15 Novembro 2016
"A esquerda perdeu porque o PT foi pego levando dinheiro do cartel de empreiteiras que roubava a Petrobras; e porque implementou, no primeiro mandato de Dilma, uma política econômica que fracassou. Daí em diante, os adversários jogaram com todos os recursos de poder de que dispunham para derrubar o governo, como é da natureza das coisas que aconteça. Reclamar disso é como reclamar da chuva", escreve Celso Rocha de Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 13-11-2016.
Eis o artigo.
Não contente em sofrer impeachment e ver grande parte de suas lideranças acusadas de corrupção, a esquerda brasileira aproveitou o embalo e tomou uma surra na eleição para prefeito.
O PT se tornou um partido médio, ninguém conseguiu ocupar seu espaço, e mesmo siglas de esquerda que nunca aceitaram cargos nos governos petistas, como o PSOL, sofreram com a ressaca do fracasso da Nova Matriz Econômica e com a ascensão de ideias direitistas que se seguiu a ela.
O antipetismo se tornou condição necessária e suficiente de sucesso: a banda direita do petrolão, PP e PMDB, sairá de 2016 com mais poder do que entrou. PSDB e demais partidos de oposição ao PT foram recompensados por sê-lo, mesmo depois de citados na Lava Jato. Qualquer coisa não petista viu sua cotação subir, inclusive coisas que a direita adulta provavelmente preferisse que não crescessem.
A esquerda perdeu porque o PT foi pego levando dinheiro do cartel de empreiteiras que roubava a Petrobras; e porque implementou, no primeiro mandato de Dilma, uma política econômica que fracassou. Daí em diante, os adversários jogaram com todos os recursos de poder de que dispunham para derrubar o governo, como é da natureza das coisas que aconteça. Reclamar disso é como reclamar da chuva.
Houve também azar: não existia nada na natureza das coisas que exigisse que a Lava Jato, a ressaca da Nova Matriz Econômica e a queda dos preços das commodities acontecessem ao mesmo tempo. Mas, novamente, quem aceitou correr esse risco foi quem não quis realizar o ajuste quando as coisas iam bem.
O que fazer de agora em diante? As perspectivas de médio prazo para a esquerda não são ruins. A Lava Jato vai bater nos partidos de direita como bateu no PT. Por mais que a cobertura seja menor e a anistia provável, a vantagem da direita sobre a esquerda deve diminuir. O ajuste fiscal é impopular. Não parece provável que o PT afaste os dirigentes acusados de corrupção, mas vários deles devem ir aos poucos perdendo espaço quando sua inviabilidade eleitoral se tornar evidente. A renovação de quadros facilitará muito a reconstituição da esquerda nos próximos anos.
Mas o que deve ser essa esquerda reconstruída, e o que ela deve propor? Qual deve ser a nova casa da esquerda? O PT já não é muito maior do que os outros partidos progressistas, mas nenhuma outra sigla chegou perto do tamanho que ele já teve. No momento, a liderança da esquerda está inteiramente em disputa.
Nos últimos meses, ganharam impulso duas propostas baseadas em experiências internacionais: a formação de uma frente de partidos de esquerda e a realização de prévias independentes para escolher os candidatos de 2018.
A proposta de uma frente de esquerda foi defendida recentemente por Lula e por Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão. Em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", Dino sugeriu uma frente que "consiga atrair o chamado centro político". O modelo evidente da proposta da Frente de Esquerda é o Frente Amplio (FA) uruguaio, uma reunião de grupos de esquerda e centro-esquerda (socialistas, democratas-cristãos, comunistas e outros menores) que governa o Uruguai já há alguns anos. É o partido de Pepe Mujica e Tabaré Vázquez, e vem conseguindo resultados eleitorais muito expressivos.
Francisco Panizza, da London School of Economics, considera válida a ideia de organizar algo como o FA no Brasil, mas admite que suas chances de sucesso seriam incertas: o FA baseia-se na experiência histórica do Uruguai, bem como na legislação eleitoral do país, que torna a organização de frentes partidárias mais fácil.
Nas últimas semanas, também ganhou impulso um movimento pela realização de prévias independentes, por fora dos partidos de esquerda (sem que eles sejam impedidos de participar), com o objetivo de escolher candidatos para as próximas eleições.
O movimento Quero Prévias! tem o apoio de intelectuais como Marcos Nobre e Laura Carvalho, e se inspira em iniciativas como o francês Notre Primaire e o chileno Primeras Primarias Ciudadanas. O Frente Amplio também é citado como exemplo, embora pareça um caso de maior institucionalização do que os proponentes das prévias têm em mente. De qualquer forma, que tanto as prévias quanto a frente usem o mesmo movimento como exemplo sugere que as duas alternativas podem conversar.
Um dos temas centrais do Notre Primaire francês, apoiado por intelectuais como Thomas Piketty e Daniel Cohn-Bendit, parece pertinente no caso brasileiro: o medo de que a divisão da esquerda leve a um segundo turno sem a esquerda nas próximas eleições presidenciais francesas (nesse cenário, o embate seria entre direita e extrema-direita). No documento que fez o apelo pelas prévias, os organizadores citam como justificativas para a proposta os altos índices de abstenção, a virada da sociedade para a direita e a imobilidade diante das desigualdades sociais: todos são temas familiares à esquerda brasileira.
A experiência francesa mostra que a realização do projeto é difícil: a organização do movimento desistiu de organizar as prévias, alegando desentendimentos com os partidos Comunista (que exigiu que o socialista François Hollande não participasse do processo) e Socialista (que agendou um grande evento para o mesmo dia em que seriam convocadas as prévias). Não se deve descartar a iniciativa por esse fracasso: talvez a própria fraqueza dos partidos brasileiros em tempos de Lava Jato lhes ofereça incentivos para participar de discussões fora de suas fronteiras.
Não sabemos se as prévias ou a proposta da frente de esquerda prosperarão. E ninguém, é claro, deve subestimar o peso que terão nesse processo as diferenças de poder entre os participantes e as estratégias de cada político.
Mas, de qualquer forma, tanto as prévias quanto a frente teriam uma função ainda mais importante do que a de escolher candidatos: reativar o debate de ideias dentro da esquerda brasileira, inteiramente travado durante os 13 anos de governo. As prévias seriam, supomos, um processo de debate, e uma frente de esquerda precisaria discutir um programa mínimo.
Discutir ideias poderia retroagir sobre as formas de organização da esquerda brasileira. Muitos partidos mantêm sua identidade em torno de ideias que precisam ser revistas ou abandonadas. Se as ideias de esquerda forem discutidas a sério, é possível que mais de uma fronteira partidária desabe, e a aproximação e recombinação entre militantes e movimentos se torne mais fácil. Se tiverem que desabar para que a esquerda se reorganize, que desabem.
Se vamos discutir ideias, um bom ponto de partida pode ser o artigo recente de Ruy Fausto na "Piauí" ("Reconstruir a Esquerda" (Nota da IHU On-Line: a íntegra do artigo pode ser lida aqui). As preocupações (e muitas das soluções) de Fausto são iguais às nossas. Em especial, concordamos que "se o discurso dominante da esquerda não mudar, perdemos hoje e perderemos sempre".
Fausto identifica três "figuras patológicas" na história da esquerda, que seria necessário exorcizar.
Uma delas, o adesismo, seria característica de partidos que perderam sua identidade se movendo demais para o centro (Fausto crê que é o caso do PSDB). A segunda é o totalitarismo –a simpatia por regimes ditatoriais brutais como o stalinismo e o maoismo. Finalmente, o populismo é a conjunção de líderes carismáticos/autoritários, clientelismo e um discurso de conciliação de classes.
É fácil perceber como algumas distinções políticas brasileiras ainda são baseadas nessas figuras patológicas. O exemplo mais óbvio é o PCdoB, um partido com bons quadros que, entretanto, defende regimes intoleráveis do passado e do presente. Por que desperdiçar lideranças estudantis, várias das quais muito talentosas, com a defesa do bolchevismo? Por que sobrecarregar Flávio Dino, que já precisa derrotar o clã Sarney, com a defesa do injustificável? Por que não se concentrar na defesa de objetivos razoáveis de redistribuição de renda no quadro da sociedade brasileira (em defesa dos quais, aliás, o PCdoB tem história)? Esse raciocínio se aplica também às defesas que PT ou PSOL fazem do regime cubano.
Para uma crítica da herança totalitária na esquerda brasileira, remetemos o leitor ao artigo de Fausto, confessando certo desânimo por essas ideias ainda circularem por aí para ser criticadas.
Só diremos isto: vira e mexe a esquerda flerta com o discurso segundo o qual o Estado de Direito é um instrumento de dominação ou uma mera ficção. Isso não ocorre por acaso. Ao escrever "A Questão Judaica", Marx afirma que o direito faz do homem um ser isolado: o fundamento da sociedade burguesa, a liberdade individual e, sobretudo, a propriedade privada, faz com que encontremos nos outros não a realização de nossa própria liberdade, mas sim sua limitação.
De forma quase premonitória, ainda em 1979, Claude Lefort afirma que isso é um enorme equívoco por parte de Marx (e, consequentemente, de muitos marxistas). A liberdade de opinião garantida na Declaração de Direitos de 1789, por exemplo, não cria uma cisão entre o indivíduo burguês e o resto da sociedade, mas, pelo contrário, assegura a circulação do pensamento, das palavras em contraposição ao poder.
Propomos, portanto, que, no contexto de reformulação da esquerda pós-impeachment, o PCdoB e tendências que, de alguma forma, reivindicam a herança bolchevique (trotskistas incluídos) revejam inteiramente seus programas de forma a eliminar qualquer traço de ideias totalitárias. PT, PSOL, e, em certa medida, PCdoB, por outro lado, precisam urgentemente se distanciar da defesa do regime cubano, assumindo postura de vigorosa defesa da instauração da democracia em Cuba.
É provável que a defesa de ideias totalitárias dentro da esquerda brasileira já não represente postura propriamente programática, mas um ritual, uma tradição que dá identidade a certos grupos. Tais rituais são parecidos o suficiente com ideias para atrapalhar a discussão programática. Devem ser criticados –e se, como resultado, os grupos precisarem ser reestruturados, que sejam. As novas discussões dentro da esquerda podem ser propícias a isso.
Se o risco de uma reversão geral da esquerda brasileira ao totalitarismo é mínimo, uma recaída populista é um risco real. Como diz Jan-Werner Müller em seu recém-lançado livro sobre o tema ("What is Populism?", University of Pennsylvania Press), o populismo floresce especialmente bem na crise de sistemas partidários. A dos partidos brasileiros é brutal e deve piorar com as delações em curso, por mais anistias que se aprovem.
Um dos sintomas da crise dos partidos é que a conversa na esquerda é cada vez mais sobre nomes: Lula, Ciro Gomes, Marina Silva. Esse personalismo tipicamente populista é algo a ser evitado. Qualquer um dos três candidatos pode ser um bom nome caso se apresente no espírito da esquerda democrática. Mas todos desperdiçarão seu potencial (e, no caso de Lula, seu legado) se concorrerem como populistas. A esquerda precisa de líderes que a ajudem a se reconstruir para o longo prazo. Vencer 2018 não é o essencial.
Vale perguntar: o PT, no poder, foi populista? Não no sentido forte. Fausto observa, corretamente, que, embora tenha havido carisma e clientelismo, faltou o autoritarismo para caracterizar o pertencimento ao clube populista. O PT manteve as instituições democráticas funcionando –e foi derrubado por elas. Não é difícil achar observadores de países de nível de renda semelhante ao brasileiro lamentando que algo como a Lava Jato não teria como acontecer por lá.
O cientista político Carlos Pereira já destacou que o que aconteceu no mensalão –a prisão de uma elite política enquanto ainda está no poder– é fato raríssimo na política mundial. Müller também não cita o lulismo como exemplo de populismo em seu estudo (reservando a caracterização para os "bolivarianos").
Por outro lado, é bem documentado, por exemplo no trabalho de André Singer, que o PT resgatou a retórica do populismo varguista quando ficou claro que o Brasil não se tornaria um grande ABC industrial. Em sua origem, o partido era radicalmente antipopulista, e sua proposta fundamental era a afirmação de uma identidade política singular para a classe trabalhadora (daí o nome da sigla).
Com o tempo, ideias e figuras retóricas do populismo foram usadas para mobilizar os pobres desorganizados que o sindicalismo não conseguia atingir. O retorno de Vargas na reversão da industrialização brasileira é um dos movimentos ideológicos mais interessantes dos últimos anos.
Não se sabe muito bem se essa retórica populista, afinal, foi bem-sucedida –ou se os pobres votaram no PT só porque suas vidas melhoraram muito em decorrência das políticas petistas (essa é a minha suspeita). A retórica populista no lulismo serviu mais como discurso sobre inclusão dos pobres; se paramos nesse ponto, é provavelmente inofensiva.
Da mesma forma, se a recuperação de Vargas parar no elogio às suas indiscutíveis medidas sociais inclusivas, não há o que protestar. Mas não é óbvio que pararemos aí. Como já dissemos, o momento atual oferece uma fortíssima tentação populista. A esquerda tem que se precaver contra sua própria pulsão e se preparar para combater o populismo que vem (e está vindo forte) pelo outro lado, especialmente depois do resultado da eleição americana.
A discussão recente nos documentos petistas é muito preocupante. Alguma radicalização era de se esperar no momento de mobilizar a militância contra o impeachment, mas a direção da conversa sugere fortemente que a discussão de ideias não está sendo conduzida pelas lideranças responsáveis.Houve teses no 5º Congresso do PT, em 2015, afirmando que faltou à legenda a mesma disposição para o enfrentamento que tiveram os governos da Venezuela e da Argentina. Muita gente no partido criticou o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo por não ter "controlado" a Polícia Federal. Em uma "autocrítica" recente particularmente picareta, petistas lamentaram não ter promovido oficiais do Exército fiéis ao partido.
Isto é, há gente no PT que acha que o que faltou ao partido nesses quase 14 anos foi populismo político. Como se essa falta não tivesse sido um dos méritos do período petista, que tantas outras culpas teve. Se a recusa do populismo tivesse se estendido à economia, não estaríamos onde estamos.
Enfim, propomos que, nas conversas suscitadas pelas prévias ou pela formação da frente, PT, PDT e demais partidos de esquerda eliminem o que houver de populismo em seus programas e reconheçam-se como forças social-democratas (que é o que foram sempre que funcionaram bem).
Se as fronteiras do PT estiverem ligadas demais ao culto a Lula, ou se as do PDT dependerem exclusivamente do culto a Brizola (ou a Ciro), que todas se dissolvam e deem lugar a recombinações de ideias.
Até aqui nossa concordância com as teses de Ruy Fausto é quase integral. A esquerda brasileira precisa se livrar dos resquícios de totalitarismo e populismo, e não reverter a velhos hábitos na hora da crise. Também estamos de acordo com diversas de suas posições sobre ambientalismo e combate à corrupção, e sobre como os governos petistas falharam por esses critérios.
Mas discordamos de um dos pontos centrais do programa que ele defende para a esquerda: o anticapitalismo. Na discussão de Fausto, o termo não se refere a nenhum dos movimentos anteriormente descritos como totalitários. É proposto como um horizonte a ser perseguido inteiramente dentro das regras do jogo democrático. Mas o que, de fato, seria o anticapitalismo?
Uma análise detida das propostas de Fausto sugere que, na verdade, trata-se de propor limites à acumulação de capital: impostos que restrinjam o quanto pode ser apropriado como riqueza pessoal pelos capitalistas, por exemplo, regulação do setor financeiro ou uma regulamentação ambiental rigorosa. Tudo isso é inteiramente realizável dentro do capitalismo democrático –e, aliás, só foi até hoje realizado dentro dele. Por que chamar isso de anticapitalismo?
O conceito traz ecos da história do marxismo que Fausto, como especialista na obra daquele, sabe evitar. Mas quem mais o saberá? Que trabalho analítico e político o conceito de anticapitalismo faz dentro do programa de Fausto que não poderia ser realizado pelas caixas de ferramentas de autores mais claramente identificados com o programa social-democrata, como Amartya Sen ou John Rawls?
O próprio Thomas Piketty propôs sua cartilha de redução de desigualdades dentro de um esquema teórico bastante ortodoxo. O programa de expansão da democracia apresentado por Fausto tem muitos pontos positivos, mas talvez sua própria natureza democrática fosse melhor afirmada sem a associação com experiências anticapitalistas anteriores.
Não estamos deslegitimando a discussão de propostas de transformação radical. É inteiramente procedente que se discutam alternativas ao capitalismo, desde que dentro da democracia. Se a condição for satisfeita, experiências alternativas poderão, se assim o desejarem os eleitores, ser testadas localmente e descartadas sempre que derem errado. Historicamente, foi assim que se deu a expansão do Estado de bem-estar social, o paradigma de intervenção da democracia sobre o capitalismo.
Propomos que, nas discussões no âmbito das prévias ou na formação da nova frente, o capitalismo seja aceito como algo a ser reformado, mantido dentro de certos limites, expulso de certas áreas da vida, mas digno de ser preservado e bem gerido até que alguém tenha uma ideia melhor.
Enfim, nos entusiasmam as propostas que têm potencial de produzir uma renovação da esquerda brasileira, como a frente de esquerda ou as prévias. Vale a pena tentá-las. Se não funcionar, que ao menos a discussão tenha servido para reembaralhar as identidades, que só devem ser preservadas na medida em que se mostrem à altura das tarefas dos próximos anos.
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É hora de rediscutir programas e ideias na esquerda brasileira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU