10 Dezembro 2016
O jornal Corriere della Sera, 09-12-2016, publicou uma antecipação da ampla entrevista (22 páginas) feita pelo padre Antonio Spadaro, diretor da revista La Civiltà Cattolica, com o diretor Martin Scorsese, na sua casa de Nova York. Nos Estados Unidos, está prestes a estrear Silence, o filme que o cineasta adaptou do livro homônimo de Shusako Endo, que narra o martírio dos missionários jesuítas no Japão budista do século XVII.
A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eu toco a campainha da casa dos Scorsese em Nova York. É um dia frio, mas luminoso. Sou recebido na cozinha, como em família. A pessoa que me faz entrar me pergunta se eu quero um bom café. “Italiano”, especifica. Eu aceito. Martin chega com o passo acelerado e com o sorriso acolhedor.
A nossa conversa, antes de passar para o filme, se detém sobre as nossas raízes comuns. Somos, de certa forma, “compadres”. Ele já sabe que eu sou de Messina. Ele me diz que é de Polizzi Generosa. Ou, melhor, o seu pai era de lá. Mas, para ele, está claro que as suas raízes estão lá. A Polizzi Generosa de Giuseppe Antonio Borgese e do cardeal Mariano Rampolla del Tindaro.
Mas não recordamos esses compatriotas ilustres. Recordamos, ao contrário, a sua vida como filho de imigrante nos bairros de Nova York, a sua vida como coroinha. Saiu daí uma mistura de laços de sangue, violência e sagrado. As recordações como coroinha na igreja se fundem com os do menininho que, inconscientemente, faz da estrada o seu primeiro set cinematográfico: o da sua imaginação e dos seus sonhos.
* * *
Como lhe veio à mente o projeto de Silence? Eu sei que é uma paixão sua, que você o tinha em mente há tempos, talvez há 20 ou 30 anos...
O romance de Shusako Endo me foi dado em 1988. Eu terminei de lê-lo em agosto de 1989, no trem-bala de Tóquio a Kyoto, onde terminei de filmar a parte de Van Gogh em “Sonhos de Akira Kurosawa”. Eu não saberia se, naquele momento, eu estava ou não efetivamente interessado em fazer dele um filme. A história era tão inquietante, tocava cordas minhas tão profundas que eu não sabia nem se poderia fazer uma tentativa de enfrentá-la. Mas, com o passar do tempo, algo em mim começou a dizer: “Você deve tentar”. Adquirimos os direitos perto de 1990-1991. Se eu olho para trás, penso que esse longo processo de gestação se tornou um modo de viver com a história e de viver a vida – a minha vida – ao redor dela. Ao redor das ideias que estavam no livro. E, a partir dessas ideias, eu fui provocado a pensar mais sobre a questão da fé. Eu olho para trás e vejo que tudo na minha memória se reúne como em uma espécie de peregrinação: foi assim. Estou surpreso por ter recebido a graça de ser capaz de fazer o filme agora, neste ponto da minha vida.
Esse seu filme, a escolha de um romance como Silence, parece se colocar no leito do imaginário católico. É um filme “à la Bernanos”?
Para mim, tudo se resume à questão da graça. A graça é algo que acontece ao longo da vida. Ela vem quando você não a espera. Eu entrei em sintonia com o romance de Endo, que era japonês, de um modo que nunca tinha me acontecido com Bernanos. Em Bernanos, há algo muito duro, inexoravelmente áspero. Ao contrário, em Endo, a ternura e a compaixão estão sempre presentes. Sempre. Mesmo quando os personagens não sabem que a ternura e a compaixão estão lá, nós sabemos.
Quem é Deus para você?
Como muitas crianças, eu era oprimido e estava profundamente impressionado com o lado severo de Deus que nos havia sido apresentado: o Deus que pune você quando você faz algo ruim, o Deus “raios e trovões”. É aquele que Joyce traçava em “Retrato do artista quando jovem”, uma obra que teve um profundo efeito sobre mim. É claro, no país, era um momento dramático. Estava crescendo o caso do Vietnã, e essa tinha acabado de ser declarada uma “guerra santa”. E, portanto, em mim, assim como em muitos outros, havia muita confusão. Dúvida e tristeza eram parte da realidade da vida cotidiana. Foi naqueles tempos que eu vi o filme de Bresson, “Diário de um pároco de aldeia”, e me deu esperança. Cada personagem daquele filme, talvez com exceção do velho padre, sentia sofrimento. Cada personagem se sente punido, e a maioria deles se infligem punições uns aos outros. Em certo ponto, o padre tem um diálogo com uma das suas paroquianas e lhe diz: “Deus não é um carnífice. Ele quer que tenhamos piedade de nós mesmos”. Isso para mim foi uma espécie de revelação. Eu encontrei Bresson uma vez em Paris e pude lhe dizer o que o seu filme tinha significado para mim.
O Pe. Rodrigues e o Pe. Ferreira são dois lados da mesma moeda ou são duas moedas diferentes, incomparáveis?
Não sabemos em que o Pe. Ferreira histórico acreditou ou não, mas, no romance de Endo, parece que ele perdeu a fé. Talvez outro modo de ver as coisas é que ele não conseguia superar a vergonha de ter renunciado à própria fé, mesmo que tenha feito isso para salvar vidas humanas. Rodrigues, por outro lado, é alguém que renega a sua fé e, mais tarde, a readquire. Esse é o paradoxo. Em termos simples, Rodrigues ouve Jesus que fala com ele, Ferreira não, e essa é a diferença.
Silence parece ser a história de uma íntima descoberta do rosto de Cristo... Qual é o rosto de Cristo para você?
Eu escolhi o rosto de Cristo pintado por El Greco, porque pensei que era mais compassivo do que aquele pintado por Piero della Francesca. Na minha juventude, enquanto eu crescia, para mim, o rosto de Cristo era sempre um conforto e uma alegria.
Deixando de lado “A última tentação de Cristo”, de acordo com você, qual filme na história do cinema retrata melhor o verdadeiro rosto de Cristo?
O melhor filme sobre Cristo, para mim, é “O Evangelho segundo Mateus”, de Pasolini. Quando eu era jovem, queria fazer uma versão contemporânea da história de Cristo ambientada nas casas populares e pelas ruas do centro de Nova York. Mas, quando vi o filme de Pasolini, entendi que esse filme já havia sido feito.
Houve uma situação em que você sentiu Deus próximo, embora em silêncio?
Quando eu era jovem e servia nas missas, não havia qualquer dúvida de que eu sentia um sentido do sagrado. Tentei transmiti-lo em Silence, durante a cena da missa na casa colonial em Goto. De todos os modos, eu me lembro de que eu saía depois do fim da missa e me perguntava: como é possível que a vida siga em frente como se nada tivesse acontecido? Por que o mundo não é sacudido pelo corpo e pelo sangue de Cristo? É esse o modo pelo qual eu experimentei a presença de Deus quando eu era muito jovem.
Na história de Silence, há muita violência física e psicológica. O que ela representa?
Eu sou obcecado pelo espiritual. Sou obcecado pela pergunta sobre o que somos. E isso significa nos olhar de perto, olhar para o bem e para o mal em nós. Podemos alimentar o bem de modo que, em um certo ponto futuro, na evolução do gênero humano, a violência, talvez, cesse de existir? No entanto, por enquanto, a violência é aqui. É algo que fazemos. Mostrar isso é importante. Assim, não se comete o erro de pensar que a violência é algo que os outros fazem, que “as pessoas violentas” fazem. “Obviamente, eu nunca poderia fazer isso.” E não, ao contrário, na verdade, você poderia. Não podemos negar isso. Portanto, há pessoas que ficam abaladas pela sua própria violência ou que se entusiasmam com ela. No início dos anos 1970, estávamos saindo da era do Vietnã, e era o fim dos faustos da antiga Hollywood. “Bonnie e Clyde: uma rajada de balas” e, depois, ainda mais, “Meu ódio será tua herança”, foram uma revelação. Esses filmes nos falaram não necessariamente de um modo agradável.
Para você, fazer um filme é como pintar um quadro. A fotografia, as imagens... como elas conseguem nos fazer ver o espírito?
Cria-se uma atmosfera através da imagem. Colocamo-nos em um ambiente em que se pode sentir a alteridade. E são essas as imagens, as ideias e as emoções que são obtidas a partir do cinema. Há certas coisas intangíveis que as palavras simplesmente não podem expressar. No cinema, quando se monta uma imagem junto com outra, na mente, obtém-se uma terceira imagem diferente: uma sensação, uma ideia. Eu acho que o ambiente que se cria é uma coisa, e isso diz respeito à fotografia. Mas é na conjunção das imagens que o filme nos captura e nos fala. É a edição, e é a ação de fazer cinema.
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"Eu, ex-coroinha em Nova York e diretor de um filme esperado pela vida inteira." Entrevista com Martin Scorsese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU