28 Novembro 2016
Paolo Ricca repete há algum tempo: o ecumenismo não é uma questão de etiqueta entre as Igrejas. “E o modo como nos preparamos para recordar o quinto centenário da Reforma demonstra isso da melhor maneira”, acrescenta.
A reportagem é de Alessandro Zaccuri, publicada no jornal Avvenire, 26-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Teólogo valdense, sempre atento ao diálogo com o catolicismo e autor de inúmeros estudos sobre a história do cristianismo na idade moderna, Ricca olha com muito interesse para as novidades que estão surgindo neste período, entre a viagem do Papa Francisco à Suécia nas últimas semanas e a já iminente recorrência de 2017, que marca o meio milênio exato desde a publicação das 95 teses sobre as indulgências por parte de Martinho Lutero.
“No passado – lembra Ricca – esse tipo de celebração era um fato bastante solitário, em que estavam envolvidos apenas os filhos da Reforma. Agora, há uma coralidade concreta, que reúne protestantes e católicos no reconhecimento do caráter substancialmente positivo da reviravolta ocorrida no século XVI dentro da cristandade. Eu considero isso um passo decisivo, embora o caminho ainda seja longo.”
O que falta, na sua opinião?
Eu partiria daquilo que ganhamos, enquanto isso. Com o Concílio Vaticano II, em primeiro lugar, caiu a definição de “heréticos” anteriormente destinada aos protestantes. A partir de então, desenvolveu-se uma corrente de reflexões e aprofundamentos que trouxeram à tona novamente a correlação muito estreita entre a Reforma e a ação reformadora implementada pela Igreja Católica através do Concílio de Trento, que condenava Lutero, é claro, mas assumia muitas das suas reivindicações, mesmo que as reformulando de outra forma. A Reforma, no fim, não só criou um novo modelo de Igreja, mas também levou a um profundo repensamento da já existente.
Às custas de uma divisão, porém.
Hoje cada vez menos sentida. Não me entenda mal: as diferenças ainda existem, mas pesam muito menos do que no passado, graças também aos contatos pessoais entre os cristãos das várias confissões, graças ao costume amigável que encontra expressão particular na Semana de Oração pela Unidade. Os frutos mais significativos estão no plano espiritual, em uma espécie de mestiçagem que diz respeito, sim, à relação entre uma Igreja e outra, mas também ao modo pelo qual, em cada comunidade, se reza, se lê a Palavra de Deus, se estuda e se comenta. É um resultado importante, em relação ao qual não se poderá voltar atrás. Até porque não há nenhuma intenção de fazer isso, felizmente.
A valorização do batismo comum é o caminho a se continuar?
Em sentido absoluto, sim, embora haja aspectos delicados, que não devem ser subestimados. A questão do batismo dos recém-nascidos, levantada no século XVI pelo movimento anabatista, ainda não foi discutida nas suas implicações, que permanecem longe de ser irrelevantes. Se nos ativermos aos testemunhos mais antigos, damo-nos conta de que quem era batizado eram sempre adultos que, conscientes da própria fé, requeriam expressamente para se tornarem cristãos. O batismo dos recém-nascidos não responde a essa lógica e exigiria, no mínimo, um suplemento de reflexão compartilhada. O objetivo não é necessariamente o de acolher a tese anabatista, para a qual o batismo administrado aos infantes deve ser considerado nulo. O que deve ser esclarecido, no mínimo, são as implicações teológicas do batismo, também em relação à doutrina do pecado original.
Que outros elementos deveriam ser abordados, na sua opinião?
Sem dúvida, o que se refere à Ceia do Senhor. Como se sabe, a celebração da Eucaristia despertou diferenças e até mesmo divisões no próprio âmbito protestante. A posição de Lutero, neste caso, era totalmente antitética àquela expressa por Zwínglio, e a divergência não foi superada até 1973, ano em que foi assinada a Concórdia de Leuenberg entre luteranos e reformados.
Em que consiste, por fim, a contribuição de Lutero ao cristianismo?
No pleno reconhecimento do valor da liberdade humana e, ao mesmo tempo, na acolhida da Graça incondicional. Um tema, este último, que pode ser traduzido de muitos modos, incluindo o da misericórdia que caracterizou o Jubileu recém-concluído. Antes da Reforma, a pregação da Igreja insistia na noção de Graça condicionada, que, para ser acessada, eram necessárias formas de mediação mais ou menos articuladas. Com Lutero, Graça e liberdade se reencontram convergindo no solus Christus, em uma visão radicalmente cristocêntrica que também não tem nada de exclusivo ou, pior, de exclusivista. Mais simplesmente, afirmar a centralidade de Cristo significa reconhecer que, n’Ele, se encontra tudo o que é necessário para a nossa salvação.
E do ponto de vista histórico?
No fundo, Lutero sempre se manteve como um crente medieval, mas que captou, na sua história pessoal, os primeiros lampejos da modernidade. Acho muito tocantes, além de reveladoras, as palavras que lhe são atribuídas no seu leito de morte: “Somos mendicantes, isso é verdade”. É a oração do homem medieval, que busca a Deus com todo o seu ser, sem nunca deixar de invocá-Lo. Dito isso, deve-se admitir que, em Lutero, não faltaram as contradições, especialmente durante os anos 1530, quando o reformador invocou a intervenção da autoridade política para reprimir os anabatistas e para pôr fim à Guerra dos Camponeses. São escolhas que marcam um ponto crítico e que, hoje, podemos tentar explicar em sede histórica, contanto que não se queira medir o século XVI com base na nossa contemporaneidade. No entanto, apesar de tudo, é inegável que Lutero inseriu na consciência moderna a mina da liberdade do cristão, que se constitui como sujeito do Evangelho como objeto da Graça.
Mas Lutero tinha levado em consideração o cisma?
As suas intenções iniciam iam na direção de uma emenda da doutrina sobre as indulgências: a revolução do quadro eclesial absolutamente não estava prevista nem era desejada. Talvez, se o Papa Leão X tivesse lido o “Tratado sobre a liberdade do cristão” que Lutero tinha lhe dedicado devotamente, os eventos teriam tomado outro curso. Foi a excomunhão, infelizmente, que determinou o surgimento de um movimento autônomo e alternativo à Igreja de Roma.
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"A Reforma fez bem para a Igreja." Entrevista com Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU