13 Dezembro 2017
A historiadora Londa Schiebinger é uma mulher com uma missão. Dedicou todos os anos de sua carreira acadêmica e sua ambição informativa em vincular o feminismo com a ciência. Diante de tal projeto, imagino o rosto desalinhado dos líderes da oposição ao movimento das mulheres, a boca retorcida de seus seguidores que pregam a consigna “Biologia sim, ideologia de gênero não” em cada marcha, mas também o desconcerto de muitas pessoas que ainda acreditam que o feminismo não é mais que um movimento social, um grito subjetivo e identitário. Portanto, contrário à tarefa objetiva das ciências.
A reportagem é de Sandra Barba, publicada por Letras Libres, 07-12-2017. A tradução é do Cepat.
Que necessidade tão pós-moderna, interdisciplinar e politicamente correta motiva Schiebinger a relacionar o gênero com as ciências duras?, pensarão alguns. Apesar de que se repetiu – sim, até o cansaço – que não existe uma postura completamente objetiva, parece-me que somos incapazes de entender completamente tudo o que esta advertência significa, até que a evidência se acumula e os exemplos nos abismam. Essa foi a estratégia de Schiebinger durante sua participação no XXIV Colóquio Internacional de Estudos de Gênero, no México, dedicado à ciência e a tecnologia, realizado em fins de outubro
A conferência Gender innovations in science, health and medicine, and technology deixou claro que Schiebinger desconfia das fórmulas rápidas para mudar o mundo. Em nossos dias, cada vez restam menos dúvidas sobre a obrigação das universidades e dos centros de pesquisa em incorporar mulheres profissionais. Assim como não basta oferecer um espaço às mulheres na lista dos grandes cientistas da história. É necessário mais: “os progressistas se contentam em receber mulheres, pensando que elas devem assimilar a ciência, quando o certo é que a própria ciência falhou por culpa dos estereótipos de gênero”.
Desde seus primeiros livros, Schiebinger se dedicou a expor os preconceitos sexistas e racistas na pesquisa científica. Em Nature’s body. Gender in the making of modern science (1993) investiu contra a Ilustração, o período ao qual recorremos para entender a modernidade. Nesse momento, os naturalistas, afirma Schiebinger, se empenharam em demonstrar as diferenças anatômicas entre homens e mulheres. Enquanto comparavam os crânios de africanos e europeus, os cientistas na França e Inglaterra se dedicaram também a medir a pelve feminina. Quando se decretou que todos os homens eram iguais perante a lei, só as diferenças biológicas podiam justificar as desigualdades sociais. A tese de Schiebinger é provocadora: o século XVIII utilizou a ciência para negar direitos, excluir a maioria da esfera pública e submeter as mulheres ao cuidado das crianças e o lar.
Basta folhear Has feminism changed science? (1999) para advertir que houve poucos avanços na intersecção entre ciência e gênero. “As aspirinas não foram testadas em mulheres. Tampouco os medicamentos contra a hipertensão, nem sequer o Valium. Os pesquisadores supuseram que o corpo dos homens era o modelo para o restante”. Sem voluntárias nos laboratórios, os médicos se limitaram a extrapolar os resultados.
Schiebinger lista as consequências: as mulheres padecem duas vezes mais os efeitos secundários dos medicamentos. A menstruação faz com que o corpo descarte a substância ativa dos antidepressivos em algumas etapas do ciclo, e em outras absorve mais que a dose necessária, e as pílulas contra a hipertensão costumavam aumentar o risco de morte nas mulheres. “Os vieses de gênero nos laboratórios provocaram o sofrimento desnecessário e a morte de muitas mulheres”, conclui Schiebinger. Não o superamos: muitos pesquisadores omitem o sexo e o gênero em seus experimentos.
Como se fosse pouco, os estereótipos de gênero se intrometem nos conceitos e nas metáforas com as quais explicamos os fenômenos biológicos. A ideia de que as mulheres são dóceis e submissas e os homens assertivos e competitivos fez com que os cientistas pensassem, durante séculos, que o espermatozoide é o elemento ativo na reprodução, ao passo que o óvulo só aguarda – como modesta donzela – o gameto vitorioso. O mesmo preconceito se reproduziu na pesquisa celular: o masculino núcleo é responsável por todos os processos e o feminino citoplasma se submete a sua direção. No entanto, nos últimos anos foi demonstrado que os óvulos e os citoplasmas têm um papel ativo.
A ideia do obstinado recato das mulheres se estendeu ao estudo dos babuínos. As primeiras equipes de pesquisa, formadas por homens, se concentraram na agressão e rivalidade dos machos. Apressaram-se em concluir que a seleção natural por meio da reprodução era a chave da organização social dos primatas. Quando as mulheres se somaram a esta disciplina, descobriram que as fêmeas são tão competitivas e ferozes como os machos: “Elas decidem a rota diária para buscar comida, brigam pelos alimentos e buscam os machos quando têm necessidades reprodutivas. Nem sequer é certo o mito do macho alfa: só um terço dos potros Mustang são filhos do semental mais forte”. Dois casos são uma coincidência, mas uma centena de exemplos revelam uma tendência. O sexismo, os estereótipos de gênero e a exclusão das mulheres como pesquisadoras e sujeitos de estudo empobreceram a atividade científica.
“Não digo que os homens tenham manipulado maliciosamente os resultados, nem que tenham contrariado a evidência do laboratório. Ao contrário, o gênero influenciou em que tipos de perguntas fazemos e repercutiu nas palavras e metáforas que usamos para descrever processos”, advertiu Schiebinger. Ninguém está isento da cultura. Os cientistas não estão vacinados contra a influência da sociedade e seus vaivéns. Ao contrário: a discriminação também é sigilosa, tanto que condiciona as próprias possibilidades do pensamento.
Não resta outro remédio a não ser “reformar os planos de estudo das ciências duras e as engenharias, treinar os cientistas para que considerem e mitiguem os vieses de sexo e gênero em suas pesquisas”. Pouco depois, Schiebinger lançou um olhar ao público e perguntou: “Onde estão os homens?” “Não podemos continuar pensando que o feminismo é coisa das mulheres. Os estudos de gênero não são uma matéria extracurricular, nem um departamento acadêmico isolado. As pesquisas científicas que não levam em conta estas observações cobram a saúde e a vida de milhares de mulheres”. É preciso aumentar o número de mulheres nas ciências, sim, mas é necessária uma revolução epistemológica que defenda “biologia sim, feminismo também”.
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Mulheres e ciências. “Biologia sim, feminismo também” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU