05 Abril 2019
"Existe uma convicção de que para fortalecer a democracia local é preciso erradicar o analfabetismo urbanístico entre os moradores das cidades, mas também na mídia e nas instituições: executivo, legislativo e judiciário. As cidades são fundamentais como instância participativa na democracia", escreve Erminia Maricato, arquiteta e urbanista, professora titular aposentada da FAU-USP e coordenadora nacional da rede BrCidades, em artigo publicado por Carta Capital, 04-04-2019.
Segundo ela, "A escandalosa apartação social e urbana é necessária para manter uma extravagante desigualdade".
O Brasil passa por uma crise política, econômica, social e ambiental. Mas talvez seja nas cidades que essa crise alcance o maior nível de dramaticidade dado o número de brasileiros que são profundamente afetados por ela. Dos 207 milhões de habitantes, mais de 84%, ou 175 milhões, mora nas cidades. Quase 1/3 desse total mora nas grandes metrópoles. O desemprego que chegou a 12,3% da população economicamente ativa brasileira (24 milhões de pessoas) é maior em 13 capitais. A taxa nacional de homicídios alcançou 27,1 (pessoas mortas para cada 100 mil habitantes) mas nas capitais é ainda maior (36,4) e nos bairros pobres maior ainda.
Segundo o Atlas da Violência em 2016, morreram 62.517 pessoas assassinadas. Na década foram 553 mil. De cada 100 mortos com arma de fogo, 71 são negros jovens. As vítimas têm cor nessa guerra de média intensidade. Mas as mulheres também merecem destaque. Segundo a OMS, o Brasil é o quinto país em feminicídio. A maior parte das mortas são mulheres negras. Esses dados sociais e econômicos têm uma expressão territorial intrínseca.
Nas periferias, e também em algumas áreas centrais antigas das grandes cidades, há uma superposição de indicadores sociais e econômicos que escancaram um cenário dantesco e explosivo: baixa renda, baixa escolaridade, maior taxa de homicídios, maior taxa de feminicídio, maior número de favelas, maior número de famílias chefiadas por mulheres ou idosos, maior informalidade no trabalho, maior taxa de desemprego… Alguns mapas mostram que a expectativa de vida do bairro paulistano de Guaianazes é de menos de 60 anos, e no luxuoso Jardim Paulista é de praticamente 80 anos. Mais de 20 anos separam o tempo de vida de moradores de diferentes áreas da mesma cidade revelando que o ambiente construído não é um mero reflexo da condição política e econômica, mas uma instância ativa.
Comparando os mapas sobre o preço do metro quadrado dos imóveis e a localização da moradia de pretos e pardos, salta aos olhos e existência da senzala urbana e da casa grande urbana onde vivem os brancos endinheirados nas suas mansões ou condomínios murados e protegidos. Por que as cidades são tão ignoradas nas análises da “grande política”? Não se questiona a determinação em última instância, como diria Althusser, da economia política sobre os destinos de determinada sociedade na modernidade, mas por que tanto desconhecimento e invisibilidade sobre as cidades em nosso país? Como pode ser negada, ou ignorada, a evidência físico-ambiental constituída pela concentração de milhões e milhões de pessoas vivendo precariamente? E lembramos que essa precariedade inclui o “exílio na periferia”, no dizer de Milton Santos, dado o alto custo e a precariedade (até a inexistência nos fins de semana) do transporte coletivo.
A escandalosa apartação social e urbana é necessária para manter essa extravagante desigualdade. Uma polícia mal paga, que mata e morre, é necessária para manter a pressão insuportável para que tudo isso continue dentro da “normalidade”. As milícias que administram verdadeiras cidades no Rio de Janeiro, o crime organizado, preconizam a “paz, igualdade e liberdade” em São Paulo (o que inclui até mesmo ajuda as comunidades e certa “previdência” para os parentes dos “irmãos”), também são necessários para sustentar esse equilíbrio absolutamente instável.
Nos anos 1980, a reconstrução da democracia no país passou, entre outras instâncias, pelas disputas dos governos municipais. Experiências muito bem sucedidas ficaram conhecidas internacionalmente como foi o caso do Orçamento Participativo (replicado em 2.800 cidades em todo mundo) os corredores de ônibus (conhecidos – ironicamente – como BRT ou Bus Rapid Transit), os CIEPs ou CEUs (destinados a manter as crianças nas escolas em período integral com aulas de aulas e esportes nos currículos), os projetos habitacionais participativos marcados por boa arquitetura e preço baixo, a urbanização dos bairros periféricos com novas soluções paisagísticas de saneamento e drenagem, entre outras marcas importantes.
Acompanhando essas práticas vieram outras conquistas menos práticas: a partir da Constituição de 1988 foi promulgado no país um arcabouço legal fantástico ligado às cidades: Estatuto da Cidade, Lei de Consórcios Públicos, Lei do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, Lei do Saneamento Básico, Lei dos Resíduos Sólidos, Lei da Mobilidade Urbana e Estatuto da Metrópole. Leis avançadas para uma realidade atrasada. Leis desconhecidas pelo próprio judiciário. Apesar das conquistas legais e institucionais , o que inclui até mesmo um Ministério das Cidades, com o Conselho Nacional das Cidades e a Conferência Nacional das Cidades, estas passaram por uma regressão que se aprofunda, evidentemente, após o golpe de 2016.
A necessidade de repensar as cidades está inspirando a formação, quase espontânea, de uma rede em torno da proposta: Um Projeto para as Cidades do Brasil – BrCidades. A partir do chamamento da Frente Brasil Popular para repensar o país teve início a reunião de pesquisadores, estudiosos, acadêmicos, profissionais e lideranças sociais com a finalidade de debater as cidades e formular um projeto não só com vistas a 2020, mas também, e principalmente, com vistas no médio e longo prazos.
Existe uma convicção de que para fortalecer a democracia local é preciso erradicar o analfabetismo urbanístico entre os moradores das cidades, mas também na mídia e nas instituições: executivo, legislativo e judiciário. As cidades são fundamentais como instância participativa na democracia. O conhecimento científico e técnico, urbanístico e ambiental, também são fundamentais para combater a manipulação dos investimentos públicos e da legislação urbanística em benefício de poucos (corrupção urbanística).
Essa cidade dividida, explosiva, insegura, insustentável não interessa aos 99%, que moram nela. A cidade cooperativa, solidária, diversa, humana, pacífica e criativa sim, interessa. A construção é longa, mas não temos escolha.
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As cidades pedem socorro e repensar o Brasil é preciso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU