Por: Ricardo Machado | 18 Abril 2018
Ao longo de praticamente 518 anos, a serem completados em três dias, o Brasil testemunhou o sistemático processo de extermínio das populações ameríndias, empreendendo as mais diversas táticas de violência. Inclusive o chamado “dia do índio”, recordado anualmente nesta data, 19 de abril, é parte dessa dinâmica. Contra o assimilacionismo da civilização ocidental, os ameríndios desenvolveram uma adaptação criativa capaz de fazer os brancos, finalmente, ouvi-los, mas não por suas oralidades, senão pelas peles de papel, termo que Davi Kopenawa utiliza para descrever os livros.
Ao longo de mais de duas horas, Julie Dorrico destrinchou a obra A Queda do Céu. Palavras de um Xamã Yanomami (São Paulo: Companhia das Letras, 2015), escrita por Davi Kopenawa e Bruce Albert, à luz de teoria literária. “Davi Kopenawa não precisava sair de sua aldeia se não houvessem projetos que devastassem a floresta que ele vive. Ele saiu para o mundo dos brancos para reivindicar os direitos de seu povo”, comenta Julie ao introduzir o tema. O evento A Queda do Céu. Palavras de um Xamã Yanomami. Obra de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que integra a programação do ciclo A contemporaneidade em debate. Intérpretes e suas obras (2ª edição), ocorreu na noite da quarta-feira, 18-4-2018, na Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Julie Dorrico durante conferência no IHU (Fotos: Ricardo Machado/IHU)
No Brasil, o mês de abril é marcado por intensas mobilizações indígenas em todos os quadrantes, inclusive com o tradicional Acampamento Terra Livre, em Brasília, em que as comunidades indígenas reivindicam o direito à demarcação de seus territórios, previstos legalmente, mas raramente homologados pela União. A literatura, justamente, é uma dessas formas da adaptação criativa dos ameríndios para se consolidarem socialmente no universo do homem branco. “A literatura passa a ser um referencial tanto para a História quanto para a Linguística, como um instrumento de legitimação das lutas políticas dos indígenas”, pontua Julie. Nesse universo há uma série de autores, entre eles, Daniel Munduruku, Cristino Wapichana, Eliane Potiguara, Márcia Kambeba, Ely Macuxi, Olívio Jekupé, Yaguaré Yamã, Graça Graúna, Tiago Hakiy, Jaime Diakara, Kaká Werá, Ailton Krenak, Álvaro Tucano e Sonia Guajajara.
Como as disputas em torno do universo indígena são amplas e complexas, o que está em jogo não é a extinção desses povos, mas o direito de ser indígena. É nesse cenário que a escrita alfabética e o livro impresso acabam sendo uma alternativa para esses sujeitos sociais e essas populações expressarem suas ancestralidades. “A própria luta, agora, se faz pela escrita, não mais pelas flechas. São essas ferramentas dos homens ocidentalizados que permitem com que eles, os indígenas, demonstrem a violência histórica às quais são vítimas”, explica a conferencista.
Ao pensar a literatura indígena não devemos cair na armadilha de observá-la a partir dos cânones ocidentais. “Essas produções indígenas dão uma abertura muito maior ao conceito de literatura indígena, de modo que não se restringe ao texto escrito, incluindo, também, os cantos, as danças, os grafismos”, esclarece Julie. “A literatura indígena assume os índios como protagonistas e é produzida por eles próprios. Devemos ter o cuidado de não homogeinizar suas cosmologias, porque são povos muito diversos, com visões de mundo diferentes, apesar de aspectos em comum, como a demarcação de terra, porque a territorialidade é condição essencial para a vida indígena”, salienta.
Particularmente no campo da teoria literária, há diferenças sensíveis entre a autobiografia em seu sentido canônico e a autobiografia indígena. “A autobiografia ocidental tem um mote que é a associação do autor e o protagonista. A noção de autobiografia indígena já rompe na metodologia porque no caso do Davi Kopenawa ele conta sua história ao Bruce Albert. No Brasil, inclusive por conta do marco jurídico, que só reconhece os indígenas coletivamente, esse sujeito histórico individual não existe”, sinaliza a pesquisadora.
“A autobiografia indígena assume essa duplicidade que representa a coletividade e os indivíduos, o “eu”, no sentido de sujeitos históricos. Davi fala sobre sua própria história, as preocupações, seus anseios pessoais, mas profundamente ligados à comunidade. Há a existência do sujeito imbrincado na coletividade. Não se trata de uma coisa ou outra. As subjetividades ameríndias também devem ser estudadas, pois nessas histórias nunca há um eu absoluto porque eles estão sempre imbrincados no coletivo”, complementa.
Os universos ameríndios e da civilização ocidental confrontam-se em muitas esquinas. Destes muitos aspectos conflitantes, talvez o mais comum deles seja o fato de os brancos separarem as noções de cultura e natureza. “Natureza e cultura são vistas de uma perspectiva simbiótica. A floresta não é um lugar de exploração porque os xapiris (espíritos ancestrais) vivem na floresta. As imagens dos animais, depois que morrem, continuam habitando esse território. As mineradoras, quando exploram o solo e fazem tremer as hastes do céu, que Omama (criador do universo na cosmologia Yanomami) criou para suspendê-lo sobre nós, colocam em risco não somente a vida física da floresta, mas a vida espiritual porque sem floresta não há onde os xapiris viverem”, descreve Julie ao relembrar o apelo de Kopenawa em seu livro.
“A natureza, para os yanomami, tem sua relação normativa em relação a sociedade, está para além do bem que pode gerar economicamente. A crítica xamânica da modernidade percebe que desconsiderando o lucro, as mercadorias que os brancos são apegados perdem totalmente o valor”, relembra a pesquisadora. No fundo, o que Davi ao longo da obra tentar deixar claro é uma profunda crítica ao homem ocidental pela sua obsessão em objetificar todos os seres do mundo, sejam eles elementos da natureza ou o próprio ser humano. “Quando se pensa em preservação da natureza há um equívoco enorme porque não há a natureza e a sociedade. É tudo uma coisa só. Trata-se de uma crítica da exploração do homem como elemento objetificação", ressalta.
Do fundo da floresta aos mais variados recantos do mundo, Davi Kopenawa grita para civilização ocidental alertando-nos de que se não mudarmos nossa relação com o cosmos estaremos condenados à queda do céu, o apocalipse ambiental nos termos xamânicos. Mas como todos estão surdos, Davi Kopenawa nos entregou seu livro, ou as peles de papel como ele próprio diria, A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami, que no fundo é seu grito silencioso em defesa à vida, não somente dos yanomamis, mas de todos os seres da terra.
Julie Dorrico é graduada em Letras Português e suas respectivas Literaturas na Fundação Universidade Federal de Rondônia - UNIR, onde também realizou mestrado no Programa de Pós-Graduação do Mestrado em Estudos Literários. Atualmente é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Sua pesquisa volta-se à Literatura Contemporânea com ênfase na Literatura Indígena Contemporânea e autobiografia indígena e integra o Grupo de Estudos em Culturas, Educação e Linguagens - GECEL.
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O grito silencioso de Davi Kopenawa e dos Yanomamis nas “peles de papel” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU