03 Abril 2018
"Muitos não sabem que entre mim e Pasolini existia o hábito de escrever cartas para resumir nossas opiniões sobre as obras a serem realizadas." escreve Alfredo Bini, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano em 28-03-2018. Tradução de Luisa Rabolini. A partir do dia 29-03-2018 nas bancas "Hotel Pasolini", a autobiografia do produtor Alfredo Bini.
Eu e Pasolini sofremos uma longa sequência de desaforos. A reação à nossa obra foi muito dura, e me atingiu pessoalmente. Pasolini trazia em si um valor artístico objetivo: era o homem que mais irritava a tranquila lagoa italiana no meio do boom econômico. Seu trabalho era o espião e ao mesmo tempo a análise de um momento preciso que estava mudando a nossa sociedade, o momento em que as gerações que tinham saído da guerra estavam se direcionando para uma sociedade de consumo que confundia desenvolvimento e progresso. O que estava mudando totalmente eram as nossas próprias raízes: o fato de colocar inequivocamente a sociedade italiana diante dessa mudança, e talvez até mesmo de uma sua traição, não podia ser aceito. Não era aceitável que um marxista, pederasta, e, portanto, já por si execrável, servisse de moral a todos. Não era aceitável e basta.
A reação contra La ricotta teve o claro objetivo de desencorajar a produção de novos filmes, e foi violenta, porque havia em Pasolini capacidade de análise e grande sensibilidade. Com Pasolini era necessário um esforço para elevar-se acima das controvérsias. A única maneira era recuperar o crédito perdido e reagir aos ataques com uma obra de arte incontestável. Durante uma viagem à África, Pasolini fez alusão à ideia de realizar um filme sobre a parábola de Lázaro, em homenagem a seu irmão morto pela resistência em Porzûs. Eu não estava interessado no projeto, teria durado meia hora, não faria sentido. Já existiam tratativas em andamento com a Pro Civitate Christiana de Dom Giovanni Rossi em Assis, uma associação de voluntários católicos. Durante o começo da década de 1960 essa comunidade, também por causa do Concílio Vaticano II, tinha aumentado o interesse para a esquerda católica, estreitando contatos com o mundo secular.
Pasolini aceitou o convite para participar de uma conferência, e em combinação com alguns freis deixamos em seu quarto uma cópia do Evangelho segundo Mateus. Ele o leu de uma vez só, durante uma noite de insônia e ficou fascinado. Parecia-me a solução óbvia: nós havíamos identificado um texto particularmente adequado à sua personalidade, à sua poesia, uma história profundamente espiritual, como ele era. Pasolini sempre havia sido correto, íntegro; e não havia nada como o Evangelho que fosse tão igualmente desprovido de comprometimentos, de nuances, de meias-medidas.
Por outro lado, o projeto apresentava alguns problemas evidentes: era difícil imaginar um filme sobre o Evangelho dirigido por um autor condenado por desacato à religião! Muitos não sabem que entre mim e Pasolini existia o hábito de escrever cartas para resumir nossas opiniões sobre as obras a serem realizadas. E não se falava de dinheiro, mas da impostação geral do filme. Ao voltar de uma viagem em busca de locações na África, Pasolini escreveu suas intenções para o Evangelho em uma famosa carta, um verdadeiro ensaio de sedução de um autor para o seu próprio produtor.
"Caro Alfredo, você me pede para resumir por escrito, e para sua conveniência, os critérios que irão orientar à minha realização do Evangelho segundo São Mateus. Do ponto de vista religioso, para mim, sempre tentei vincular à minha laicidade os aspectos da religiosidade, valem dois dados ingenuamente ontológicas: a humanidade de Cristo é impulsionada por tamanha força interior, por tamanha sede irredutível de saber e de verificar o saber, sem medo por nenhum escândalo e nenhuma contradição, que para ela a metáfora 'divina' está nos limites metafóricos, chegando a ser idealmente uma realidade. Além disso: para mim, a beleza é sempre uma 'beleza moral', mas essa beleza sempre chega a nós mediada: através da poesia ou da filosofia, ou da prática. O único caso de 'beleza moral' não mediada, mas imediata, ao estado puro, eu a experimentei no Evangelho.
Quanto à minha relação 'artística' com o Evangelho, esta é bastante curiosa: você possivelmente sabe que, como um escritor nascido idealmente da Resistência, como marxista, etc., durante todos os anos 1950 o meu trabalho ideológico foi em direção à racionalidade, em polêmica com o irracionalismo da literatura decadente (em que eu tinha me detido e que eu tanto amava). A ideia de fazer um filme sobre o Evangelho, e a sua percepção técnica, é em vez disso, devo confessá-lo, o resultado de uma onda furiosa de irracionalidade. Quero fazer pura obra de poesia, talvez colocando em risco os perigos da estética (Bach e, em parte, Mozart como acompanhamento musical: Piero della Francesca e, em parte, Duccio como inspiração figurativa; a realidade, afinal pré-histórica e exótica do mundo árabe, como fundo e ambiente). Tudo isso coloca perigosamente em jogo toda a minha carreira de escritor, eu sei. Mas seria bom que, amando tão visceralmente o Cristo de Mateus, eu me atrevesse a colocar em jogo alguma coisa".
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Aquele Evangelho (por engano) na mesinha de cabeceira de Pasolini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU