14 Março 2018
Assisti a “Uma Dobra no Tempo” (Ava DuVernay, 2018) sentado próximo a uma irmã consagrada que vestia hábito. Eu estava disfarçado em roupas civis, desse modo não ficava tão óbvio que eu era um padre jesuíta. No final do filme, confesso que senti um pingo de culpa. Eu deveria ter vestido roupas clericais – com todas as minhas marcas religiosas visíveis –, pois este filme convida a todos nós a demonstrar os nossos sentimentos, aquilo que somos, nos convida a sermos honestos e descaradamente sinceros, a termos esperança.
O comentário é de Eric Sundrup, jesuíta, publicado por America, 09-03-2018. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis uma tarefa exigente para os adultos na era de Trump e, muito por mérito dos nossos filhos, eles terão uma época muito mais fácil. Temos de prestar atenção neles.
Imagino que muitos críticos não vão ficar satisfeitos com “Uma Dobra no Tempo”. Esse filme não é para pessoas cínicas; é quase anticínico. Embora, é correto dizer, parte dos seus diálogos e da construção de mundo seja irregular, para nos beneficiarmos realmente dele precisamos assisti-lo com um senso de amor e perdão, precisamos estar dispostos a supor o melhor dos cineastas. Um crítico pode, com razão, enxergar algumas falhas nessa produção, mas a tarefa do espectador ecoa a tarefa posta diante da personagem Meg Murray (Storm Reid), a jovem protagonista.
Meg luta para se manter com esperança. Ela é jogada para dentro de uma batalha cósmica, juntamente com o irmão mais novo Charles Wallace (Deric McCabe) e Calvin (Levi Miller), o menino popular da escola. Com a ajuda da Sra. Quem (Mindy Kaling), da Sra. Quequeé (Reese Witherspoon) e da Sra. Qual (Oprah Winfrey), eles são transportados para galáxias distantes para tentar salvar o pai de Meg, Alex Murray (Chris Pine), da IT, a fonte das trevas do universo. Assim como o livro em que se baseia, o filme fala sobretudo da esperança que vem do amor. E é por isso que deveríamos assisti-lo e, quem tiver filhos, deve levá-los para ver também.
Os espectadores que conhecem o livro poderão notar que a adaptação da Disney tirou grande parte de referências abertamente cristãs originais a fim de ter o apelo mais amplo possível. Mesmo assim, os cristãos vão encontrar temas que ainda retêm elementos da ligação original da obra de Madeleine L’Engle com o cristianismo. Portanto, quando a Sra. Quem cita OutKast [dupla de rappers de Atlanta, EUA] e não Jesus, os roteiristas podem ser perdoados.
O enredo fala dos mensageiros da luz que lutam contra as trevas. As lutas internas de Meg, Calvin e Charles Wallace possuem uma significação cósmica. E, se quisermos, podemos olhar para as nossas próprias lutas com estas mesmas lentes. A primeira semana dos Exercícios Espirituais pede, intencionalmente, ao retirante que se imagine como parte da batalha muito maior e histórica entre as trevas e a luz.
Mesmo assim, a retirada de toques cristãos, tão centrais na fonte original de “Uma Dobra no Tempo”, pode levar a acusações de que o filme é uma ode ao deísmo moralista e terapêutico. Por essa razão, quando comparada com o livro original, esta adaptação para o cinema em particular parece ser mais um aperitivo do que o prato principal quando se trata de teologia e filosofia.
De qualquer modo, se alguma vez você já teve contato com a espiritualidade inaciana, há muito aqui para você se maravilhar. Quando a Sra. Qual explica como as trevas trabalham para roubar o nosso potencial, temos uma explicação maravilhosa e cativante dos truques do espírito maligno. Numa cena instrutiva, a Sra. Qual mostra a Meg as memórias dos três filhos jovens e seus professores. Essas memórias servem como exemplos de como perdemos as esperanças e de como ouvimos a voz do “acusador” que diz que não somos o suficiente ou que não servimos mais.
E se a explicação de Oprah fizer você gemer, remeto-o aos parágrafos anteriores. Sinta-se livre para relê-los quantas vezes precisar; a repetição é um método central nos Exercícios Espirituais. De minha parte, definitivamente irei usar esta cena na próxima vez que estiver apresentando a oração inaciana. Um princípio fundamental deste tipo de oração é estar atento ao fato de que Deus pode nos falar em nossas memórias e imaginações.
Na sessão a que fui, a diretora, Ava DuVernay, apareceu em um segmento pré-filme para nos dizer que esse tipo de filme é especialmente importante nestes “tempos divisores”. Depois de duas horas de maravilhamento que me permitiram voltar a alguns dos sentimentos mais importantes da minha infância, tive de concordar 100% com a afirmação.
“Uma Dobra no Tempo” não tenta desarmar momentos emotivos com em quem o assiste. Tampouco fará isso um bom orientador espiritual inaciano. Deus nos fala via emoções cruas e desprotegidas. Os cineastas perguntam continuamente como o mundo deve ser, com uma seriedade quase dolorosa. Essa questão é implacável, e tive o desejo de gritar aos jovens protagonistas: “Mas o mundo está demais rompido, vocês perceberão isso e irão desistir quando envelhecerem”.
Um guia verdadeiramente inaciano para o filme seria encorajar as pessoas a assistirem-no como um caminho para dentro das próprias emoções. Podemos assisti-lo com um espírito de imaginação e seriamente explorar os temas nele presentes, ou podemos ficar com as nossas apostas e nos proteger do medo de nos envergonhar com o nosso potencial cru e infantil ao maravilhamento e espanto – aquela parte meio selvagem de nós que imagina que podemos, realmente, ser capazes de salvar o universo inteiro com amor.
Proteger-nos destas emoções está no coração do convite do IT, o demônio que habita o centro das trevas. Se não arriscarmos, nunca iremos nos envergonhar ou ter os nossos corações despedaçados. Infelizmente, não seremos capazes também de amar. Os cristãos (e talvez inclusive o OutKast) têm um nome para este lugar; nós o chamamos de inferno.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Guia inaciano para o filme ‘A Wrinkle in Time' (Uma Dobra no Tempo) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU