05 Fevereiro 2019
Não há tempo a perder. E muito menos alternativas. Chegou o momento em que as religiões “devem se empenhar mais ativamente, com valor e audácia, com sinceridade, em ajudar a família humana a amadurecer a capacidade de reconciliação”. Durante o encontro com 700 líderes religiosos de todas as confissões, em uma atmosfera de dia histórico, o Papa Francisco fez um forte chamado de Abu Dhabi: “ou construímos o futuro juntos ou não haverá futuro”. O Pontífice elogia os Emirados Árabes Unidos pela sua tolerância. Lembra o que é a plena liberdade de fé. E destaca: “que os direitos fundamentais sejam sempre respeitados”.
A reportagem foi publicada por Vatican News, 04-02-2019. A tradução é de Graziela Wolfart.
O Papa Francisco e Ahmed al-Tayyb chegaram ao encontro inter-religioso depois da reunião de 30 minutos com o Conselho Muçulmano de Anciãos sobre a importância da cultura do encontro, para reforçar o compromisso pelo diálogo e pela paz, e depois da visita à Grande Mesquita. Ficaram em frente à sepultura do Fundador dos Emirados Árabes Unidos, o Founder’s Memorial, onde o Pontífice e o Grão Imame de al-Azhar foram recebidos pelo príncipe herdeiro, o xeique Mohamed bin Zayed al Nahyan.
“Al Salamó Alaikum! A paz esteja convosco”, começa Jorge Mario Bergoglio. Daqui de “vossa pátria me dirijo a todos os países da Península, a quem desejo enviar-lhes minha mais cordial saudação, com amizade e apreço”. O Papa destaca que “com gratidão ao Senhor, no oitavo centenário do encontro entre São Francisco de Assis e o sultão al-Malik al-Kāmil, aceitei a ocasião para vir aqui como um fiel sedento de paz, como um irmão que busca a paz com os irmãos. Querer a paz, promover a paz, ser instrumentos de paz: estamos aqui para isso”.
O símbolo desta viagem representa uma pomba com um ramo de oliveira. É uma imagem que “lembra a história do dilúvio universal, presente em diferentes tradições religiosas. De acordo com a narração bíblica, para preservar a humanidade da destruição, Deus pede a Noé que entre na arca com sua família”. E também nós, na atualidade e em nome de Deus, “para salvaguardar a paz, necessitamos entrar juntos como uma mesma família, em uma arca que possa navegar pelos mares tempestuosos do mundo: a arca da fraternidade”.
O ponto de partida é um só: “reconhecer que Deus está na origem da família humana. Ele, que é o Criador de tudo e de todos, quer que vivamos como irmãos e irmãs, habitando a casa comum da criação que Ele nos deu”. Aqui, “nas raízes de nossa humanidade comum, se fundamenta a fraternidade […] Nos diz que todos temos a mesma dignidade e que ninguém pode ser senhor ou escravo dos outros”.
O Pontífice esclarece que “não se pode honrar ao Criador sem preservar o caráter sagrado de toda pessoa e de cada vida humana: todos são igualmente valiosos aos olhos de Deus. Porque ele não olha a família humana com um olhar de preferência que exclui, mas com um olhar benevolente que inclui”.
Portanto, reconhecer os mesmos direitos em cada ser humano “é glorificar o nome de Deus na terra. Portanto, em nome do Deus Criador, é preciso condenar sem hesitação toda forma de violência, porque usar o nome de Deus para justificar o ódio e a violência contra o irmão é uma grave profanação”. Não existe violência que possa ser justificada “pela religião”, sentencia o Papa.
O Pontífice também sinaliza que “o inimigo da fraternidade é o individualismo, que se traduz na vontade de se afirmar a si mesmo e ao próprio grupo, sobrepondo-se aos demais”. É um perigo que “ameaça todos os aspectos da vida, inclusive a prerrogativa mais alta e inata do homem, ou seja, a abertura à transcendência e à religiosidade”.
Disse Bergoglio: “A verdadeira religiosidade consiste em amar a Deus com todo nosso coração e ao próximo como a nós mesmos. Portanto, a conduta religiosa deve ser purificada continuamente da tentação recorrente de julgar os outros como inimigos e adversários”. Desta maneira, todo credo “é chamado a superar a lacuna entre amigos e inimigos, para assumir a perspectiva do Céu, que abraça os homens sem privilégios, nem discriminações”.
Francisco expressa seu “apreço pelo compromisso com que este país tolera e garante a liberdade de culto, opondo-se ao extremismo e ao ódio. Desta maneira, ao mesmo tempo em que se promove a liberdade fundamental de professar a própria fé, que é uma exigência intrínseca para a realização do homem, também se vigia para que a religião não seja instrumentalizada e corra o perigo, ao admitir a violência e o terrorismo, de negar-se a si mesma”.
A fraternidade, claramente, “expressa também a multiplicidade e a diferença que há entre os irmãos, embora unidos pelo nascimento e pela mesma natureza e dignidade”, precisa Francisco, citando sua Mensagem para a Paz de 2015. E a pluralidade religiosa é sua expressão. Neste contexto, “a atitude correta não é a uniformidade forçada, nem o sincretismo conciliatório: o que somos chamados a fazer, como fiéis, é nos comprometer com a mesma dignidade de todos, em nome do Misericordioso, que nos criou, e em cujo nome se deve buscar a recomposição dos contrastes e a fraternidade na diversidade”.
Francisco também levanta algumas questões que se impõem no presente: “Como proteger-nos mutuamente na única família humana? Como alimentar uma fraternidade não teórica que se traduza em autêntica fraternidade? Como fazer para que prevaleça a inclusão do outro sobre a exclusão em nome da própria pertença de cada um? Como podem as religiões, em última análise, ser canais de fraternidade, ao invés de barreiras de separação?”.
Se se acredita na existência “da família humana, se deduz que esta, em si mesma, deve ser protegida. Como em todas as famílias, isto ocorre principalmente através de um diálogo diário e efetivo. Pressupõe a própria identidade, da qual não se deve abdicar para agradar o outro”.
O diálogo exige “a coragem da alteridade, que implica o pleno reconhecimento do outro e de sua liberdade, e o consequente compromisso de se empenhar para que seus direitos fundamentais sejam sempre respeitados por todos e em todas as partes”.
Porque sem liberdade religiosa deixamos de ser “filhos da família humana” e nos convertemos em “escravos”. “Dentre as liberdades – esclarece o Pontífice argentino –gostaria de destacar a religiosa. Esta não se limita só à liberdade de culto, mas vê no outro um verdadeiro irmão, um filho de minha própria humanidade que Deus deixa livre e que, portanto, nenhuma instituição humana pode forçar, nem sequer em seu nome”.
A coragem da “alteridade é a alma do diálogo que se baseia na sinceridade das intenções. O diálogo está de fato ameaçado pela simulação, que aumenta a distância e a suspeita: não se pode proclamar a fraternidade e depois atuar na direção oposta”.
Francisco também cita “Os Irmãos Karamazov” de Dostoiévski: “Segundo um escritor moderno, quem mente para si mesmo e escuta suas próprias mentiras, chega a um ponto em que já não pode distinguir a verdade, nem dentro de si mesmo, nem a seu redor, e assim começa a não sentir estima nem por si mesmo, nem pelos outros”.
Em tudo isso, a oração é “imprescindível: enquanto incorpora a coragem da alteridade em relação a Deus, na sinceridade da intenção, purifica o coração de recuar em si mesmo. A oração feita com o coração é regeneradora de fraternidade”.
Segundo o Papa “não há alternativa: ou construímos o futuro juntos ou não haverá futuro. As religiões, de modo especial, não podem renunciar à tarefa urgente de construir pontes entre os povos e as culturas. Chegou o momento em que as religiões devem se empenhar mais ativamente, com valor e audácia, com sinceridade, em ajudar à família humana a amadurecer a capacidade de reconciliação, a visão de esperança e os itinerários concretos de paz”.
A paz necessita de “duas asas que a sustentem”. Uma delas, explica o Papa Francisco, é a educação: “Educar – em latim significa extrair, retirar – é descobrir os preciosos recursos da alma”. Também a educação “acontece na relação, na reciprocidade. Junto à famosa máxima antiga “conhece-te a ti mesmo”, devemos colocar “conhece teu irmão”: sua história, sua cultura e sua fé, porque não há um verdadeiro conhecimento de si mesmo sem o outro”.
A justiça é a “segunda asa da paz, “que muitas vezes não se vê ameaçada por episódios individuais, mas que é devorada lentamente pelo câncer da injustiça”. De fato, “a paz morre quando se separa da justiça, mas a justiça é falsa se não é universal. Uma justiça dirigida só a membros da própria família, compatriotas, crentes da mesma fé é uma justiça que manca, é uma injustiça disfarçada”, exclama.
Francisco também se refere aos jovens, “rodeados com frequência por mensagens negativas e notícias falsas”. Os jovens necessitam aprender “a não se render às seduções do materialismo, do ódio e dos preconceitos; aprender a reagir diante da injustiça e também diante das experiências dolorosas do passado; aprender a defender os direitos dos outros com o mesmo vigor com o qual defendem seus direitos”. Serão eles, um dia, que “nos julgarão: bem, se lhes dermos bases sólidas para criar novos encontros de civilização; mal, se lhes tivermos proporcionado somente ilusões e a desolada perspectiva de conflitos prejudiciais, de barbárie”.
Com este espírito, expressa o Papa, “desejo que, não só aqui, mas em toda a amada região do Oriente Médio, haja oportunidades concretas de encontro: uma sociedade onde pessoas de diferentes religiões tenham o mesmo direito de cidadania”. Uma convivência fraterna, “baseada na educação e na justiça; um desenvolvimento humano, construído sobre a inclusão acolhedora e sobre os direitos de todos: estas são sementes de paz, que as religiões são chamadas a fazer brotar. A elas corresponde, talvez como nunca, nesta delicada situação histórica, uma tarefa que já não pode ser adiada: contribuir ativamente para a desmilitarização do coração do homem”.
A corrida armamentista, “a extensão de suas zonas de influência, as políticas agressivas em detrimento dos outros, nunca trarão estabilidade. A guerra não sabe criar nada mais do que a miséria; as armas nada mais do que morte”.
Francisco acrescenta: “A fraternidade humana exige de nós, como representantes das religiões, o dever de banir todas as nuances de aprovação da palavra guerra. Vamos devolver a sua miserável crueldade”. Observa o Papa: “Diante de nossos olhos estão suas nefastas consequências. Estou pensando de modo particular no Iêmen, Síria, Iraque e Líbia. Juntos, irmãos da única família humana querida por Deus, vamos nos comprometer contra a lógica do poder armado, contra a mercantilização das relações, dos armamentos das fronteiras, o levantamento de muros, o amordaçamento dos pobres; a tudo isto nos opomos com o doce poder da oração e com o empenho diário do diálogo”.
Francisco espera que “o nosso estar juntos hoje seja uma mensagem de confiança, um estímulo para todos os homens de boa vontade, para que não se rendam aos dilúvios da violência e da desertificação do altruísmo”. Deus está com o homem “que busca a paz. E do céu abençoa cada passo que, neste caminho, se realiza na terra”.
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Papa aos líderes religiosos: “Ou construímos o futuro juntos ou não haverá futuro” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU