01 Agosto 2019
A chegada de um pacote de grandes projetos de mineração que pretendem se instalar no Rio Grande do Sul vem mobilizando não só as comunidades atingidas pelos mesmos, movimentos sociais e entidades ambientalistas, mas também a comunidade acadêmica no Estado. Além dos tradicionais temas associados aos impactos socioambientais desses projetos, outros temas, que mobilizam diferentes áreas do conhecimento vêm sendo objeto de debates. Alguns deles: como a mineração pode impactar a segurança alimentar e nutricional de uma comunidade? Em que medida a desterritorialização de uma população afeta o seu modo de vida e bem estar? Quais os limites territoriais, sociais e ambientais dos impactos de megaprojetos de mineração?
A reportagem é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 31-07-2019.
O Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) organizou um encontro na manhã desta terça-feira (30), no auditório da Faculdade de Economia, para debater esses impactos à luz de um relato sobre comunidades afetadas pela mineração em Moçambique. Com o tema “Mineração e segurança alimentar nutricional: impactos e perspectivas em Moçambique e em Eldorado do Sul”, o debate mediado pela professora Fabiana Thomé da Cruz, reuniu a professora Jaqueline Sgarbi dos Santos, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (Unilab), o pesquisador Iporã Possantti, do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH), da UFRGS, e Michele Martins, do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM).
Professora da disciplina “Agricultura e Sociedade”, no Instituto de Desenvolvimento Rural, no Ceará, Jaqueline Sgarbi dos Santos apresentou um relato sobre a viagem que fez a Moçambique, em novembro de 2018, onde visitou duas comunidades atingidas por um grande projeto de mineração de carvão capitaneado pela International Coal Ventures Limited (ICVL), um pool de empresas de mineração que foi autorizado pelo governo moçambicano a atuar no país. O estudo de impacto social e ambiental, aprovado pelo governo de Moçambique em 2009, relatou, identificou a necessidade de criação de uma área de exclusão mineira para a operação da mina, que implicou o reassentamento de 700 famílias residentes na aldeia de Capanga.
Desse total, cerca de 450 famílias foram reassentadas em uma área rural e outras 250 numa área urbana. Jaqueline dos Santos visitou a comunidade de Mwalatzi, construída para abrigar as famílias reassentadas. Antes de chegar à comunidade, contou a professora, um funcionário da empresa “preparava” os visitantes para ouvir os lamentos e reclamações dos moradores, procurando desqualificar a fala deles. “Quando chegamos, não precisamos fazer nenhuma pergunta. Os problemas envolvendo acesso à alimentação e à água apareceram naturalmente nas conversas dos moradores. Antes da chegada da mina, eles moravam à beira do rio Zambeze, o que tinha grande influência no seu modo de vida. Foram levados para uma área muito distante e isolada. A água, de má qualidade, é extraída por bombas d’água sul-africanas que vivem estragando. Provamos a água e ela, de fato, tinha um gosto muito estranho”.
Como essas pessoas aceitaram essa mudança? Na verdade, assinalou a professora da Unilab, elas não tiveram muita escolha. “O discurso da empresa é muito sedutor, com muitas promessas, mas as contradições entre o discurso e a prática logo aparecem”. Jaqueline apontou algumas delas: falta de participação dos envolvidos nas decisões, problemas de acesso a recursos naturais, problemas de acesso a alimentos com perda de culturas tradicionais de plantas e chás que faziam parte da medicina tradicional da comunidade, má qualidade da água e perda de capacidade de gerir seus próprios meios de acesso à vida. A empresa também construiu um cemitério na área pra onde os moradores foram levados, o que gerou um conflito, pois eles tinham outra forma de enterrar os mortos.
Jaqueline dos Santos também visitou a comunidade que não foi reassentada porque, na avaliação da empresa, não sofreria os impactos da mineração. “Quando chegamos lá, já percebemos na pele que havia uma fina fuligem no ar. Esses moradores vivem em uma situação melhor do que aqueles que foram reassentados, pois conseguiram manter seus territórios e seus animais”. Ao comparar as duas realidades conheceu, a professora resumiu: a desterritorialização, além de tristeza, causa perda de acesso a recursos naturais, a saberes tradicionais e a modos de vida.
Integrante do Grupo de Pesquisa em Planejamento e Gestão de Recursos Hídricos, do IPH/UFRGS, Iporã Brito Possantti, chamou a atenção para a importância de levar em conta a complexidade e a dinâmica do ciclo da água ao se tratar de temas como os impactos ambientais de um projeto de mineração. “O ciclo da água não para nunca. Os rios são ecossistemas complexos dentro desse ciclo. Uma contaminação dos sedimentos de um rio por metais pesados vai chegar aos peixes e a quem se alimenta deles. Tudo está conectado nestas cadeias hídricas. Hoje, cerca de 4 milhões de habitantes da Região Metropolitana dependem da água de rios. A gente não pensa na complexidade do caminho que essa água faz até chegar na torneira”, assinalou.
O pesquisador destacou ainda que a Região Metropolitana e seus rios já são impactados por grandes equipamentos industriais, como a Refinaria Alberto Pasqualini, em Canoas, o Pólo Petroquímico, em Triunfo, e o oleoduto que passa perto do rio Gravataí. Os rios dessa região estão entre os mais poluídos do país e dois deles, o Sinos e o Gravataí, estão saturados e no limite. “A posição da Mina Guaíba é péssima em termos de recursos hídricos pois está localizada a montante de uma área com cerca de 2 milhões de habitantes. Se houver uma contaminação dos aquíferos subterrâneos, Eldorado ficaria sem poços d’água”. O rio Jacuí, acrescentou Iporã Possantti, é o último rio disponível na região sem grandes elementos expositores de perigo tecnológico.
Para Michele Martins, o relato que Jaqueline dos Santos fez sobre Moçambique apresenta um cenário muito semelhante aquele vivido pelas comunidades afetadas pela mineração no Brasil. “A água é a primeira coisa que começa a faltar para essas comunidades”, destacou. A militante do MAM chamou a atenção para o processo de comoditização dos recursos minerais que vem se acentuando desde o início deste século. No Brasil, de 2001 a 2011, houve um crescimento de aproximadamente 550% da produção mineral. A maior parte dessa produção é destinada à exportação. “Cerca de 52% de todo o minério de ferro extraído no Brasil neste período foi para a China. Quase todo o nosso minério acaba sendo exportado, o que que coloca em questão também o tema da soberania em relação aos nossos recursos naturais”, afirmou.
O Rio Grande do Sul virou uma das novas fronteiras deste projeto de expansão da mineração no Brasil, que hoje já abrange mais de 2.500 municípios, disse ainda Michele. Esse capital mineral tem uma mesma lógica de atuação, salientou, e são as próprias empresas que definem quem são os atingidos, escolhendo alguns grupos , sem considerar as relações que essas comunidades possuem com seu entorno. Neste contexto, no caso do projeto da Mina Guaíba, acrescentou, não estamos falando de 230 famílias atingidas, mas sim de cerca de 4 milhões de pessoas em toda a Região Metropolitana. “Em sua propaganda, a empresa diz que vai gerar 5 mil empregos, sem apresentar maiores detalhes, mas o próprio EIA-Rima que ela apresentou fala de 4.500 empregos ao longo de 23 anos. A realidade que vemos no Brasil é que nos municípios minerados o que se acirra é a desigualdade social”, concluiu.
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Impactos da mineração em debate na UFRGS: “a água é a primeira coisa que começa a faltar” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU