20 Janeiro 2020
"É verdade que o papa se manifestou negativamente a respeito de questões de identidade de gênero, mas ele também se encontrou com um transgênero e escreveu uma carta de apoio a uma freira que trabalha com mulheres transgênero. Francisco não parece compartilhar essa fixação condenatória de impedir a igualdade das pessoas transgênero mostrada por muitos bispos americanos", escreve Robert Shine, em artigo publicado por New Ways Ministry, 18-01-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Um arcebispo americano disse que, na visita ad limina, o Papa Francisco considerou o movimento pelos direitos dos transgêneros como uma “questão significativa” de hoje, ao lado da questão do aborto.
O arcebispo da Arquidiocese de St. Louis, no estado do Missouri, Dom Robert Carlson, falou sobre a visita ad limina ao Papa Francisco, que incluiu 15 bispos da região leste dos EUA. Segundo Carlson, o papa destacou duas questões como significativas: o aborto e os direitos das pessoas transgênero. O sítio eletrônico National Catholic Reporter explicou:
“Enquanto Francisco ‘falava do aborto com uma questão preeminente’, disse Carlson, ‘também falou que existe uma outra questão significativa e esta é a das ‘pessoas transgênero’ – onde tentamos tornar todo mundo a mesma coisa. Isso não faz diferença, podemos ser quem quisermos ser”.
“O papa trouxe este tema como um exemplo de ‘um outro tema significativo’ dos nossos dias”.
“Perguntado se o papa aconselhou os bispos sobre como lidar com a questão transgênero, Carlson disse que o pontífice lembrou a forma como os propositores creem que as pessoas são ‘todas uma e que não há diferença, o que contradiz aquilo que João Paulo II falava sobre a complementaridade e contradiz a dignidade da mulher e do homem’.
“É claro que um papa ou um bispo, ou qualquer líder religioso, precisa focalizar uma variedade de temas e preocupações, mas ‘existem algumas pessoas que só prestam atenção em um assunto e, assim, nunca ficam satisfeitas’”.
Qual o significado destes comentários que teriam sido feitos pelo papa e que chegaram até nós por um bispo fortemente de direita?
Primeiro, devemos ter em mente que estas palavras atribuídas a Francisco chegam a nós em segunda mão. Não há nenhum comunicado ou nota pública de Francisco a confirmar, corrigir ou negar o que Carlson diz. Vejamos um outro contexto para avaliar as declarações que aqui nos ocupam.
No mesmo artigo que diz que Francisco teria dito que os direitos das pessoas transgênero eram uma “questão significativa”, Carlson e o arcebispo da Arquidiocese de Kansas, Dom Joseph Naumann, citam o papa como a concordar com os bispos dos EUA que creem que o aborto é o tema “preeminente” de hoje. Esta afirmação e especificamente a palavra “preeminente” são significativas à luz do debate acalorado ocorrido na assembleia, em Baltimore meses atrás, da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA.
Ao debater uma carta introdutória do guia eleitoral dos bispos aos católicos do país, intitulada “Forming Consciences for Faithful Citizenship” (Formando as consciências para uma cidadania fiel, em tradução livre), Blase Cupich, cardeal-arcebispo de Chicago, procurou inserir um parágrafo da encíclica papal Gaudete et Exsultate. Neste parágrafo, que o cardeal disse sucintamente resumir o ensino magisterial do papa, Francisco considera um “erro ideológico” a priorização de um problema ético em detrimento de outros. O papa escreve que uma série de temas, como o tráfico humano e a pobreza, são igualmente sagrados (Gaudete et Exsultate, 101). Mas os conservadores na assembleia denunciaram o acréscimo de Cupich para incluir este trecho, insistindo que o aborto era o tema “preeminente” sobre todos os demais. A assembleia aplaudiu a resposta dada pelo arcebispo da Filadélfia, Dom Charles Chaput a Cupich. Em última instância, o aborto foi descrito como “preeminente”.
Com o contexto deste debate e o das eleições, a reportagem sobre a visita ad limina sustenta a pauta de Naumann, presidente da Comissão para as Atividades Pró-vida da conferência episcopal americana, e de Carlson, que crê que negar a comunhão a políticos pró-escolha é aceitável. No modo de pensar deles, os bispos receberam uma bênção papal para as prioridades anti-escolha. O que eles dizem, no entanto, não parece concordar com as palavras, com os escritos e com as ações do papa. Na verdade, pouco depois de sua eleição em 2013, Francisco criticou os católicos “obcecados” com o aborto, com a igualdade matrimonial e com métodos contraceptivos. As mudanças climáticas e a migração têm sido as principais questões de justiça neste papado, e não o aborto. E foram as nomeações episcopais do papa, como o Cardeal Cupich e Dom Robert McElroy, bispo de San Diego, que advogaram contra chamar de questão “preeminente” o abordo durante os debates em Baltimore.
Como este contexto ilumina a nossa compreensão daquilo que o papa teria dito sobre os direitos das pessoas transgênero?
Carlson e Naumann têm um longo histórico contrário a temas LGBTQs. Carlson repetidas vezes condenou os grupos de escoteiros que passaram a ser mais inclusivos, e sua arquidiocese publicou diretrizes que desencorajam os jovens a se assumirem. Ele também se opôs à igualdade matrimonial.
Por sua vez, Naumann defende abertamente uma organização que promove as terapias de conversão sexual e se colocou favorável às tentativas do governo Trump de autorizar a discriminação contra pessoas LGBTQs nos planos de saúde. A sua arquidiocese apoiou um padre que negou a admissão em uma escolha católica ao filho de um casal homoafetivo.
É verdade que o papa se manifestou negativamente a respeito de questões de identidade de gênero, mas ele também se encontrou com um transgênero e escreveu uma carta de apoio a uma freira que trabalha com mulheres transgênero. Francisco não parece compartilhar essa fixação condenatória de impedir a igualdade das pessoas transgênero mostrada por muitos bispos americanos. A sua abordagem a questões LGBTQs é dissonante daquela de Carlson, Naumann e do episcopado americano.
Algo não está de acordo. Não sugiro aqui que os arcebispos estejam mentindo, mas que é possível que a sua narrativa possa estar distorcida, intencionalmente ou não, para reafirmar uma pauta sobre temas sociais que lista mais as prioridades deles próprios do que as do papa. Um esclarecimento do Vaticano seria bem-vindo, ainda que seja bem pouco provável. E assim, não pela primeira vez, os católicos ficam na incerteza sobre o que se passou entre os bispos e o papa quanto ao tema LGBTQ.
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Arcebispo americano diz que Papa Francisco considerou direitos dos transgêneros uma ‘questão significativa’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU