25 Novembro 2019
Desde a Finlândia até o Quênia, passando pelo Brasil e os Estados Unidos, proliferam os projetos-piloto para comprovar os resultados de uma renda mínima vital.
A reportagem é de Luis Doncel, publicada por El País, 25-11-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A ideia não é nova. Richard Nixon já flertara em 1969 com um imposto negativo sobre a renda que, em essência, não difere muito da renda básica, a qual agora anda de boca em boca por meio mundo. O presidente republicano imaginou um pagamento direto do governo a todos os estadunidenses que não alcançavam um determinado nível de renda. Meio século mais tarde, na era da digitalização e dos robôs, quando o emprego parece um bem cada vez mais escasso, o debate sobre a necessidade de que o Estado assegure as necessidades básicas a todos os cidadãos cresce como uma bola de neve.
A renda básica universal, não há muito tempo, soava como um projeto fantasioso, mas agora vai se abrindo o caminho. Ao menos no plano teórico e em experiências-piloto. Seus maiores defensores são políticos e economistas de esquerdas. Porém, também liberais-conservadores que veem uma via para substituir o resto das ajudas sociais. Os ensaios feitos até agora são muito distintos entre si e não oferecem conclusões definitivas. Depois do experimento na Finlândia – que foi suspenso no ano passado, antes do previsto e com resultados ambivalentes –, a cidade californiana de Stockton (EUA), a brasileira Maricá (RJ) e várias comunidades rurais do Quênia abrem novos focos para a discussão.
A ONG Give Directly, com financiamento do Google ou de um cofundador do Facebook, impulsiona uma das provas mais ambiciosas. A ONG selecionou 5 mil pessoas em distintas comunidades rurais do Quênia, às quais pagará 2.280 xelins mensais (em torno de 20 euros) durante 12 anos. No total, o número de beneficiários desse programa supera 20 mil pessoas. Nesta semana foi publicado o primeiro trabalho científico sobre a experiência de contribuir com um pagamento único de mil dólares a 10.500 lares escolhidos de forma aleatória, em 653 aldeias do país africano. E os resultados mostram que o dinheiro não beneficiou apenas quem o recebeu, mas sim toda a comunidade.
“As transferências produziram um importante aumento do consumo nos lugares tratados, assim como nos não tratados”, assegura o artigo, publicado por cinco autores de universidades como Berkeley ou Princeton. Os pesquisadores também esclarecem um dos aspectos que geram mais incerteza nesses programas: sai a ideia de que dinheiro que cai do céu para uns quantos prejudicaria os que não o receberam, causando um aumento generalizado dos preços. “Houve muito pouca ou nenhuma inflação”, conclui o artigo. “Os benefícios se estenderam a toda a comunidade porque o dinheiro foi gasto na economia local, aumentando as rendas dos pequenos negócios e impulsionando os salários”, explicaram por e-mail Dennis Egger e Johannes Haushofer, autores do estudo.
É certo que as conclusões de uma área rural do Quênia dificilmente extrapolam para os países ocidentais. Um dos problemas conceituais da renda básica é que se converteu em uma caixa de costura na qual cabem realidades diametralmente opostas. Assim, a ideia de um pagamento universal – isto é, para todos os cidadãos pelo mero fato de sê-lo, independentemente de sua situação pessoal ou renda – se mistura às vezes com rendas mínimas garantidas para populações em risco de exclusão, como parte das políticas de luta contra a pobreza.
“Hoje uma pessoa pode trabalhar e não ter garantido o mínimo vital. Essas novas formas de pobreza vão fazer com que o debate sobre a renda básica seja cada vez mais intenso. Somente assim se explica que os três últimos Nobel de Economia se ocuparam desses assuntos”, assegura Jordi Sevilla, ex-ministro, presidente de Red Eléctrica e responsável pelo relatório sobre renda básica que o Observatório Social de La Caixa acaba de publicar.
O debate passou da academia aos parlamentos. Irrompeu, por exemplo, nas primárias democratas dos Estados Unidos. O candidato Andrew Yang se agarra à destruição do emprego que causará a mudança tecnológica para propor uma renda básica, que ele chama de Dividendo da Liberdade, dotado de 1.000 dólares mensais para todos os estadunidenses maiores de 18 anos. Seu rival Bernie Sanders criticou essa ideia e defende de forma mais ambígua uma ajuda que garanta a renda mínima a todos os cidadãos.
Não é universal, mas é muito difundida em uma comunidade de 150 mil habitantes a experiência a ser implementada em Maricá, uma localidade próxima ao Rio de Janeiro, na qual 52 mil habitantes receberão, a partir deste ano, 130 reais mensais (28 euros). Igual a lugares como Alaska ou Irã, que se financiam com o rendimento do petróleo. A novidade é que o pagamento se fará em mumbucas, uma moeda eletrônica criada há seis anos que se pode usar somente no município. Aqui, a renda básica terá um efeito de espectro amplo. “Muitos observadores criticam, com razão, que os projetos-piloto feitos até agora não ofereciam resultados conclusivos porque afetavam uma parte mínima da população durante um período concreto. Isso fazia ser impossível estudar o impacto da renda básica em preços ou salários. Porém, em Maricá, um em cada três habitantes receberá o dinheiro, e por um período ilimitado. Assim poderemos estudar seus efeitos de uma forma muito mais completa”, assegura Stephen Nuñez, responsável pelo projeto.
As limitações que descreve Nuñez se encaixam como uma luva às do experimento finlandês. Ali se deram 560 euros mensais, porém em uma comunidade muito limitada – 2 mil desempregados – e durante apenas dois anos. Os resultados preliminares, apresentados em fevereiro, foram ambivalentes: o dinheiro não modificou a empregabilidade dos beneficiários. Ter um salário garantido não lhes fez deixar de buscar trabalho, como temiam os detratores da renda básica; porém tampouco se cumpriu a expectativa dos impulsionadores da iniciativa, que confiavam que ao liberar os desempregados da papelada necessária para cobrar os subsídios, esses adotariam uma atitude mais ativa na busca de emprego. Mas o que detectaram no país nórdico foi que 560 euros no bolso, em troca de nada, melhoraram a saúde, a autoestima e o otimismo dos beneficiários.
Olli Kangas, diretor do projeto finlandês, insiste em que não se pode extrapolar os resultados de um lugar para outro contexto, porém vê uma pauta comum da Finlândia ao Quênia. “Em todas as partes se aprecia que a ajuda direta tem efeitos emancipatórios. As pessoas que recebem os fundos adquirem de repente mais voz em seu entorno. Podem dizer o que querem fazer com sua vida”, assegura esse pesquisador, diretor do Programa de Igualdade Social na Universidade de Turku.
No relatório do La Caixa, um dos principais impulsionadores da renda básica, Daniel Raventós, critica os experimentos realizados até agora com dois argumentos: não podiam mostrar os efeitos agregados da renda básica no conjunto da sociedade, e sua curta duração não permite tirar conclusões. Raventós, defensor da expansão dos direitos de cidadania no século XXI, exemplifica essa limitação recordando as palavras do investigador Scott Santens: “Imagine se Abraham Lincoln tivesse feito a sugestão de uma prova-piloto de 20 anos da abolição da escravidão”.
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O mundo ensaia a renda básica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU