19 Fevereiro 2019
Alvaro García Linera“Na realidade, o problema que temos é que existe uma delinquência que capturou o Estado e que está embutido no exercício do poder e que define que sua forma de governo é a morte dos outros em defesa de seus próprios interesses”, afirma Carlos Medina Gallego, representante acadêmico nas negociações com as FARC.
Gallego é coordenador do curso de Ciência Política, na Universidade Nacional da Colômbia, e um excelente observador da realidade de seu país e do atual conflito na Venezuela.
A entrevista é de Mario Toer, publicada por Página/12, 18-02-2019. A tradução é do Cepat.
O ataque à academia de polícia que foi atribuído ao ELN, a estagnação que existia nas negociações estabelecidas entre aquela organização e o governo, que agora se transformou em ruptura, as centenas de assassinatos de líderes sociais e outras manifestações de descumprimento do que havia sido acordado com as FARC, fazem com que se possa esperar uma mudança na cena política colombiana, com suas repercussões na região e particularmente em relação à situação tensa em torno da Venezuela... Que repercussões tudo isso pode ter no cenário político?
Desde a chegada do novo governo, que chega em confronto direto com o acordo assinado com as FARC, há ajustes independentemente da outra parte, o que gera um ato de descumprimento, porque um acordo assinado pelas partes, se precisa ser modificado, deve ser conduzido pelas duas partes e não unilateralmente. Isso faz com que se comece a perder a confiança nas condições que tornou o processo de diálogo irreversível, porque entre os pontos que eram essenciais para gerar suficiente confiança de que não voltariam à guerra, estava a entrega das armas. Então as FARC entregam as armas e começam a ocorrer fenômenos que são próprios desses contextos e que não poderiam deixar de acontecer na Colômbia, que é o processo das dissidências. Mas, começam a ocorrer dissidências tão adversas, em termos da segurança que o processo de implementação deveria oferecer, que atingem a segurança física de ex-combatentes: 85 ex-combatentes das FARC foram mortos nos 18 meses da implementação do acordo. Para o qual se somam centenas de líderes sociais.
O sistema integral planejado não avança?
O sistema integral de verdade, justiça, reparação e reconciliação, que tem uma comissão de memória, tem tido grandes dificuldades para poder avançar, como as dificuldades que tiveram na comissão encarregada da busca de pessoas desaparecidas. Ou seja, há uma série de fatores determinantes nesse processo que preocupam e servem como um espelho retrovisor do processo que está sendo desenvolvido com o ELN. Então, o ELN diz: olhe como eles estão se comportando diante de um acordo de paz que agora se tornou mais frágil com os descumprimentos do novo governo.
Houve uma campanha política, para além do atual governo, onde uma candidatura, que era bastante explícita com um discurso alternativo, marcou uma presença nacional como nunca houve na história da Colômbia. Ou seja, também como consequência dessa negociação, houve um novo tipo de cenário político que, qualitativamente, creio eu, é a expansão desse espaço, a consolidação desse território onde a acumulação de forças poderá colocar em questão tudo aquilo que era esperado. Há um espaço no qual as possibilidades de acumular forças eram talvez até maiores do que se poderia supor a priori. Entende-se que o debate é: o que é esse território e como a ação do ELN entra nesse cenário e quem facilita as coisas?
Há um processo sem precedentes em termos de realizações da esquerda democrática e isso significou atingir cerca de 8,5 milhões de votos que nunca na história tinham sido alcançados em eleições, contra 10,5 milhões de votos da candidatura vencedora, isso está claro. Mas tem uma característica especial que é o fato de que nunca na história do país todas as forças políticas da direita, da centro-direita ou direita tradicional e da extrema direita terem se unido sob um único candidato para derrotar este processo específico de turbulência política e eleitoral dos cidadãos, a irrupção de um modelo de cidadania que votou por uma opção que era a da Colômbia Humana, tudo isso está lá.
A Colômbia Humana é o resultado das circunstâncias emocionais e políticas de uma nação e não de uma força articulada e dinâmica, com continuidade ao longo do tempo, mas é o resultado de circunstâncias políticas. Isto no marco de uma situação política complicada, com um presidente de adolescência tardia, porque é um presidente que não consegue compreender a dimensão do cargo e não porque não deseje, mas porque Iván Duque não tem a capacidade, nem a experiência acumulada de dirigente e estadista, o que é necessário para administrar um país.
É por isso que ele tem Alvaro Uribe.
Sim, ele tem o Uribe. Isso é como governar no corpo de outra pessoa. Com uma equipe de governo que sai de sua sala de aula, de seus amigos, igualmente inexperientes, que acreditam que podem aprovar a jurisdição e o estado de direito por cima, que podem acomodar as leis ao seu bel-prazer e que me parece ser extremamente grave porque toda ancoragem que permite à sociedade resolver seus conflitos se perde: "se eu tenho essa Constituição, mas não funciona para mim, mude-a"; "Se eu tiver esse acordo, mas não funcionar para mim, eu vou mudar"; "Se eu tenho um pacto internacional, mas não funciona para mim, então eu não o mantenho" ... Esses elementos nos trazem uma imagem de um Estado marginalizado, que não é capaz de assumir suas obrigações em termos da agenda internacional. Assim, o conflito é principalmente nas ruas, porque a democracia vai para as ruas, para o protesto social, para a marcha. Começa a pressionar o Estado através da mobilização social: camponeses, trabalhadores, professores, indígenas, afros, começam a pressionar e terão resultados. A democracia na rua está dando resultados porque as causas que são abraçadas são causas justas e os cidadãos aderem a essas causas de maneira veemente.
Na realidade, o problema que temos é que existe uma delinquência que capturou o Estado e que está embutido no exercício do poder e que define que sua forma de governo é a morte dos outros em defesa de seus próprios interesses. Quando você encontra nos cargos mais elevados do Estado delinquentes articulados com a prática da corrupção, como no caso da Odebrecht; quando você tem os empresários por trás dos aparelhos de justiça, colocando-os ao seu serviço, quando você tem os proprietários de terras por trás das reformas agrárias, evitando a distribuição das terras, ou seja, quando o crime organizado que se move através de um sistema mafioso de ilegalidade e legalidade chega ao poder do Estado, a situação não é fácil de resolver, apesar de todas as grandes coisas que você pode fazer.
Este governo veio para isso. Não é viável esperar outra coisa, conhecendo acima de tudo um sujeito tão articulado quanto o líder da força política, Uribe. Porque é possível esperar que Jair Bolsonaro faça bobagens por suas próprias limitações, mas Uribe é preparado, ele é uma pessoa capaz de articular esse projeto. O projeto é retroceder na capacidade de expandir um processo de paz democrático. O que temos menos claro, talvez, seja: como agir para construir algo que, sabendo frente a quem estamos, amplie o espaço da paz democrática como um desejo popular? Essa tarefa, eu sei que é difícil, porque eles estão atuando para que isso não ocorra, os meios de comunicação, a justiça, as provocações, mas ainda existem espaços para que criemos.
Há uma coisa que ao menos vem sendo apresentada no país, há uma emancipação de territórios e comunidades em termos de política de Estado. Ou seja, as pessoas não acreditam no Estado e quando você para de acreditar no Estado você tem que encontrar uma maneira de resolver os problemas. Novas ordens de institucionalidade, novos planos de desenvolvimento, novos projetos e iniciativas econômicas que tentam resolver o que o Estado não resolve. E quando você é capaz de resolver o que o Estado não resolve, você adquire independência e entra para defender seu território, seus projetos, suas populações. Aqui, o que está acontecendo é que a referência do Estado paternalista e sua autoridade foram perdidas, e uma nova legitimidade é construída a partir das comunidades nos territórios. Então a luta se torna territorial para a sobrevivência, desenvolvimento e bem-estar, diferentes tipos de planos são construídos em diferentes territórios e as pessoas os defendem.
Nesse contexto, vamos examinar o problema do incidente causado pelo ELN. Eu estudei o ELN por 40 anos, conheço o ELN, eu o vivi e sofri. Eu conheço seu comportamento e conheço suas estratégias, suas práticas e seus imaginários. E eu sei como funcionam as estruturas do ELN. Esta é uma ação realizada por uma de suas estruturas e essa estrutura não vai dizer às outras estruturas ou a ninguém: "vamos fazer isso". Eles operam de acordo com seu plano estratégico e tático de guerra. Em seguida, definem um objetivo militar, neste caso a Escola de Cadetes Francisco de Paula Santander, e operam nesse objetivo. Eles operam sob condições particulares que causam muita dor nessa população, que é jovem, pobre, procura uma carreira no interior da polícia, etc., com outros jovens de outros países que vem se formar nessa escola e em um momento que, me parece, contavam com uma informação interna.
Era o momento de encerramento de cursos e de graduações onde a população se aglomera, o que permitia fazer isso. Com um sistema de segurança muito complicado, porque a informação que foi mostrada, de forma cada vez mais eloquente, mostra que quem entrou com o carro foi capaz de andar pela escola sem nenhum tipo de dificuldade. O que eu não entendo é a imolação. Por que se imolou? Porque eu poderia perfeitamente ter estacionado o carro, sair do carro e sair como um oficial ou como visitante e ninguém teria parado. O ato assim visto, contra esse tipo de população, longe do direito humanitário internacional, é um ato terrorista. Essas pessoas não estão em atitude de combate, elas estão se preparando, certamente, mas elas não estão em atitude de combate. É um ato terrorista.
O ELN é uma organização que tem uma base moral e ética profundamente cristã, se eles fazem algo, eles reconhecem esse algo que fazem, levando em conta as consequências de seus atos, nunca negaram uma ação por mais trágica ou difícil que possa parecer. Então, finalmente chega-se a um processo de paz, um processo de diálogo, de conversas que não haviam avançado, que estavam em estado de coma, que não havia sido retomada pelo governo por cinco meses e que tinha as possibilidades de abandonar ou pretensões de abandonar. Nunca aprenderam, como todos nós envolvidos no processo e nas conversas com as FARC aprendemos, que numa mesa de negociação, além de ser uma mesa na qual são esclarecidos os pontos de vista, são construídas confianças, é fundamentalmente uma escola de aprendizagem e um centro de tomada de decisão. É na mesa de conversas que se aprende a ver o país, a ver as circunstâncias, a ver a lógica do poder, as tensões ... e é aí que se aprende a tomar decisões.
Então, foi também para o ELN?
O ELN aprendeu coisas. Não é que uma força viva opera em um corpo inerte. Atua em outra força viva que é a força pública. É uma força viva que sabe se mover, se comportar, aprendeu e age. Então, se você os bombardear, deve esperar que reajam, e eles reagem aos atos de violência e perseguição sistemática do Estado. Daí o atentado da escola de cadetes, reagiram aí. Fizeram isso da maneira certa, porque colocaram as bombas em um lugar que não é um campo de batalha, não é um teatro de operações, mas uma escola de formação na qual está ocorrendo a formação de futuros oficiais da polícia.
Isso tem impactos específicos, o que significa que estamos de volta à guerra, que a guerra tem atores, o Estado é um dos atores, a força pública e a força militar são outros atores, mas também conta com dissidência das FARC, que estarão operando, redutos do EPL que estão na região de Catatumbo e estão operando por terem sidos chamados pelo ELN para parar a guerra entre eles. Essa guerra entre eles é por sobreposição de guerras. Tem o ELN e tem um avanço de paramilitarismo, com uma dificuldade. Hoje, em muitas partes do país, a população está sentindo a necessidade das FARC retornar, porque as FARC resolviam todos os problemas que precisavam ser resolvidos em termos de lei ou em termos de conflito. Não havia devastação da floresta ou da mata porque as FARC impediam. Estamos em uma situação de guerra que favorece esse governo.
Por quê?
É um governo que não está apostando na paz, que sente que tem um peso do acordo de paz que o governo anterior deixou para a sociedade colombiana. Mas, a sociedade colombiana tem que entender que nunca antes na história do país, em 60 anos de guerra, havia respirado tanta paz, apesar de todas as dificuldades, a partir do processo de paz com as FARC.
Tudo é muito ilustrativo. De qualquer forma, presumivelmente, naquilo que sabemos e constituímos como a esquerda na Colômbia, haverá diferenças em torno de como se colocar diante desse novo evento.
Nosso problema e o da nossa América Latina é que ainda não conseguimos entender que uma alternativa não se baseia em lideranças personalistas, mas em imaginários coletivos que reivindicam direitos fundamentais. Nosso problema é que somos populistas na construção política de nossas organizações, seja liderança de direita ou liderança de esquerda. É que eu quero pensar no Centro Democrático, sem Uribe, ele não existe; Colômbia Humana, sem Petro, tampouco ... Sabe que eu descobri, depois de muitos anos, o que era a revolução [!]. A revolução era uma coisa muito elementar, era que o corpo de uma pessoa e de sua família poderiam satisfazer os direitos elementares que suas próprias necessidades biológicas, sociais, culturais e políticas demandavam.
Alvaro García Linera vem dizendo isso ...
Eu quero que me garantam a possibilidade de viver, o direito à vida, mas não de qualquer forma, um direito à vida digna. O direito a uma vida digna significa que eu possa me alimentar, a cinco refeições diárias, água potável, moradia digna, que se enche de amor e solidariedade, companheirismo, carinho, não de coisas, o nosso problema é que a sociedade de consumo tornou nossas casas cheias de coisas e não pessoas, afetos e relacionamentos. Que me garantam a saúde, mas saúde não é que eu tenha que ir a um hospital, a saúde é que eu não precise ir a um hospital. Eu quero que me garantam educação, que eu possa trabalhar para reproduzir minhas condições de vida de meu trabalho. Eu quero ser capaz de me recriar, de poder andar calmamente pelos lugares que vivo sem medo de qualquer tipo de agressão. Eu quero segurança. Nós entregamos a segurança para a direita. A esquerda precisa pensar que a segurança faz parte das exigências das condições básicas do ser humano.
As ruas deveriam ser nossas.
Sim, as ruas têm que ser nossas novamente. Olhe para tudo o que aconteceu com os centros de moradia, ficamos trancados em prisões atendidas pela segurança privada que nos permitem entrar ou não. Nós fomos encarcerados, a cidade se tornou um panóptico com corretores de pobreza.
Eu digo, o que deveria pertencer ao Estado? Os recursos estratégicos da nação: água, hortos, escolas, hospitais, transporte, etc. Mas, a fábrica de sutiãs, calçados, calças, deixe que esses empresários produzam, para que inventem e para que haja trabalho. Entende?
Isso é o que conta ...
Então, é um modelo de propriedades mistas: da economia solidária, da economia privada e da economia estatal. Mas, que se sabe são os papéis que são desempenhados para construir o bem-estar geral no âmbito das diferenças existentes.
Uma última pergunta: no contexto da tensão com a Venezuela, como você vê a situação?
Primeiro, eu vejo, em relação às tensões com a Venezuela, que existe uma aliança estratégica regional e mundial contra a Venezuela. Eu particularmente penso que a Colômbia é uma ponta de lança no confronto contra a Venezuela. Os meios de comunicação e o governo têm sido ferozes em relação à Venezuela. E eu me guio pelo princípio da livre autodeterminação dos povos e pelo pleno exercício de sua soberania. O problema dos venezuelanos é o problema dos venezuelanos e os venezuelanos têm que resolver entre si.
Agora, haverá um conflito armado entre a Colômbia e a Venezuela? Sim, a tensão aumenta com a quebra de diálogo com o ELN, porque o ELN está do outro lado da faixa de fronteira, mas não agora, desde sempre construíram economia, territorialidade, estiveram de 30-40 anos nesse território. Eles fazem parte dessa cartografia de conflito político fronteiriço. Mas, se vocês me perguntam se há um confronto militar entre Colômbia e Venezuela em uma modalidade de guerra, isso duraria dois bombardeios, porque se você tem que bombardear os recursos da Venezuela que são refinarias e campos de petróleo e eles bombardeariam um só que é o de Cartagena e acabariam com a economia deste país...
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Colômbia. “Há uma delinquência que capturou o Estado”. Entrevista com Carlos Medina Gallego - Instituto Humanitas Unisinos - IHU