20 Janeiro 2018
“A dignidade propriamente ética de Jó está na maneira como ele persistentemente rejeita a noção de que seu sofrimento pode ter algum significado, seja como punição por seu passado ou como teste de sua fé, contra os três teólogos que o bombardeiam com possíveis justificativas e significados. Surpreendentemente, Deus o defende no fim, alegando que toda palavra que Jó disse era verdade, enquanto toda palavra dita pelos teólogos era falsa”, escreve Slavoj Žižek, em artigo publicado por The Philosophical Salon e reproduzido por LavraPalavra, 18-01-2018. A tradução é de Julio Davila.
Segundo ele, “o que Jó de repente percebeu é que não era ele, mas Deus que deveria ser julgado pelas calamidades de Jó, e Ele falhou no teste miseravelmente. Ainda mais criticamente, deveríamos arriscar uma leitura anacrônica radical: Jó enxergou o futuro do sofrimento de Deus – “Hoje sou eu, amanhã será seu filho e ninguém poderá intervir por ele. O que você vê em mim agora é a prefiguração de sua própria paixão!”
Por mais convincente que essa linha de raciocínio possa parecer, ela despreza o mais profundo paradoxo do Cristianismo e da ética. Deus não está nos expondo à tentação já no Paraíso, quando ele avisa Adão e Eva que eles não devem comer a maça da árvore do conhecimento? Porque ele colocou a árvore lá em primeiro lugar, e então ainda chamou atenção para ela? Ele não sabia que a ética humana só podia surgir depois da Queda? Muitos teólogos e escritores cristãos perspicazes, de Kierkegaard à Paul Claudel estavam plenamente conscientes de que, no seu nível mais básico, a tentação origina-se na forma do Bem. Ou, como Kierkegaard colocou sabiamente, quando Deus manda Abraão sacrificar Isaac, seu dilema “é um teste tão severo que, notem, o ético é a tentação.” A tentação do (falso) Bem não é o que caracteriza todas as formas de fundamentalismo religioso?
Aqui está talvez um surpreendente exemplo histórico: o assassinato de Reinhard Heydrich. Em Londres, o Governo Provisório da Tchecoslováquia decidiu matar Heydrich; Jan Kubiš e Jozef Gabčík, que lideravam o time escolhido para a operação, caíram de paraquedas perto de Praga. No dia 27 de Maio de 1942, com seu motorista, em um carro conversível (para mostrar sua confiança e coragem), Heydrich estava a caminho de seu escritório. Quando, numa junção em Praga, o carro desacelerou, Gabčík surgiu na frente do veículo e mirou em Heydrich com uma submetralhadora, mas ela travou. Ao invés de mandar seu motorista fugir dali, Heydrich pediu para ele parar e decidiu confrontar os homens que o atacavam. Nesse momento, Kubiš jogou uma bomba na traseira do carro enquanto ele freava, e a explosão feriu Heydrich e Kubiš.
Quando a fumaça clareou, Heydrich emergiu dos destroços com seu revólver em mãos; ele perseguiu Kubiš por meio quarteirão, mas ficou fraco por causa do choque e caiu. Ele mandou seu motorista, Klein, perseguir Gabčík a pé enquanto, ainda segurando sua arma, pôs as mãos na parte esquerda do seu corpo, que sangrava intensamente. Uma mulher tcheca foi ajudar Heydrich e chamou uma van de entrega; ele primeiro foi posto no assento de passageiro, mas reclamou que o movimento do carro estava lhe machucando e então foi colocado na parte de trás da van, e rapidamente levado ao pronto socorro de um hospital próximo… (Heydrich morreu alguns dias depois, mas vale a pena notar que suas chances de sobrevivência eram altas, então essa mulher podia ter entrado na história como quem salvou a vida de Heydrich.)
Enquanto um nazista militarista simpatizante poderia enfatizar a coragem pessoal de Heydrich, o que me fascina é o papel desempenhado pela mulher tcheca anônima: ela ajudou Heydrich, que estava deitado sozinho, coberto de sangue, sem proteção militar ou policial. Ela sabia quem ele era? Se sim, e se ela não fosse simpatizante dos nazistas (ambas pressuposições mais prováveis), porque fez isso? Foi uma simples e quase automática reação de compaixão humana, de ajudar um vizinho em apuros independentemente de quem ele ou ela (ou elx, como logo seremos forçados a escrever) era? Essa compaixão deveria ser mais forte do que o fato de que esse “vizinho” é um dos maiores criminosos nazistas, responsável por milhares (e depois milhões) de mortes? O que confrontamos aqui é a escolha definitiva entre liberalismo humanista abstrato e a ética implicada em uma batalha de emancipação radical: se nós progredirmos para o extremo lógico do liberalismo humanista, nos encontraremos tolerando os piores criminosos, e se partimos para o engajamento político, estaremos do lado da emancipação universal. No caso de Heydrich, para a pobre mulher tcheca agir universalmente, ela teria que resistir à compaixão e dar fim à vida dele…
Tais impasses constituem uma vida eticamente engajada de fato, e, se nós as excluirmos como problemáticas, nos restará um texto sagrado benevolente e sem vida. O que se esconde atrás dessa exclusão é o trauma do Livro de Jó , onde Deus e Satã diretamente organizam a destruição da vida de Jó para testar sua devoção. Poucos cristãos afirmam que, por isso, o Livro de Jó deveria ser excluído da Bíblia como uma blasfêmia pagã. No entanto, antes de sucumbirmos a essa limpeza ética do Politicamente Correto, deveríamos pausar por um momento e considerar o que perdemos com ela.
O impacto quase insuportável do Livro de Jó reside não tanto na narrativa (o Diabo aparece no livro como um parceiro de conversa de Deus e os dois decidem se engajar em um experimento um tanto quanto cruel para testar a fé de Jó), mas no seu resultado final. É preciso localizar exatamente a grandeza de Jó: ao contrário da noção usual que se tem dele, Jó não é um paciente sofredor que aguenta as provações extremas com fé firme em Deus. Na verdade, ele reclama constantemente, rejeitando sua fé (como Édipo em Colono, que normalmente também é mal definido como uma vítima paciente e resignada ao seu futuro).
Quando, depois que seus meios de subsistência são destruídos, três teólogos amigos visitam Jó e conversam com ele, a linha de argumento deles é o típico sofismo ideológico: se você sofre é porque, por definição, você deve ter feito algo de errado, já que Deus é justo… No entanto, sua argumentação não se limita a afirmar que Jó é de alguma forma culpado: o que está em jogo em um nível mais radical é o significado (ou a ausência de) do sofrimento dele. Como Édipo em Colono, Jó insiste na total falta de sentido do seu sofrimento: como o título 27 de Jó mostra: “Jó mantém sua integridade”. Como tal, o Livro de Jó proporciona talvez o primeiro exemplo da crítica da ideologia na história humana, desnudando as estratégias discursivas básicas de legitimação do sofrimento. A dignidade propriamente ética de Jó está na maneira como ele persistentemente rejeita a noção de que seu sofrimento pode ter algum significado, seja como punição por seu passado ou como teste de sua fé, contra os três teólogos que o bombardeiam com possíveis justificativas e significados. Surpreendentemente, Deus o defende no fim, alegando que toda palavra que Jó disse era verdade, enquanto toda palavra dita pelos teólogos era falsa.
E é por causa dessa asserção da falta de sentido do sofrimento de Jó que deveríamos insistir no paralelo entre Jesus e Jó, no sofrimento de Jó anunciando a Via-Crúcis. O sofrimento de Cristo também é sem sentido, não é um ato de troca lógica. A diferença, evidentemente, é que, no caso de Jesus, a distancia que separa o homem sofredor desesperado (Jó) de Deus é transposta para o próprio Deus, em sua divisão radical, ou melhor, em seu autoabandono. O que isso significa é que deveríamos arriscar uma leitura muito mais radical da frase “Pai, porque Me abandonaste?” do que se costuma fazer.
Já que estamos lidando aqui não com a distância entre homem e Deus, mas com a divisão no próprio Deus, a solução não pode ser que Deus (re)apareça em toda sua majestade, revelando a Cristo o significado mais profundo de seu sofrimento (que ele era o Inocente sacrificado para redimir a humanidade). O “Pai, porque Me abandonaste?” de Cristo não é uma reclamação feita ao onipotente Deus-Pai cujos trabalhos são indecifráveis para nós, meros mortais, mas, na verdade, uma reclamação ao impotente Deus. É como a criança que, depois de acreditar que ser pai é superpoderoso, com horror descobre que seu pai não pode ajuda-lo. (Para evocar um exemplo da história recente: no momento da crucificação, Deus-o-Pai está em uma posição similar ao pai bósnio, forçado a assistir o estupro de sua filha, e suportar o trauma de seu olhar de compaixão-repreensão: “Pai, porque Me abandonaste?”…) Resumindo, com esse “Pai, porque Me abandonaste?”, é Deus-o-Pai que efetivamente morre, revelando sua total impotência, e então ressurge dos mortos na aparência do Espírito Santo, a coletividade dos crentes.
Porque Jó manteve seu silencio depois da vaidosa aparição de Deus? Esta ridícula exibição (a pomposa bateria de perguntas retóricas “Onde estavas tu quando…”: “Quem é este que escurece os meus desígnios com palavras sem conhecimento? / Cinge, pois, os lombos como homem, pois eu te perguntarei, e tu me farás saber. /Onde estavas tu, quando eu lançava os fundamentos da terra? Dize-mo, se tens entendimento.”) não é o próprio modo de aparição do seu oposto, ao que se pode responder com apenas: “OK, se você pode fazer tudo isso, porque me deixou sofrer de modo tão desnecessário, sem sentido?” As palavras poderosas de Deus não tornam seu silêncio sobre essa questão ainda mais palpável, não enfatizam a ausência de uma resposta? E se foi isso que Jó percebeu e que o manteve quieto: ele ficou em silêncio não porque foi esmagado pela presença avassaladora de Deus nem porque ele queria mostrar sua resistência contínua, mas porque, em um gesto de solidariedade muda, ele percebeu a impotência divina, já que Ele não respondia seu questionamento. Deus não é nem justo ou injusto, ele é simplesmente impotente. O que Jó de repente percebeu é que não era ele, mas Deus que deveria ser julgado pelas calamidades de Jó, e Ele falhou no teste miseravelmente. Ainda mais criticamente, deveríamos arriscar uma leitura anacrônica radical: Jó enxergou o futuro do sofrimento de Deus – “Hoje sou eu, amanha será seu filho e ninguém poderá intervir por ele. O que você vê em mim agora é a prefiguração de sua própria paixão!”
Então, se quisermos manter a experiência cristã viva, temos de resistir à tentação de purgar todas suas passagens “problemáticas”. Elas conferem o estofo que confere ao Cristianismo as insuportáveis tensões de um vida real.
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O Politicamente Correto chega ao Vaticano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU