28 Outubro 2016
A tarefa da Igreja é o anúncio do Evangelho. A sua dimensão mundial e a credibilidade diplomática torna-a um vetor de paz. O poder "leve" do Vaticano e o "duro" dos Estados determinam concordâncias e discordâncias. Como entender a ação do Papa Francisco a partir de Moscou e de Pequim? O resultado é surpreendente, mesmo para os críticos do papa.
A reportagem é de Francesco Sisci e Francesco Strazzari, publicada no sítio Settimana News, 21-10-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há anos, a Rússia do presidente Vladimir Putin acompanha com alerta e preocupação a objetiva pressão demográfica e econômica chinesa sobre a sua Sibéria, pobre, subpovoada, mas rica em recursos. Moscou, portanto, apoiou uma espécie de ação de reequilíbrio para estender a influência russa, explorando as deficiências da China. O nordeste chinês é muito mais povoado e é economicamente mais desenvolvido do que a Sibéria, mas tem um ponto fraco: é "espiritualmente pobre", ou seja, não tem uma fé religiosa a que as pessoas possam aderir, e alguns se voltaram à sua antiga fé, pré-comunista, na Igreja Ortodoxa Russa.
Depois do fim dos anos 1970, com a queda do maoísmo, que tinha se tornado um credo semirreligioso, e a abordagem ultramaterialista ao crescimento e ao desenvolvimento econômico, a China foi uma espécie de semideserto espiritual. A maioria das pessoas se agarrou nos últimos anos a ideias semissupersticiosas tiradas do budismo ou do taoísmo, alguns aderiram a novas religiões como o Falun Gong, e houve uma explosão de crenças quase esquecidas como o cristianismo nas suas diversas conjugações e formas, ou o Islã.
Nesse ambiente, a Rússia, nos últimos anos, formou missionários chineses e russos nos seus seminários e os enviou ao nordeste da China para ajudar na redifusão da Ortodoxia russa. Além disso, Putin pressionou o governo chinês para obter um reconhecimento oficial diferente para a ortodoxia na China.
Por enquanto, o cristianismo ortodoxo está sob o guarda-chuva da Associação Patriótica Cristã, cujos membros são, em sua maioria, protestantes. Na China, existem associações oficiais nascidas depois da tomada do poder do Partido Comunista para organizar e ficar de olho nas principais religiões do país postas sob a tutela do Escritório para os Assuntos Religiosos. As religiões oficialmente reconhecidas são o budismo, o taoísmo, o Islã, o catolicismo e os "outros cristãos". Todas as associações, exceto a católica, reagrupam diversas escolas religiosas que não têm a mesma identidade. Por exemplo, os lamaístas e os zen-budistas são catalogados em um único grupo (budista), sufis e wahhabitas também (Islã), evangélicos e mórmons estão sob um único guarda-chuva (cristãos). Só os católicos têm uma associação exclusivamente para eles.
No fim dos anos 1990, os Falun Gong, inicialmente registrados como um grupo esportivo, insistiram com o governo para serem admitidos como uma nova associação sob a proteção do Escritório para os Assuntos Religiosos, separados dos budistas ou dos taoístas. O seu pedido foi rejeitado antes da repressão oficial ocorrida em 1999. A conclusão é simples: se às religiões que são "de casa" na China é negada a possibilidade de criar novas associações com uma identidade própria, para os ortodoxos russos isso é ainda mais difícil. No entanto, com um gesto significativo, o presidente chinês, Xi Jinping, aceitou se encontrar com patriarca russo Kirill em maio de 2015.
Além disso, se fosse permitido que a ortodoxia russa tivesse a sua própria associação, outras minorias minúsculas da ortodoxia grega presentes na China cairiam sob a jurisdição russa. Isso teria implicações internacionais, pois a China poderia confirmar a velha ambição russa de considerar a própria versão da ortodoxia como guia de toda a ortodoxia. Nos últimos meses, a Igreja Russa, que inclui cerca da metade da Ortodoxia mundial, decidiu não participar do Concílio pan-ortodoxo celebrado em junho, em Creta. O Concílio também era apoiado pela Igreja Católica de Roma. A Igreja Russa, cujo Patriarca Kirill encontrou-se pela primeira vez com o papa em fevereiro, em Cuba, tinha dado o seu acordo, anteriormente, em princípio, ao Concílio.
Na realidade, uma enorme rachadura atravessa a Igreja Ortodoxa. Uma parte dela se esforça para reconstruir os laços com Roma, como demonstrou o recente acordo sem precedentes sobre o primado e a sinodalidade assinado em Roma com algumas Igrejas ortodoxas no fim de setembro. Outra parte encontra na identidade da sua Igreja parte da própria identidade nacional. Aqui, as fronteiras entre religião e política se tornar mais turvos. A luta na Ucrânia entre ucranianos e russos também passa por uma divisão religiosa: ucranianos católicos, e russos ortodoxos. O mesmo vale na Geórgia, um país que se sente ameaçado por Moscou. A ortodoxia georgiana faz parte da cola nacional contra Moscou. Na Ucrânia, os pró-russos sentem o papa próximo dos ucranianos católicos; na Geórgia, os ortodoxos georgianos, talvez, sentem o papa próximo de Moscou, depois do encontro com Kirill.
Os esforços do papa para ir ao encontro de todo o amplo espectro dos cristãos colidem com os diversos programas políticos nos quais os vários líderes usam a religião local para os seus objetivos políticos específicos. Os apelos papais à unidade dos cristãos, que tentam superar as diferenças teológicas, incompreensíveis para a maioria dos crentes, se chocam com a realidade do uso político da religião. As religiões são utilizadas desde sempre para encobrir objetivos políticos, que também podem ser legítimos.
Aqui há um problema objetivo que pode incomodar Putin. O papa se dirige aos protestantes, a todos os ortodoxos, aos muçulmanos e até mesmo aos chineses não monoteístas, na tentativa política objetiva de colocar a religião a serviço da paz. Mas, como vimos com a China, a religião é um instrumento importante nas mãos de Putin para equilibrar um vizinho em crescimento. Além disso, na Rússia, já sem a cola ideológica do comunismo, a religião ortodoxa tornou-se um vínculo nacional ainda mais forte. A ortodoxia russa tornou-se parte da sua nova identidade nacional e pode ser usada contra os inimigos, sejam eles os rebeldes islâmicos na Chechênia ou os georgianos ortodoxos. Os apelos do pontífice à unidade dos cristãos e das religiões podem, de fato, ajudar a esvaziar o uso político da religião por uma causa específica.
Além disso, os líderes políticos acostumados a pensar a religião em termos políticos puros podem se perguntar se o objetivo político do papa pela paz é um fim em si mesmo ou se, ao contrário, se trata de um esforço instrumental para alcançar outros objetivos diferentes. A Igreja Católica se manteve fora das guerras religiosas que alguns extremistas muçulmanos querem travar contra o resto do Islã e do cristianismo. Mas alguns fanáticos entre os ortodoxos e os evangélicos radicais estão ansiosos por uma guerra contra o Islã como tal. Então, assim como a voz do papa encontra ouvidos no coração dos crentes ortodoxos comuns, a voz dos fanáticos ortodoxos também pode alcançar pequenas alas da Igreja Católica que acusam o papa de renunciar ao cristianismo como identidade cultural.
Na realidade, o novo poder "suave" da Igreja deriva de uma situação geral em que os Estados Unidos não foram capazes de se tornar a superpotência onipotente e total, apesar de ainda ser a única superpotência. Mas isso também contou com a contribuição da capacidade do papa de navegar entre muitos projetos políticos conflitantes de Estados e de partidos em todo o mundo, a fim de fazer a paz avançar.
Esse esforço é a missão que a Igreja exerce desde sempre, mas agora é mais forte do que no passado, porque não se baseia no interesse de um Estado Pontifício para defender, mas é também mais fraco porque não é sustentado por qualquer poder real. A nova leveza do papado, portanto, pode envolver vários interesses nacionais, políticos e econômicos que, de vez em quando, mostram-se interessados na paz.
Embora a Igreja não seja monolítica e o papa não domine 1,2 bilhão de fiéis totalmente subservientes à sua vontade, muitos movimentos da Igreja estão destinados a ser interpretados de muitas maneiras para fins políticos. Isso ocorre, direta ou indiretamente por parte de fiéis individuais ou de poderes individuais. Além disso, hoje, há mais liberdade de expressão, e o papa deseja que um número cada vez maior de pessoas se unam à Igreja Católica, mas sem provocar mais divisões. O papa parece utilizar a diferença de opiniões que podem dizer respeito a ele para atrair mais pessoas para a Igreja, em vez de ficar abalado por essas críticas, afastando as pessoas da Igreja. Por fim, a geopolítica "dura" sempre é sofrida por parte da Igreja Católica (também praticada no passado), mas hoje tais impulsos são a prova do novo poder "leve" da Igreja.
O Vaticano sofreu muitas vezes no passado por causa dos condicionamentos de diversas potências, e a Companhia de Jesus, da qual este papa provém, foi suprimida em 1773 por causa de pressões políticas. Na época, a França era a grande potência que defendia a Igreja em um momento em que os outros Estados católicos estavam em declínio (Espanha e Áustria), e outros Estados não católicos (Inglaterra, Prússia, Rússia) cresciam. A França era extremamente desconfiada em relação ao poder e à influência dos jesuítas e, durante anos, pressionou pela sua dissolução. Por causa de tal dissolução, a famosa missão à China, que tinha sido tão bem-sucedida, foi retirada, mas talvez foi ainda mais significativo que a penetração dos jesuítas na Europa não católica foi bloqueada.
Traduzindo a cultura chinesa na Europa, os jesuítas retornaram em países que haviam rompido com o catolicismo depois da Reforma Protestante. A Inglaterra protestante adotou o seu Serviço Civil modelado na experiência dos mandarins chineses como relatado pelos jesuítas; Gottfried Leibnitz, filósofo da corte da Prússia, mudou a ciência moderna e o pensamento ao estudar o Yi Jing, traduzido, mais uma vez, pelos jesuítas. Ou seja, os jesuítas usaram a cultura chinesa para preencher a lacuna no cristianismo europeu da época.
Mas esse esforço efetivamente esmagava o papel fundamental que a França tinha adquirido para si mesma na Europa como protetora da Igreja. Os jesuítas, com a sua ação, pareciam dizer: não precisamos da proteção de um Estado, a nossa diplomacia pode alargar o porte da Santa Sé sem estar enganchada em um Estado individual. Nisso, os jesuítas se inspiravam em um momento histórico em que Roma havia emergido depois de séculos como centro de fé, recusando constantemente a proteção do imperador bizantino, que presidia a ortodoxia da fé, como o presidente Putin gostaria de fazer hoje, controlando a "sua" Igreja Ortodoxa.
Agora, o papa está tentando se manter de fora da política das várias potências. Ele busca se desvencilhar delas e, portanto, tenta estabelecer um papel renovado da Igreja que leve à paz e não ao poder. Desse modo, ele está indo além das suas "fronteiras tradicionais" na Europa e na América.
Alguns dos fiéis católicos que se opõem ao papa agora talvez não conseguem ver esse grande desígnio e, conscientes ou não, curvam-se aos interesses até mesmo legítimos dos Estados individuais. Tudo isso certamente é legítimo, mas não é o motivo de fundo que guia a Igreja.
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Putin, Xi e a paz de Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU