06 Junho 2019
O rascunho do documento do Papa Francisco para reorganizar a enorme burocracia vaticana reorienta significativamente a missão do comando central da Igreja Católica, enfatizando que as autoridades não devem mais se considerar como “superiores”, mas sim como servidores do papa e dos bispos do mundo.
A reportagem é de Joshua J. McElwee, publicada em National Catholic Reporter, 05-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O texto da proposta de nova constituição apostólica, obtido pelo NCR, também reordena notavelmente a precedência dos escritórios do Vaticano, rebaixando a outrora toda-poderosa Congregação para a Doutrina da Fé em favor de um novo escritório de evangelização encarregado de atrair seguidores, considerando as “questões fundamentais” da nossa época.
A Praedicate Evangelium (“Pregai o Evangelho”) também enfatiza que, no futuro, a equipe vaticana, conhecida como Cúria Romana, deverá incluir homens e mulheres leigos “em funções de governo de importância e responsabilidade”, inclusive como chefes de vários escritórios.
O atual prólogo sem assinatura do documento expressa, como objetivo mais amplo da renovada estrutura vaticana, ajudar a instituição global a passar por uma “conversão missionária” que envolve a “escuta recíproca” entre leigos, padres, religiosos, bispos e o papa.
“A renovação (...) deve refletir essa reciprocidade fundamental e deve possibilitar que a Igreja se aproxime o máximo possível da experiência de comunhão missionária vivida pelos apóstolos”, afirma o texto.
A nova estrutura curial, continua, “tem a tarefa de ajudar o papa no exercício de sua função primacial, em relação com o Colégio dos Bispos e com os bispos individuais, e também com as Conferências Episcopais e suas associações afiliadas”.
“A Cúria não se coloca entre o papa e o Colégio dos Bispos, mas está a serviço de ambos”, afirma o rascunho.
A nova constituição apostólica, que foi enviada pelo Vaticano aos bispos de todo o mundo para revisão e sugestões, substituiria a constituição Pastor Bonus, do Papa João Paulo II, de 1988, que reorganizou a Cúria Romana pela primeira vez desde 1967.
O esboço do novo texto é fruto das discussões entre o Conselho dos Cardeais de Francisco, que se reuniu em Roma 28 vezes pessoalmente nos últimos seis anos para preparar o trabalho.
Um dos eclesiologistas mais conhecidos da Igreja dos EUA chamou o texto proposto de “reformulação teológica” dos deveres do Vaticano.
“O documento contribui muito para uma concepção fundamentalmente diferente do papel e da função da Cúria dentro da vida da Igreja”, escreveu Richard Gaillardetz, professor da cátedra Joseph de Teologia Sistemática Católica, do Boston College, em um comentário publicado no dia 5 de junho do NCR, revisando o rascunho.
Algumas das mudanças que seriam feitas pela Praedicate Evangelium são imediatamente aparentes.
Fica para trás a distinção entre congregações, geralmente vistas como detentoras de um tipo de poder executivo, e os pontifícios conselhos, geralmente vistos como consultivos. Todos os principais escritórios, com exceção da Secretaria de Estado, são agora simplesmente referidos como dicastérios. A Secretaria para a Economia mantém o seu título, mas está listada separadamente dos outros principais escritórios.
A Secretaria de Estado, atualmente liderada pelo cardeal italiano Pietro Parolin, continua sendo o escritório mais importante do Vaticano. Mas agora é seguido diretamente por um novo Dicastério para a Evangelização, que essencialmente retomaria a reorientação do trabalho da antiga Congregação para a Evangelização dos Povos e do antigo Pontifício Conselho para a Nova Evangelização.
O recém-renomeado Dicastério para a Doutrina da Fé, que foi fundado em 1542 pelo papa Paulo III como a Suprema Congregação da Inquisição Romana e Universal, cai agora para o terceiro lugar em ordem de precedência.
Entre outras mudanças, a Congregação para as Igrejas Orientais se torna o Dicastério para as Igrejas Orientais; a Congregação para a Educação Católica se torna o Dicastério para a Educação e a Cultura; e o escritório do esmoleiro papal, responsável pelas doações de caridade do papa, evolui para o Dicastério para a Caridade.
Entre o seu breve prólogo e as 243 novas normas gerais que descrevem a forma revisada da burocracia vaticana, o esboço da Praedicate Evangelium contém uma breve seção que compartilha 12 princípios orientadores da reforma da Cúria.
O primeiro princípio deixa claro que as autoridades vaticanas devem se considerar como “a serviço” dos bispos e das Conferências Episcopais.
O segundo repete o frequente apelo de Francisco a uma “saudável descentralização” da autoridade na Igreja, definindo esse conceito como o fato de “deixar nas mãos dos Pastores diocesanos a faculdade de resolver, no exercício do magisterium ordinarium, as questões que eles conhecem bem e que não tem a ver com a unidade da doutrina e da comunhão da Igreja universal”.
O principal serviço da Cúria aos bispos locais, afirma o terceiro princípio, deve ser aconselhar e oferecer encorajamento.
“Esse serviço da Cúria à missão dos bispos e à communio não se baseia em uma atitude de supervisão ou de controle, nem mesmo em decidir como uma autoridade superior”, afirma-se. “A Cúria Romana, portanto, visa a servir a comunhão recíproca, a uma comunhão que é afetiva e eficaz, do sucessor de Pedro e dos bispos.”
O quarto princípio sugere que um dos focos da Cúria deve ser a coleta de “melhores práticas” da Igreja em todo o mundo, de modo que ela possa “atuar como uma espécie de plataforma e de fórum de comunicação para as Igrejas particulares”.
O quinto princípio deixa claro que os dicastérios podem ser dirigidos por padres ou leigos, embora o oitavo princípio diga que, ao escolher seus membros, “é necessário envolver mais os leigos, até mesmo em papéis importantes de liderança dentro da própria Igreja, especialmente em áreas ligadas às realidades temporais”.
O 12º princípio diz que os membros da Cúria “devem refletir a universalidade e a intercontinentalidade da Igreja”.
Alguns dos princípios da reforma parecem ser implementados mais claramente na concepção do novo Dicastério para a Evangelização e nas mudanças na antiga Congregação para a Doutrina da Fé e na antiga Congregação para os Bispos.
Ao estabelecer o novo escritório de evangelização, o texto diz que o propósito do dicastério é trabalhar para que Cristo “seja conhecido e testemunhado em palavras e obras”.
Criam-se duas seções, ou departamentos, dentro do escritório: uma para enfocar as “questões fundamentais” da evangelização no mundo de hoje, e outra para trabalhar na “instituição, acompanhamento e apoio” das novas Igrejas locais.
A primeira seção, afirma-se, “tem a tarefa de estudar (...) as questões fundamentais da evangelização e o desenvolvimento de uma nova evangelização, identificando formas, instrumentos e linguagem adequados”.
“A Seção encoraja o estudo da história da Missão ao longo dos séculos e, em particular, da sua relação com o complexo fenômeno do colonialismo e de suas consequências para a evangelização”, diz-se.
O texto também especifica que a primeira seção deve se preocupar com o “reconhecimento e a afirmação da liberdade religiosa na sociedade pluralista do mundo e com o enfrentamento das tendências totalitárias”.
Quanto ao dicastério doutrinal, o esboço explica que ele servirá a dois propósitos principais: apoiar o papa e os bispos na proclamação do Evangelho e “promover e proteger a integridade da doutrina católica sobre a fé e a moral”.
“O Dicastério favorece e apoia o estudo e a reflexão sobre a compreensão da fé e o desenvolvimento da teologia nas diferentes culturas, à luz dos desafios e dos sinais dos tempos, de modo a oferecer uma resposta à luz da fé, às questões e argumentos decorrentes do progresso das ciências e da evolução das civilizações”, afirma-se.
“Isso une a fidelidade à doutrina tradicional com a coragem de buscar novas respostas para novas questões”, continua.
O texto determina que o dicastério trabalhe em “contato próximo” com os bispos e as Conferências Episcopais, que, segundo o documento, têm “alguma autoridade doutrinal genuína”.
Ele também especifica que, quando o dicastério examine os escritos de alguém em busca de possíveis problemas doutrinais, “procure dialogar com seus autores e apresentar os remédios apropriados a serem seguidos”.
Em uma seção que delineia como o dicastério continuará lidando com casos de abuso sexual, o esboço manda que o escritório doutrinal trabalhe “em colaboração” com a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores.
O renomeado Dicastério para os Bispos continua sendo responsável por aconselhar o papa sobre possíveis candidatos a prelados em todo o mundo. Mas o rascunho do texto também prevê o envolvimento de leigos nesse processo, ao contrário da Pastor Bonus.
Parte do processo para decidir quem pode se tornar bispo, afirma-se, é “levar em consideração as propostas das Igrejas particulares e das Conferências Episcopais, e depois consultar os membros da Presidência da respectiva Conferência Episcopal”.
“Nesse processo, também se envolve de maneira apropriada o Povo de Deus nas dioceses envolvidas”, afirma o texto.
Ao contrário da Pastor Bonus, o esboço também pede que o dicastério estabeleça critérios para a seleção de candidatos a bispo e diz que esses critérios devem ser “periodicamente revisados”.
Algumas outras mudanças notáveis segundo o rascunho do documento:
- O processo de seleção na escolha do Camerlengo da Santa Igreja Romana, o cardeal responsável pela administração do Vaticano no período interino entre a morte ou a renúncia do papa e o conclave para eleger seu sucessor, será atualizado.
Embora o Camerlengo seja atualmente escolhido pelo papa reinante, o esboço da constituição determina que, no início de uma sede vacante, o cargo será automaticamente confiado ao cardeal que lidera o Conselho para a Economia, o grupo que supervisiona a Secretaria para a Economia do Vaticano.
O atual Camerlengo é o cardeal irlandês-americano Kevin Farrell, que foi nomeado para o papel por Francisco em fevereiro de 2019. O atual chefe do Conselho para a Economia é o cardeal alemão Reinhard Marx.
A Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores é confirmada como “uma instituição independente ligada à Santa Sé, com uma função consultiva a serviço do Santo Padre”
O esboço também deixa claro que o presidente da comissão, atualmente o cardeal de Boston, Sean O’Malley, “exerce a autoridade da Santa Sé” no desenvolvimento e na implementação de diretrizes para a salvaguarda dos menores e dos adultos vulneráveis na Igreja.
- A Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores é confirmada como “uma instituição independente ligada à Santa Sé, com uma função consultiva a serviço do Santo Padre”.
- As normas revisadas deixam claro que a Secretaria de Estado deve “dirigir” o trabalho do Dicastério para a Comunicação, que inclui a Sala de Imprensa da Santa Sé.
- Embora o esboço continue se referindo ao latim como a língua oficial do Vaticano, ele esclarece que as pessoas podem apelar para a Cúria Romana usando “as línguas que são mais difundidas dentro da Igreja”.
- O texto dá continuidade à tradição de mandatos de cinco anos para os chefes e bispos membros dos escritórios vaticanos, mas acrescenta que as autoridades devem retornar ao trabalho pastoral “normalmente” depois de cumprir dois mandatos.
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Proposta de nova constituição apostólica reordena dicastérios do Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU