05 Novembro 2018
As eleições de 2018 geraram a maior fragmentação partidária desde a primeira eleição da redemocratização, em 1989. São 30 partidos na Câmara dos Deputados, e alterações importantes na constituição das bancadas parlamentares.
O MDB, pivô de todas as coalizões partidárias nos últimos 30 anos, viu sua bancada diminuir de 51 para 34 deputados. O tradicional PSDB, que detinha 49 cadeiras, foi reduzido a 29 deputados. Do outro lado, o novato PSL, do presidente eleito Jair Bolsonaro, saltou de 8 para 52 deputados, com a 2ª maior bancada, atrás apenas do PT, que alcançou 56 deputados.
Esse cenário fragmentado e de realinhamento partidário exigirá uma nova forma de coalizão, afirma o cientista político Sérgio Abranches. Especialista no tema, ele é autor do livro Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro, lançado neste ano e que analisa o sistema político brasileiro desde a proclamação da República.
Em entrevista à DW Brasil, Abranches afirmou que "as coalizões, a partir de agora, serão mais heterogêneas e difíceis de gerenciar", exigindo postura mais maleável de Bolsonaro. "Se não houver negociação com o Congresso, pode haver uma paralisia do processo decisório e uma crise política", afirmou.
A entrevista é de Guilherme Henrique, publicada por Deutsche Welle, 04-11-2018.
O número de partidos representados na Câmara dos Deputados saltou de 25 para 30. No Senado, de 18 para 21. O que essa fragmentação significa para o sistema político brasileiro?
Estamos num processo de realinhamento partidário que ainda não se completou. Os partidos tradicionais perderam densidade na Câmara, e a representação que eles controlavam foi redistribuída para outros partidos. O PSL virou a 2ª bancada, puxado pelos votos de Bolsonaro, mas ninguém sabe se ele vai se tornar um partido orgânico, permanente. Para se ter uma ideia, em 1994, as cinco maiores bancadas eleitas na Câmara controlavam 70% dos votos. Em 1998, passaram a controlar 78% dos votos. Em 2002 e 2006 esse percentual ficou abaixo de 70%, em 2010, abaixo de 60%, em 2014 ficou próximo de 51%, e este ano, em 41%. Nitidamente está havendo uma redução no tamanho médio das bancadas e um aumento da fragmentação. Há uma crise da estrutura partidária, principalmente dos partidos tradicionais, como PSBD e DEM. As coalizões a partir de agora serão mais heterogêneas, difíceis de gerenciar e forçam a mais negociações, reduzindo a intensidade das preferências da agenda presidencial.
No seu livro fica muito evidente a participação do PMDB, atual MDB, como pivô de todas as coalizões desde 1989. Como a diminuição da bancada em 2018 afeta as coalizões?
Ele será substituído. O partido de coalizão do Bolsonaro será o PSL, que tem 52 deputados e provavelmente terá algumas adesões. O MDB ficou com 34 cadeiras. Ele já teve 107, em 1994, mas veio perdendo ao longo dos últimos anos. O MDB, hoje, está do tamanho do PSB, com a 4ª bancada da casa. No Senado, o MDB ainda será o pivô porque manteve uma representação significativa, e o PSL fez poucos senadores.
Como garantir maioria robusta nesse cenário?
É muito complicado. Bolsonaro vai precisar agregar mais partidos. Ele tem falado que possui mais de 300 parlamentares consigo, de sete ou oito partidos. O que está sendo objeto de uma certa confusão é que, evidentemente, com 10% da Câmara e com 5% do Senado, o partido dele não tem a menor condição de governar sem uma coalizão. Isso não significa que necessariamente ele fará uma coalizão distribuindo cargos no ministério. Há uma bibliografia importante na ciência política brasileira dizendo que a governabilidade melhora de acordo com a proporcionalidade da distribuição dos ministérios em relação ao peso dos partidos da coalizão no Congresso. Bolsonaro afirmou que não vai repartir ministérios entre os partidos, mas que o fará por escolhas pessoais. Ele pode fazer esse teste, mas isso nunca funcionou no Brasil. Será uma coalizão mais temática, puxando para uma agenda mais conservadora, e uma agenda econômica que consiga certa maioria no Congresso. A coalizão será montada de maneira diferente.
Seu livro mostra que os presidentes, desde 1988, conseguiram aprovar grande parte da agenda prioritária nos primeiros meses de governo. Bolsonaro lida com temas polêmicos, como Estatuto do Desarmamento, maioridade penal e, possivelmente, a reforma da Previdência. A lógica vai se manter, ou ele terá mais dificuldade?
Essa é uma questão difícil. Ele já disse que não sabe se algumas dessas pautas serão aceitas pelo Congresso da maneira que ele está propondo. Por exemplo: mudar o Estatuto do Desarmamento. Ele tem o apoio da bancada ruralista e da bancada da bala, mas eu não tenho certeza se a bancada evangélica vai apoiar suficientemente medidas tão radicais como o acesso à arma ou a redução da maioridade penal, porque isso é contrário à fé cristã. Imagino que haja uma negociação dentro da própria coalizão do presidente eleito e, nessa negociação, algumas medidas serão mitigadas. Uma das características do presidencialismo de coalizão é exatamente essa: ele mitiga o radicalismo das propostas. Elas podem ser aprovadas, mas com alguma redefinição do grau de intensidade. Nessas questões que envolvem direitos civis e valores, acredito que haverá alguma negociação porque a resistência será grande. Agora, na pauta econômica, acho que ele terá mais facilidade. Se ele começar por aí, pode ser que avance com mais rapidez.
Ao longo da história, o presidencialismo de coalizão tem gerado casos importantes de corrupção e de "toma lá, dá cá". O sistema está fadado a ser assim?
Não. O que argumento no livro é que a maneira pela qual nós desenhamos o nosso processo tributário e orçamentário e a centralização dos recursos das federações na União criam incentivos ao fisiologismo e ao clientelismo, que acabam levando à corrupção. O controle excessivo do presidente sobre os recursos dos estados e dos municípios faz com que os prefeitos, governadores, deputados e senadores sejam demandantes de recursos junto ao governo federal. A relação que se estrutura na busca por recursos cria incentivos a esse "toma lá, dá cá", mas não necessariamente o presidencialismo de coalizão em si.
Como você acha que será o relacionamento do Executivo com os estados? São 13 partidos diferentes entre os governadores.
Essa é uma mudança importante. É mais uma marca de uma eleição disruptiva, que rompeu o eixo que organizava governo e oposição no Brasil. PSDB e PT disputavam a Presidência, os outros partidos disputavam a coalizão, e isso definia quem era governo e oposição. Nesta eleição houve uma ruptura nesse eixo, porque PT e PSDB não estão na Presidência, e também existe esse realinhamento partidário, que deixou as bancadas com peso muito parecido no Congresso, que torna essa definição de governo e oposição mais complexa. O Bolsonaro terá uma oposição dura do PT, Psol, PCdoB e eventualmente PDT. Está se configurando um novo quadro de transição, que muda a dinâmica da relação entre Executivo e Legislativo a partir do ano que vem.
Bolsonaro e sua equipe possuem um estilo por vezes agressivo de negociação, com pouco diálogo. Como esse perfil se enquadra no presidencialismo de coalizão?
Este será o teste decisivo do governo e da própria democracia, o das relações entre Executivo e Legislativo. Um presidente que não se dispõe a negociar com o Congresso. E vale dizer que negociar não é feio ou necessariamente espúrio. Discutir ideias, fazer concessões na intensidade das medidas, abandonar algumas coisas, adicionar outras são negociações políticas legítimas e necessárias. Se não houver essa negociação, pode haver uma paralisia do processo decisório e uma crise política.
Duas coisas precisam ser consideradas: a primeira é a experiência parlamentar de Bolsonaro. Apesar de nunca ter tido um papel de liderança no Congresso, ele teve sete mandatos e conhece bem a Câmara. Além disso, o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, também é um político experiente, envolvido em muitas negociações no Congresso. Tanto Bolsonaro quanto Onyx possuem a experiência parlamentar que pode ajudar na busca de soluções que atendam a agenda presidencial e respeitem os limites impostos pelo Congresso.
Já há uma resistência contra o governo do Bolsonaro, antes mesmo de ele ter começado. Haverá uma margem de tempo a partir do ano que vem ou podemos ter um novo rompimento democrático?
Ele terá um ano para mostrar desempenho e fazer com que a economia dê sinais de recuperação com a chegada de um novo governo. O primeiro teste será o da governança e estabilidade. Os presidentes que frustraram o eleitorado perderam imediatamente popularidade e passaram a ter problemas no Congresso. Dois deles sofreram impeachment, e um deles ficou com muita dificuldade, no segundo mandato (o FHC), quando ele desvalorizou a moeda sem alertar a população e ocasionou a volta da inflação por um determinado período.
Dilma Rousseff frustrou a população logo no início do segundo mandato, quando fez uma campanha dizendo que não havia crise, e logo depois revelou-se a crise. Houve um "tarifaço", e o eleitorado a abandonou. Presidente popular tem força, estabiliza governança e consegue ter bom desempenho. Agora, se o presidente não aceita as limitações constitucionais, os freios e contrapesos do sistema político, há um teste ácido para a democracia. A minha hipótese é de que não vamos correr esse risco rapidamente. A democracia brasileira será testada, porque toda a dinâmica que organizou o jogo político nos últimos 24 anos foi rompida. Estamos navegando em águas desconhecidas.
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"Bolsonaro terá um ano para mostrar resultado". Entrevista com Sérgio Abranches - Instituto Humanitas Unisinos - IHU