Por: Vitor Necchi | 14 Setembro 2016
Há um fenômeno em curso no ambiente rural que se assemelha ao que aconteceu com a indústria brasileira a partir do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e durante a ditadura instaurada em 1964. O capital das grandes corporações internacionais vem se associando aos latifúndios tradicionais, reproduzindo um processo similar ao que ocorreu no passado no setor industrial. No cenário atual, para se pensar políticas públicas em um contexto de crise, é preciso ver o quanto a estrutura agrária absorve o capital especulativo. A observação foi feita na tarde desta terça-feira (13/9) pelo professor Joaci de Sousa Cunha, da Universidade Católica do Salvador (UCSal), durante a conferência Financeirização e efeitos sobre a estrutura agrária brasileira – as políticas públicas para a reforma agrária e povos tradicionais, proferida durante o IV Colóquio Internacional IHU - Políticas Públicas, Financeirização e Crise Sistêmica, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em São Leopoldo.
Cunha é advogado, doutor em História e assessor do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), entidade jesuíta de Salvador (BA) que busca contribuir para a superação da miséria e da exclusão social por meio da atuação em regiões do Nordeste marcadas por situações históricas de pobreza e de dominação. É a partir de sua atuação junto ao campo social que tenta entender a crise sistêmica e como ela afeta as políticas agrárias. Conforme Cunha, o momento é difícil, o jogo da luta social ainda precisa ser jogado “e os camponeses têm muita experiência e garra”.
O professor lembrou que as sucessivas reformas neoliberais em curso desde os anos 1990 produziram um “contínuo processo de enfraquecimento das políticas públicas essenciais, elas próprias objeto de um permanente processo de privatização e ou precarização”. Atualmente, há 23 projetos tramitando no Congresso Nacional que são perigosos em relação aos interesses dos camponeses. A legislação está sendo modificada para favorecer a ampliação dos latifúndios e para expulsar camponeses dos seus meios de produção.
Este não é um processo exclusivo do Brasil. A mesma tendência pode ser observada em países como Moçambique – onde o cultivo da soja cresce rapidamente, tirando espaço dos pequenos produtores – e China – nas últimas décadas, 300 milhões de agricultores chineses foram transformados em operários por causa da industrialização acelerada. No Brasil, a resposta a esse cenário é a ativação das agendas de movimentos sociais, como o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e as federações de agricultores. “Os atores precisam reagir”, salienta Cunha.
A situação se revela preocupante se forem observados alguns dados que dimensionam o papel da agricultura familiar no país: ela responde por 70% da produção de alimentos, emprega 74% da força de trabalho do campo em 24% das terras agricultáveis e, mesmo assim, recebe apenas 14% do subsidiado crédito agrícola nacional. “Seguramente merecia uma atenção maior”, defende Cunha. O professor salienta que houve alguns avanços nos últimos governos, mas foram segmentados e localizados.
Por outro lado, há números que expressam a grandeza do agronegócio, voltado principalmente para o mercado externo. Cunha destacou que sete dos dez principais produtos da pauta brasileira de exportações provêm deste segmento e, no primeiro semestre de 2015, geraram US$ 28,6 bilhões em receita, representando 30,3% do total exportado pelo país. “No conjunto, só o agronegócio representa 45,8% das exportações no período.” Conforme o professor, “as exportações somadas do agronegócio, mineração e petróleo bruto representam cerca de 60% da pauta brasileira, confirmando a hegemonia econômica dos capitais que diretamente exploram a natureza”.
O objetivo do colóquio desenvolvido pelo IHU é analisar transdisciplinarmente a construção e efetivação das políticas públicas no Brasil, tendo como referência a financeirização e a crise sistêmica. Imbuído deste propósito, Cunha apresentou dados e cenários que permitiram problematizar a situação vivida nos dias atuais pelos pequenos agricultores e pelos remanescentes de quilombolas que vivem no município de Vitória da Conquista e no sul da Bahia, regiões onde a CEAS atua. Sua intenção era discutir as interfaces da crise estrutural do capital com a estrutura latifundiária no Brasil. O resultado da articulação entre o capital financeiro especulativo e o empresariado rural focado na exportação e na apropriação dos recursos ambientais do país é o desrespeito às políticas públicas sociais direcionadas aos trabalhadores do campo, que vêm enfrentando uma crescente restrição aos seus direitos.
Cunha afirma que o Estado se omitiu na universalização das políticas públicas, processo verificado nos últimos governos, desde Fernando Henrique Cardoso, passando por Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Ele se revela surpreso com o fato de que isso ocorreu inclusive em governos nascidos de movimentos populares, que aplicaram programas contrários aos camponeses. “Mesmo reconhecendo uma série de programas e políticas que favoreceram os camponeses, agora ameaçadas, é inevitável não se questionar como os governos petistas, tendo os pequenos agricultores camponeses, ao lado dos assalariados urbanos, como sua base social originária, não efetivaram os direitos consagrados pela Constituição Federal aos povos do campo”, pondera. Cunha se mostra pessimista, ao projetar um horizonte catastrófico que o século 21 reserva. “O crescimento da concentração fundiária é avassalador”, constata.
Todos os remanescentes de quilombolas estão ameaçados pela expansão do latifúndio, garante Cunha. O agravamento da situação atinge outros processos, como as políticas de educação básica para o campo. Ele relatou que 36.596 escolas rurais fecharam entre 2003 e 2014. Os dados do Censo Escolar indicam que a situação se agrava a cada ano. Entre 2013 e 2014, encerraram as atividades 4.084 escolas, o que equivale a mais de 11 por dia. “O ritmo de fechamento das escolas supera em muito o da redução da população rural, tornando-se um fator de êxodo dessa população”, alerta.
A fragilização institucional das políticas públicas voltadas aos camponeses vai além. Cunha denuncia o desmonte da assistência técnica e da extensão rural, processos fundamentais para o desenvolvimento da atividade agrícola e que foram completamente sucateados ou terceirizados, gerando serviços descontínuos e precários. “Há um cerco aos povos do campo, de modo que as políticas públicas chegam a um contingente muito pequeno”, avalia.
A intenção de Cunha era tornar claro o quanto a agropecuária empresarial e a mineração influenciam as políticas públicas voltadas para o setor agropecuário, que compartilha “com os bancos e as corporações ligadas à construção pesada e ao petróleo, a condição de atores hegemônicos da economia brasileira”. A consequência foi inevitável: na medida em que cresceu a importância do segmento de agro-minero-exportação, o governo se tornou dependente do capital que explora diretamente a natureza. Avançando na análise, se percebe por que os últimos governos se comportaram de maneira tímida na garantia de direitos aos povos do campo.
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Articulação entre o capital financeiro especulativo e o latifúndio desrespeita políticas públicas direcionadas aos trabalhadores do campo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU