Assim fazem de vários modos, como exigi-los os próprios mecanismos que usam os partidos políticos, desatendendo a paridade de gênero, impedindo que exista representação específica para os povos originários, e até entorpecendo o acesso à televisão.
Ao mesmo tempo, Sebastián Piñera, quem de alguma maneira segue coordenando ações para sair desse atoleiro, submergiu ao nível mais baixo de apoio público a um presidente no continente: somente 6% dos chilenos o respaldam. É menor que o apoio à Dilma Rousseff no Brasil (7%) quando houve sua destituição; e também menor que Fernando de la Rúa na Argentina (8%) quando fugiu de helicóptero da casa presidencial. Dito de outro modo, quase todos os chilenos desconfiam ou creem que a pessoa responsável a mostrar os caminhos da crise é incapaz disso.
Nem sequer os partidos políticos da oposição parecem entender essa problemática já que repetem posturas que seguem o distanciando das reivindicações cidadãs. Por exemplo, para enfrentar o protesto nas ruas, os parlamentares da coalizão de governo estão aprovando uma “lei antirroubos” com duras penas. Nela, ações como a interrupção da livre circulação de pessoas ou veículos mediante violência, ou intimidação ou instalação de barricadas, podem ser penalizadas de 61 dias a quase um ano e meio de prisão; e os que lançam objetos cortantes ou contundentes (como pedras), podem ser presos por até três anos [2]. É uma lei duríssima, que criminaliza os protestos, porém que de todos os modos recebeu votos de apoio de parlamentares opositores, e inclusive daqueles que se autointitulam de esquerda no Chile, com o PPD de Ricardo Lagos ou os legisladores do Partido Socialista.
Isso permite entender que o descrédito não afeta apenas o presidente, mas sim que atinge a todos os demais atores em todo espectro ideológico. Segundo a pesquisa do CEP, as avaliações negativas superam largamente as positivas em líderes da direita política, como Jacqueline van Rysselberghe da UDI (74% da imagem negativa ou muito negativa frente a 6% da positiva, o que a situa como a pior avaliada, inclusive abaixo de Piñera). Porém, a oposição política também é castigada pela opinião pública. Por exemplo, Camila Vallejo, deputada pelo Partido Comunista recebe 61% de imagem negativa. Os líderes mais jovens que iludiam com uma renovação a partir da esquerda com o emergir do movimento estudantil, sofrem do mesmo padecimento: Gabriel Boric recebe 46% de imagem negativa e somente 19% positiva, e Giorgio Jackson, líder da Revolução Democrática e um dos promotores da Frente Ampla, tem 49% de imagem negativa e 19% de positiva.
Para além dos limites de pesquisas como as do CEP, e a qualidade desses indicadores, o que parece evidente é que as maiorias cidadãs não somente não se sentem refletidas nos ditos e ações dos políticos, mas sim que cada vez mais desconfiam deles. O problema é muito mais agudo para as esquerdas, já que se esperaria que sintonizaram melhor com as demandas nas ruas.
De fato, a virada para a esquerda que ocorreu em vários países vizinhos no início dos anos 2000 foi o resultado de severas crises em governos conservadores ou neoliberais, e que incluíram revoltas sociais em alguns casos. Nesses países, as esquerdas escutaram, aprenderam, aproveitaram e lideraram esses processos, e por isso venceram as eleições. Mas é certo que uma vez alcançado o governo, esses grupos político-partidários transitaram da esquerda ao progressismo, como se sucedeu no Equador com a Aliança País de Rafael Corrêa, ou na Bolívia com o Movimento ao Socialismo de Evo Morales. Porém esse progressismo formou-se como resultado de um largo processo que teve lugar enquanto estavam no governo, alimentado entre outras coisas por repetidas concessões ao economicismo convencional ou os extrativismos.
Ao contrário dessa evolução, parecia que a esquerda chilena mudaria rapidamente ao progressismo, sem ter ganhado o governo e estando na oposição. Isso não é exagerado e basta repassar a recente carta de renúncia de quase 70 militantes ao Partido Socialista – PS, os quais claramente defendem que seu partido “hoje vive a deslegitimação social mais profunda de sua história”, por uma liderança que nunca assumiu a vontade de militância em favor de um “programa antineoliberal e crítico ao capitalismo”, e que se distanciou dos movimentos sociais, para se somar a um “polo socialdemocrata conservador”.
A carta é lapidária: “Chile despertou, porém o PS segue sumido em letargia” [3].
Reclamações similares são escutadas desde importantes líderes que atuavam dentro da Frente Ampla – FA. O prefeito de Valparaíso, Jorge Sharp, expressa a raiz do problema: “Não entendo como a FA prefere dialogar com esses setores autoritários da direita e não com os movimentos sociais”, e acrescenta que a derrota desse autoritarismo não será feita com a direita, mas “trabalhando e construindo com o povo” [4]. Sharp renunciou em novembro à Convergência Nacional, um dos grupos da Frente Ampla, quando o seu líder, Gabriel Boric, se somou ao programa do governo para uma nova Constituição.
Os analistas e acadêmicos mais próximos aos partidos e mais distanciados dos movimentos sociais nem sempre parecem interessados nesses paradoxos, e seguem apostando na classe política convencional. Por exemplo, o sociólogo e consultor Eugenio Tironi estima que dado o baixíssimo respaldo a Piñera, a alternativa é “cogovernar” com o parlamento e no possível com os municípios, naquilo que chama de “semi-presidencialismo de facto” [5]. Porém isso leva a perguntar se Tironi, como muitos outros acadêmicos, realmente entendem o que essa altíssima desconfiança significa, já que sua receita é persistir com aqueles que governam com 97% e 95% de rechaço. Não há novidade substancial nisso. Por isso não pode surpreender que se louve Piñera, afirmando que “demonstrou o tipo de ductilidade que se adquire no mundo dos negócios e isso é meritório para governar nos tempos atuais”. Nessa afirmação revela-se que Tironi, como outros analistas, seguem apostando em uma estratégia de governo como se fosse um gerenciamento empresarial; não é o país que está em crise, mas sim a “companhia” e basta um bom “gerente” para lidar com isso. Não haveria uma crise profunda nos modos de conceber e praticar a política como discussão pública, mas sim o que se padece é uma má gestão.
Pelo contrário, é mais apropriado aceitar que a revolta social de outubro de 2019 resulta de tensões e contradições muito mais complexas e profundas que um simples problema de gerenciamento. Nesse sentido, está melhor encaminhada Kathya Araujo, ao alertar sobre um “efeito de fissão” onde se rompem as adesões às normas e instituições da vida em comum, prevalecendo a “desconfiança, a impotência, a resignação ou, em sua versão mais preocupante”, o rechaço radical [6].
Não se está frente a um colapso do respaldo ou popularidade de algumas figuras políticas, ou de um partido, mas sim a um colapso generalizado da confiança em todos e cada um dos políticos e de suas organizações. A gravidade é alarmante, porém parece que muitos ainda não entendem. As tensões que se geram são brutais.
É verdade que a rejeição dos modos políticos convencionais permite reivindicações de mudanças profundas, como uma nova constituição, pondo fim à comercialização da previdência social ou da medicina, recuperando o controle da água, levando a sério a multinacionalidade, e assim por diante. Essa reação contra a política clássica permitiu-nos de romper com mitos angustiados, retomarmos debates adiados, estimularmos o ativismo e uma abertura a alternativas de mudanças que pareciam impensáveis alguns meses atrás.
Mas, ao mesmo tempo, a rejeição pode ser tão extrema e sustentada que consome as opções de construções políticas alternativas, justamente quando mais se necessita delas. Para o projeto de uma nova constituição ser bem-sucedido requer uma recomposição do tecido político, um retorno da confiança. Isso não será fácil, pois, embora grandes setores da população tenham “acordado”, políticos e dirigentes convencionais continuam a agir para silenciá-los. É necessária uma abertura para a pluralidade de movimentos e, em vez de criminalizá-los, desligá-los ou imobilizá-los, é urgente ouvi-los, respeitá-los e protegê-los, pois é com eles que a confiança na política pode ser reconstruída. Ao mesmo tempo, esses movimentos também devem enfrentar desafios: eles estão se aproximando do momento em que devem se organizar, coordenar e se representar para que suas vozes sejam ouvidas, devem criar uma política adaptada às suas demandas de mudança.
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Chile. Nove em cada dez chilenos não têm confiança nos partidos políticos. As brutais tensões do colapso dos políticos. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU