24 Agosto 2017
Nesta entrevista, Juan Grabois, o líder da CTEP (Central de Trabalhadores da Economia Popular) argentina fala sobre as ideias políticas do Papa Francisco. (Juan Grabois é membro da Pontifícia Comissão Justiça e Paz do Vaticano, nomeado por Papa Francisco e participou da organização dos três encontros de movimentos populares igualmente promovidos pelo papa Bergoglio - Nota de IHU On-Line).
A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 20-08-2017. A tradução é de André Langer.
Há uma frase que para mim é muito pedagógica que é: pátria é a infância. Certa vez Macri me disse: “mas a Cristina Kirchner tem mais dinheiro do que eu”. Eu lhe respondi: “mas ela não nasceu rica; ela é filha de um motorista de ônibus”. E a verdadeira pátria que uma pessoa tem é a infância, não se esqueça mais disso. Ou seja, você está repisando que por mais que se entre em contato com essa realidade, se não passou por isso, se nunca teve fome, não vai entender o que é não ter fome.
Não, eu penso que a injustiça não é entendida somente por quem a sofre, mas também por quem a compreende e tem um compromisso... uma opção preferencial, como diríamos em termos teológicos, uma opção preferencial, sua prioridade...
Vamos ver; explique em termos teológicos a questão da opção preferencial.
A questão da opção preferencial pelos pobres que é Deus ama a todos, mas há uma opção preferencial. Ou seja, há uma prioridade, há algo que precisa ser prioritário. Não há nada mais importante que resolver o problema da pobreza e do trabalho, sobretudo para as futuras gerações e se uma pessoa entra na abstração de: “bom, eu vou resolver o problema porque na realidade vou gerar um marco de segurança jurídica que vai atrair investimentos, então vai aumentar o mercado de trabalho e dentro de alguns anos todos estarão empregados”, está totalmente louco; isso não vai acontecer. Além disso, todos estes anos em que as crianças não se alimentaram corretamente, não tiveram os nutrientes necessários, sem as proteínas, o que vai acontecer com elas?
Deixa-me traduzir a opção preferencial, transformá-la em um valor econômico, para tirá-la da questão das ciências sociais e ver se podemos transmutá-la a algo do ponto de vista das ciências exatas. Há uma palavra que você sempre menciona e que me parece que vem ao encontro disso que é urgência. Ou seja, há na infância questões que se não forem atendidas agora, nunca vão gerar valor econômico no futuro, ou seja, que há uma questão de... há investimentos que são urgentes e outros que não têm esse nível de prioridade. Ou seja, a prioridade à qual você se referia era isso, isto é, o pobre tem uma vida, um corpo que, por exemplo, se não tem cuidados médicos ou se não tem alimentação, não há como reparar isso depois.
É verdade.
Ou seja, a palavra é urgência, a prioridade é a urgência na pobreza, porque a pobreza é algo que não pode ser reparado mais tarde.
É verdade. Por isso, é imperdoável, por exemplo – imperdoável é uma palavra dura –, mas você sabe que houve três meses em que o Desenvolvimento Social não distribuiu leite, porque um senhor teve problemas com uma licitação e esse senhor, como não queria ficar mal, não fez uma compra direta. Extraordinário, então durante três meses as crianças não tomaram leite. Para mim isso é uma atitude criminosa, tão criminosa ou pior que a de qualquer um dos corruptos. Bem, não houve nenhuma punição administrativa, nem repreensão. Isso é insensibilidade, isso demonstra um elevado grau de insensibilidade.
Mas é interessante o que você levanta, ou seja, você está dizendo que é pior do que a corrupção.
Pelo menos tem o mesmo grau de gravidade. Eu nem mesmo falo... da perspectiva das suas consequências é...
Sim, em sua consequência é pior que a corrupção.
É pior que o corrupto, é um ato criminoso, é um ato criminoso.
Ou seja, vou usar a terminologia da rua, é pior um estúpido que um filho da puta com poder.
Em alguns casos sim, depende do estúpido, depende do filho da puta, mas este é um estúpido filho da puta, é as duas coisas, porque há crueldade nisso, em priorizar seu próprio prestígio em detrimento da situação alimentar de centenas de milhares de crianças. Há certa crueldade em apertar uma tecla do Excel e excluir a pensão de pessoas que não deveriam ter sido excluídas.
Quando você dizia que o problema da pobreza é um problema de distribuição, não de corrupção, alguns economistas e filósofos, de fato Adam Smith era filósofo, concordariam com você. Mas se considerarmos as gerações futuras, é importante que haja um crescimento da produção, e para que haja um crescimento da produção e não somente que a atual sociedade viva melhor – que se nós cristalizamos e dissemos, distribuímos toda a renda que há hoje e todo o mundo deixaria de ter problemas alimentares, por exemplo, ou falta de água na África – no futuro não estariam sendo inventadas as coisas que foram inventadas e que permitem que hoje todos, até os mais pobres, vivam melhor que há 100 anos, vivam o dobro de anos que há 100 anos e que a base disso é o egoísmo. Isso é uma perspectiva de que o egoísmo individual vai produzir o bem comum. O que acha dessa visão de desenvolvimento humano?
Eu penso que era uma visão aceitável, também, antes, que no século XXI há algumas questões que evidenciam que essa visão não se sustenta mais, que esse egoísmo orientado à maximização dos lucros, orientado a que mais ou menos tudo vale, na medida que se consiga determinados níveis de produtividade, está esgotando os limites físicos da terra, que é uma coisa que o Papa Francisco não disse desde uma perspectiva mágica; há evidências científicas sólidas a este respeito. Então, já estamos entrando em uma espécie de novo obscurantismo, onde as evidências científicas mais conclusivas são descartadas, porque não são funcionais a um sistema de maximização dos lucros. Então...
Perdoe-me.
Sim.
Malthus, no século XVIII, dizia a mesma coisa que o Papa e se equivocou enormemente. Muitas outras vezes já se disse que estamos esgotando todas as nossas capacidades. A tese de Malthus era que se a população cresce mais rápido que o aumento da produtividade haverá fome, e o que a técnica demonstrou é que as nossas capacidades de produzir, por exemplo, alimentos são muito maiores que o aumento da taxa de natalidade.
Sim, a grande diferença é que Malthus não se... Observe que é importante porque tem muito a ver com isto que estamos falando. Malthus falava de superpopulação e Marx faz uma crítica a Malthus no capítulo 21 de O Capital que diz: “a superpopulação sempre é relativa, sempre é relativa a algo, às necessidades...”.
Muito ou pouco sempre é relativo a algo, recursos, por exemplo.
Exatamente. Então, bem, superpopulação em relação a quê? À terra ou às necessidades do capital? Então desenvolve o conceito de superpopulação relativa. Cada modo de produção tem uma superpopulação relativa às suas necessidades. Essa superpopulação relativa no século XIX era o exército industrial de reserva que você dizia, era funcional. No século XXI é uma massa marginal, é uma massa sem funcionalidade para os interesses do capital. Agora, isso é do ponto de vista populacional, mas os limites que hoje aparecem, os limites físicos têm a ver com questões climáticas, tem a ver com a incidência das emissões de dióxido de carbono na mudança climática no aquecimento global e há consenso sólido na ciência de que isso vai provocar uma quantidade significativa de catástrofes...
Você tem razão. Agora, veja isso Juan, a ciência também, ou seja, digamos a ciência, a epistemologia também mostra dados duros, assim como você falava do aquecimento global, dados duros, de que a taxa de natalidade no mundo vem baixando ano após ano, que nos países desenvolvidos já é negativa, nos país em vias de desenvolvimento está baixando. Estima-se que em 2050 a população vai se estabilizar. Isso mudaria radicalmente esta situação porque faz... digamos, a população vem se duplicando a cada 50 anos, então esta questão que você está destacando é, na realidade, que o capitalismo está sofrendo o problema do seu êxito de produção de recursos que faz com que as pessoas vivam mais, aumente a população em maior proporção, não haja fomes gigantescas como havia no século XIX, não há guerras mundiais como havia no século XX, por conseguinte a população cresce mais que as necessidades de crescimento de produção, seguindo o tema de Marx.
Exatamente.
Mas isso que aconteceu no século XX, isto é, no século XX, apenas no século XX a população foi multiplicada por cinco, ou seja, houve uma espiral geométrica do aumento da população, deixa de acontecer dentro de 20 ou 30 anos. Nesse contexto, não acredita que este problema do descarte vai desaparecer porque a sociedade e o capitalismo vão encontrar uma forma para que essa gente se integre a algum tipo de trabalho produtivo, embora não seja do ponto de vista econômico, mas produtivo socialmente?
É que por sua própria natureza o capitalismo não o... Digamos que não está em sua natureza, porque a natureza do capitalismo é a maximização do lucro, impulsionada pelo egoísmo, como você coloca, que em algum momento teve uma funcionalidade no desenvolvimento técnico, etc. Qual seria o sentido, salvo resguardar a paz social? Bom, se o sentido é resguardar a paz social...
E é um valor econômico.
Se o sentido é resguardar a paz social...
Ou seja, que haja solidariedade por egoísmo...
Se há solidariedade por egoísmo...
Seguindo, porque se não vêm e roubam de mim.
Isso implica níveis de governança, como dizem por aí, que hoje não existem.
Não, mas estávamos falando de projeção para o futuro, digo...
Mas é um problema político.
Como você imagina a CETP dentro de 50 anos ou você imagina que a sociedade terá conseguido integrar esses trabalhadores?
Veja, nós dizemos que a economia popular é uma realidade de subsistência, assim começa, é uma realidade de subsistência, o lixo...
E que o que você se coloca é que eu vejo como vivem crianças de quatro ou cinco anos; portanto, suponho que esta criança será improdutiva, mesmo dentro de 30 anos. Por isso, acredito que isso vai durar várias décadas. Minha pergunta é: isso tem solução?
Sim. Qual é a nossa perspectiva? Nós nos defrontamos com uma realidade de subsistência, começamos a nos organizar e começamos a trilhar um caminho, que tem a ver com uma espécie de resistência a essa miséria que o sistema proporciona hoje, mas esse caminho tem uma perspectiva e essa perspectiva é a perspectiva de que esta economia popular, com um nível elevado de autogestão comunitária, seja verdadeiramente reconhecida como um valor em si mesmo, que não permite garantir apenas a paz e a estabilidade social, mas também o desenvolvimento mais integral e que isso, ao nível político, seja reconhecido quase como um direito, como o direito de propriedade.
Mas não imagina que dentro de 50 anos seja assim?
Mas para isso é preciso domar o capital, e hoje parece bastante...
Ou mais que domar o capital, que o capital tome consciência de que é um bom negócio em determinados... em seus próprios termos, encontrar um ecossistema que lhe dê estabilidade.
Se o capital tivesse nome e sobrenome e eu pudesse falar com o senhor Capital, eu penso que o convenceria; o problema é que são muitos e cada um está fazendo seu negócio.
Você não acha que possivelmente o erro desta concepção que o Papa encarna e expressa nos dados e comete o mesmo erro de Marx, que é esquecer-se de que o egoísmo do ser humano, que, conjuntamente com a solidariedade, o ser humano também é movido pelo egoísmo e que na realidade é preciso trabalhar com o egoísmo também, não apenas com a solidariedade para conseguir o bem comum? Pergunto-me e a proponho a você... Eu também me faço essa pergunta.
Olha, não sei. Eu penso que há uma coisa, meio espiritual, de que o bem-estar material não pode ser o único objetivo da existência, que poderíamos ser todos um pouco mais pobres e seríamos mais felizes se fôssemos melhores, se fôssemos mais solidários e vivêssemos mais comunitariamente.
A pergunta é se não há utopia...
Não, e mas...
E, finalmente, o erro de Marx é partir da ideia de que se pode domar, se quiser, esse egoísmo, ao passo que o êxito do capitalismo é que trabalha com um componente negativo que, como o judô, procurou usá-lo em um sentido positivo. Por isso me perguntava, como você se imagina...? Você tem 30 e...?
Quatro.
Trinta e quatro anos. A média de vida hoje já está perto dos 90. Seguramente, quando você tiver 90 anos estará em 100. Como você se imagina dentro de 50 anos? Como imagina o mundo que você terá dentro de 50 anos?
Ou como essas distopias pós-apocalípticas ou...
Se você tiver êxito, o mundo tem êxito.
Não, todos os meus companheiros na Argentina e em qualquer outro lugar do mundo com uma ocupação produtiva do ponto de vista humano, organizada comunitariamente em grupos relativamente pequenos e a produção propriamente dita com um nível muito mais elevado de mecanização do que tem hoje.
Mas, concretamente, sem pobreza?
Sem pobreza.
Por isso, você é otimista quanto ao futuro da humanidade se vai resolver o problema da pobreza, e que vocês estão construindo uma ponte para um futuro onde este problema estará resolvido.
É um problema de consciência da humanidade, sobretudo dos poderosos. Sim, estou convencido disso.
Mas você presume que vai mudar porque...
Eu estou convencido de que vai mudar.
O que você quer não é uma muleta eterna.
Não, não, isto vai mudar. Eu não tenho a menor dúvida de que vai mudar, porque senão ninguém vai poder viver e isso não é uma teoria...
Ou seja, que finalmente a tarefa de vocês é uma tarefa que pretende conscientizar um problema, fazer a reivindicação para que a situação mude e acompanhar o processo de passagem para uma humanidade onde a pobreza não vai ser um problema.
Exatamente, e construir a força que vai poder levar adiante essa mudança, porque essa mudança precisa ser levada adiante por uma força social e nós estamos procurando construir essa força social.
O sucesso de vocês consistiria em que vocês não fossem mais necessários.
Exatamente, o nosso êxito levaria à dissolução da nossa organização.
Como na teoria do marxismo, o desaparecimento do Estado.
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Juan Grabois explica a “ideologia” do Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU