10 Outubro 2017
“A soberania é um mito, que todos podemos utilizar, que possui diferentes consequências, em diferentes momentos do sistema-mundo. Nosso julgamento moral depende da totalidade das consequências e não do mito da soberania. Quando Trump utiliza o termo, tem implicações reacionárias. Quando outros o utilizam, pode ter implicações progressistas. O termo em si não nos diz nada”, escreve o sociólogo estadunidense Immanuel Wallerstein, em artigo publicado por La Jornada, 08-10-2017. A tradução é do Cepat.
Donald Trump ocupou muito de seu discurso nas Nações Unidas para afirmar que foi eleito para defender a soberania estadunidense. Disse que todos e cada um dos Estados membros também buscavam defender sua própria soberania. O que quis dizer com isto? Talvez não exista nenhuma outra palavra no vocabulário público comum de dirigentes políticos e analistas acadêmicos que tenha tantos significados e usos em conflito como soberania. A única outra que se aproxima em confusão é liberalismo. Portanto, é útil que rastreemos um pouco da história do termo.
O termo não aparece antes da criação do moderno sistema-mundo no longo século XVI. Esta foi a época quando as cabeças de certos Estados (notavelmente, Inglaterra, França e Espanha) proclamaram a doutrina das monarquias absolutas. Insistiam em que o monarca era absolvido dos desafios de qualquer pessoa ou instituição. Isto, claro, era uma reivindicação, não a descrição de uma realidade.
O que estes monarcas tentavam estabelecer era a soberania de seus Estados. Soberania para eles significava que nenhum poder exterior a seu Estado tinha o direito de interferir nas decisões de seu Estado. Também queria dizer que nenhum poder no interior do Estado podia falhar na responsabilidade de realizar as decisões do Estado. A dupla orientação (externa e interna) era crucial ao conceito.
É óbvio que simplesmente afirmar a soberania não foi suficiente. O Estado tinha que implementar estas reivindicações. Nenhum Estado era então, e nunca foi, plenamente soberano, nem sequer o mais poderoso. Contudo, os Estados mais fortes se fizeram e fazem isto melhor que os menos poderosos.
Quando dizemos de alguns Estados que são hegemônicos no moderno sistema-mundo, na realidade queremos dizer que podem interferir, de fato, nos assuntos internos de outros Estados. E, com efeito, conseguem manter sua unidade interna. Não enfrentam resistências institucionais significativas, e muito menos movimentos secessionistas.
Os Estados Unidos foram um poder hegemônico mais ou menos entre 1945 e 1970. Impôs seu modo no sistema-mundo 95% do tempo, em 95% dos assuntos. Outro termo para descrever isto é chamar os Estados Unidos de imperialista. Imperialista é um termo negativo e uma potência hegemônica pode conseguir, em grande medida, proibir sua utilização.
Conforme declina a hegemonia, o imperialismo como termo começa a ser utilizado mais amplamente. O mesmo ocorre com a soberania. Os países menos poderosos afirmam seus direitos como poderes soberanos para lutar contra os poderes imperiais. Assim, Trump estava correto, no sentido de que muitos, talvez a maioria dos membros da Nações Unidas hoje, defendem publicamente sua soberania.
Quando Trump afirma a soberania estadunidense, isto é sinal de fraqueza. É precisamente porque os Estados Unidos são uma hegemonia em decadência aguda, que precisam recorrer à utilização do mito da soberania e rejeitar a ideia de que as instituições supranacionais podem ter algo a dizer a respeito das políticas estadunidenses. Quando um Estado báltico afirma sua soberania, está demandando apoio contra o que considera que é a reafirmação da Rússia de sua própria autoridade. E quando a China afirma sua soberania, busca expandir seu poder de tomada de decisões para novas áreas.
Os movimentos secessionistas nos forçam a confrontar a utilização do termo. A Catalunha celebra um referendo sobre seu direito à independência soberana. Espanha diz que tal referendo viola a soberania espanhola. Na situação de reivindicações diretamente opostas, cada um deve decidir qual reivindicação é mais legítima. Algumas vezes, isto pode se resolver sem violência.
Este é o caso, por exemplo, de quando a Eslováquia se separou da Checoslováquia. E algumas vezes há guerra civil. Contudo, dado que qualquer secessão jamais elimina todas as diferenças nas subcategorias no interior de um Estado, o direito à secessão deve cessar em alguma parte.
O ponto que quero enfatizar é que a soberania é um mito, que todos podemos utilizar, que possui diferentes consequências, em diferentes momentos do sistema-mundo. Nosso julgamento moral depende da totalidade das consequências e não do mito da soberania. Quando Trump utiliza o termo, tem implicações reacionárias. Quando outros o utilizam, pode ter implicações progressistas. O termo em si não nos diz nada.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O mito da soberania. Artigo de Immanuel Wallerstein - Instituto Humanitas Unisinos - IHU