23 Outubro 2019
"A polêmica em torno da prisão de condenadas/os em segunda instância, mesmo sem coisa julgada, ainda vai longe, mas certamente não há ser com opiniões como a do atual presidente do Tribunal por onde tramitam os processos da Lava jato - é bom sublinhar-se este dado - que ela vai cessar", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por onde tramitam os processos oriundos da operação policial Lava-jato é presidido pelo Dr. Luis Alberto Thompson Flores Lenz. Ele publicou um artigo na Zero Hora do último fim de semana, defendendo de forma enfática a prisão de condenados em segunda instância, mesmo não existindo ainda “coisa julgada”, ou seja, aquela que não admite mais qualquer questionamento ou mudança. Encerra o seu arrazoado manifestando a esperança de que “os integrantes do STF (Supremo Tribunal Federal) tenham a real dimensão do que está sendo discutido, e estejam imbuídos do melhor espírito público, em defesa dos legítimos interesses do nosso povo.”
O “espírito público” e os “legítimos interesses do nosso povo”, para o Dr. Lenz estariam baseados em quatro principais argumentos: a posição contrária à prisão em segunda instância estaria inspirada em “interesses indefensáveis de corruptos e meliantes de alto coturno”; os acertos da Lava Jato estão sendo contestados por um “procedimento criminoso de violação de mensagens eletrônicas dos servidores públicos que ali atuaram, fato inaceitável”; ainda que alguns agentes possam ser responsabilizados “por eventuais ilícitos cometidos “mesmo assim não seria aceitável discutir os avanços civilizatórios alcançados, entre eles o recolhimento à prisão de condenados em segunda instância”; “essa foi a primeira vez desde o descobrimento do país que o andar de cima foi para a cadeia”, o artigo lembrando vários exemplos disso.
Sobre os interesses indefensáveis há que se ponderar ao presidente do TRF4, que o passado da Lava-Jato vem se desmoralizando a cada semana, pelo trabalho investigativo do Intercept, sob uma tal profusão de provas relativas à conduta do juiz Sergio Moro e do procurador Deltan Dallagnol, que atuavam na sua tramitação, de um modo não hipoteticamente mas comprovadamente “indefensável”. Mais indefensável até daquele que motivou o prêmio dado ao dito ex-juiz, de ele agora poder mandar num Ministério chave, como o da justiça.
Está à sua disposição o poder de atrapalhar ou até impedir que a verdade apareça e ainda venha a aparecer sobre tudo o que a referida operação investigava e ainda investiga. Se é um fato indefensável o de essas provas estarem sendo descobertas agora por um “procedimento criminoso”, o mesmo deveria ter sido reconhecido quando o mesmo juiz Sergio Moro deixou vazar o diálogo da ex-presidente Dilma com o ex-presidente Lula, dentro de um inquérito policial que qualquer magistrado não ignora dever guardar sigilo. Esse crime, até hoje, só conta ao que se saiba, com um pedido de desculpas do juiz hoje ministro, dirigido ao Supremo Tribunal Federal...
A desconsideração do presidente do TRF4 a fatos dessa gravidade estaria justificada (?) pela garantia de a prisão de condenadas/os em segunda instância constituir-se em “avanços civilizatórios” alcançados pelo Brasil. Este é um decreto rigorosamente subjetivo e reducionista, amplamente desmentido pela realidade. Um avanço civilizatório - passe o mais elementar raciocínio de qualquer pessoa mesmo alheia ao esotérico mundo jurídico - não se mede pela forma nem pelo tamanho das penas aplicadas a criminosas/os. Se isso fosse verdade, as de morte teriam diminuído a criminalidade nos países onde elas são aplicadas. Bem ao contrário, um avanço civilizatório é o que se constrói por uma educação garantida universalmente que, se não dispense o Direito Penal, relegue-o à exceção. Este avanço só pode ser medido pela prioridade que todo o governo de Estado minimamente respeitador da cidadania dê aos direitos sociais sob um regime democrático autenticamente de direito, com poder de livrar as pessoas pobres e miseráveis dos males que a injustiça social lhes impõe.
Aqui no Brasil, em lugar de avanço civilizatório afirmado pelo presidente do TRF4, o que está acontecendo é um cruel e injusto retrocesso social, só contestado pelos juízos de quem se nega a ver, ouvir, sentir e, principalmente, participar da resistência popular oposta a tal situação.
Embora um artigo de jornal não seja uma sentença, ele trai um fato recorrente em muitas delas. O de a ideologia presente em grande parte dos julgamentos sobrepor-se à Constituição às leis, às provas, ao tão venerado “devido processo legal” até chegar à denegação da justiça. O articulista da ZH parece não perceber isso. Se a sua argumentação fosse usada em uma das suas sentenças, ela correria o risco de ser anulada por uma contradição notável presente em seus fundamentos. Ao afirmar que as razões oferecidas para se negar prisão a condenados em segunda instância parte de “um procedimento criminoso de violação de mensagens eletrônicas de servidores públicos” que atuaram na lava-jato e que isso constitui “um fato inaceitável”, esse mesmo procedimento deixaria de ser criminoso e inaceitável quando praticado pelos agentes daquela operação policial, como o seu artigo registra:
“Ainda que alguns agentes públicos pudessem ser pessoalmente responsabilizados por eventuais ilícitos cometidos, mesmo assim não seria aceitável discutir os avanços civilizatórios alcançados, e entre eles o recolhimento à prisão de condenados em segunda instância.”
Nenhuma lógica formal ou material consegue aceitar tão notório e frágil artifício argumentativo. A contradição aí é manifesta - se tu praticas uma ação criminosa, deves ser punido, mas se eu fizer o mesmo devo ser absolvido.
Por fim, o Dr. Lenz invoca em defesa do seu posicionamento a questão de ainda desde o descobrimento do Brasil, ser esta a primeira vez que o “andar de cima” vai para a cadeia. Tomara que esta afirmação tenha sido feita de forma distraída o que não deixa de ser estranho, partida de quem parte, por quatro razões principais: a primeira, porque a história já provou que o Brasil não foi “descoberto” em 1.500; a segunda, porque, do ponto de vista rigorosamente jurídico, em vez de descoberto, o país foi mesmo encoberto, subjugado por uma legislação transplantada de Portugal para cá como “águias rapaces”, segundo lição do saudoso jurista gaúcho Ruy Cirne Lima no seu livro sobre “Terras devolutas”. Esta infelicidade se deveu ao poder de uma potência estrangeira colonialista de então que, para pesar nosso, o atual (des)governo brasileiro acha conveniente ver repetido por aqui, tal o empenho que a sua política externa entreguista demonstra em submeter-se aos interesses dos Estados Unidos; a terceira, porque, se só agora corruptos poderosos vão para a cadeia, não há possibilidade de se descartar a responsabilidade cúmplice do próprio Poder Judiciário com esses criminosos no nosso passado; a quarta, porque já não é mais possível esconder-se que a “virtude” presente no empenho de prender gente poderosa e corrupta de hoje é dúplice e seletiva. Basta compararem-se os ritmos da operação lava-jato com os da Zelotes para se formar convicção sobre essa diferença inexplicável.
A polêmica em torno da prisão de condenadas/os em segunda instância, mesmo sem coisa julgada, ainda vai longe, mas certamente não há ser com opiniões como a do atual presidente do Tribunal por onde tramitam os processos da Lava jato - é bom sublinhar-se este dado - que ela vai cessar.
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Como a ideologia pode desmentir a “imparcialidade” do/a juiz/a - Instituto Humanitas Unisinos - IHU