19 Julho 2016
Os incidentes recentes mostram, mais uma vez, como os tradicionalistas católicos continuam subestimando o Papa Francisco. Muitos deles realmente pensavam que poderiam torcer o seu braço. Infelizmente para eles, não prestaram atenção suficiente a como o papa lida com os políticos que tentaram essa mesma tática.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio Global Pulse, 18-07-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A partir do momento em que o Papa Francisco foi eleito, no dia 13 de março de 2013, ficou claro que um enorme fosso o separava dos chamados tradicionalistas católicos – sobre a liturgia, a eclesiologia, o ecumenismo, a teologia moral e a doutrina social da Igreja.
Apesar dos seus constantes ataques contra ele, o papa mostrou uma contenção notável em relação aos tradicionalistas – e não apenas porque essa é a boa política da Igreja, mas porque ele não gosta de conflitos.
"Eu não corto cabeças", disse ele há algumas semanas em entrevista ao jornal argentino La Nación. "Esse nunca foi meu estilo. Eu nunca gostei de fazer isso", insistiu.
De fato, ficamos quase acostumados com a ideia de que Francisco e os tradicionalistas estão praticamente viajando em dois caminhos separados e paralelos em uma espécie de acordo tácito "viva e deixe viver". Mas dois desenvolvimentos recentes indicam algo importante sobre o papa e as várias formas do tradicionalismo católico.
O primeiro ocorreu no dia 29 de junho, quando a cismática Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) emitiu um comunicado que pisou os freios de qualquer reconciliação esperada com Roma. Em um texto cuidadosamente redigido, o bispo Bernard Fellay – líder do movimento anti-Vaticano II fundado pelo falecido arcebispo Marcel Lefebvre (1905-1991) – não fechou completamente a porta para futuros desdobramentos na relação da FFSSPX com Roma. Mas reconheceu que havia uma grande distância entre os chamados lefebvrianos e a Igreja de Francisco, embora, indiretamente, também admitisse que havia divisões dentro da sua fraternidade.
Os comunicados de fim de junho já se tornaram quase uma tradição com a FSSPX. Depois de cortejar Bento XVI durante anos, os três bispos da FSSPX (Fellay, Bernard Tissier de Mallerais e Alfonso de Gallareta) divulgaram um comunicado várias semanas depois que o ex-papa renunciou apontando as falhas em um famoso discurso que ele proferiu sobre as "duas hermenêuticas" do Vaticano II.
O segundo desenvolvimento ocorreu no dia 5 de julho, quando o cardeal Robert Sarah (prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, nomeado por Francisco em novembro de 2014), durante uma palestra em Londres, convidou todos os padres a começarem a celebrar a missa ad orientem (o estilo característico pré-Vaticano II, com o padre de costas para o povo), a partir do próximo Advento.
Isso causou uma reação por parte de muitos católicos – incluindo teólogos, bispos e até cardeais – em todo o mundo. Mas a reação mais visível veio do Papa Francisco, que, em uma declaração sem precedentes divulgada no dia 11 de julho por meio da Sala de Imprensa da Santa Sé, desmentiu o apelo do cardeal Sarah e o seu apoio a uma "reforma da reforma litúrgica" (uma expressão que a declaração da Santa Sé diz que, "às vezes, foi fonte de equívocos").
Esses dois incidentes poderiam ser vistos apenas como uma breve série de pequenos eventos. Mas eu acredito que eles desempenham um papel maior na cronologia do pontificado de Francisco.
Acima de tudo, o comunicado do dia 11 de julho da Sala de Imprensa é a declaração mais direta e inequívoca do papa até hoje – para aqueles que não captam a mensagem a partir de tudo o que ele faz, incluindo o seu estilo litúrgico – sobre a reforma litúrgica pós-Vaticano II e as muitas tentativas de questionar a teologia e a eclesiologia da constituição do Concílio sobre a liturgia, Sacrosanctum concilium.
Até agora, Francisco não focou a liturgia, ao menos em seus documentos. Por exemplo, no seu documento fundacional, a exortação Evangelii gaudium, de 2013, ele cita muitos documentos do Vaticano II, mas não a sua constituição litúrgica. No entanto, a iniciativa do cardeal Sarah o forçou a reagir energicamente.
A declaração deixa claro que Francisco pode conviver com o tradicionalismo litúrgico, mas "a forma ‘extraordinária’, que foi permitida pelo Papa Bento XVI para as finalidades e com as modalidades por ele explicadas no motu proprio Summorum Pontificum, não deve tomar o lugar da ‘ordinária’".
O exagero do cardeal africano provocou a reação de Francisco, produzindo um claro retrocesso na agenda dos defensores da missa pré-Vaticano II – tanto aqueles que veem como possível uma convivência pacífica da liturgia reformada e da Missa Antiga no mesmo nível, quanto aqueles que trabalham ativamente para ver revogada a reforma litúrgica pós-conciliar.
(Note-se que, na verdade, essa foi a segunda vez que o cardeal Sarah desafiou Francisco. Levou 13 meses – de dezembro de 2014 a janeiro 2016 – para que o seu escritório implementasse a solicitação do papa de que as rubricas litúrgicas oficiais fossem mudadas para que as mulheres pudessem ser incluídas no rito do lava-pés da Quinta-feira Santa.)
Como o liturgista e teólogo italiano Andrea Grillo escreveu, "o caminho conciliar pode ser retomado".
Esse é um momento significativo não apenas para a liturgia (e é por isso que qualquer comparação entre o tradicionalismo litúrgico católico, de um lado, e o tradicionalismo litúrgico das Igrejas orientais católicas e das Igrejas ortodoxas orientais, de outro, não explica nada do que está acontecendo).
Na realidade, os incidentes recentes mostram, mais uma vez, como os tradicionalistas católicos continuam subestimando o Papa Francisco. Muitos deles realmente pensavam que poderiam torcer o seu braço. Infelizmente para eles, não prestaram atenção suficiente a como o papa lida com os políticos que tentaram essa mesma tática.
E a contínua incapacidade deles de lerem a mente de tal papa do Vaticano II fala muito sobre a relação entre Francisco e todos aqueles que estão tentando "construir pontes" (digamos assim) entre a Igreja Católica do Vaticano II e o ultra-tradicionalismo católico (acima de tudo, a comissão vaticana Ecclesia Dei). Paradoxalmente, os cismáticos extremos da FFSSPX são os tradicionalistas que mais bem entendem Francisco.
Mais importante, essas últimas semanas deixam claro que a posição da causa tradicionalista mudou significativamente. Durante o fim do pontificado de João Paulo II e durante todo o pontificado de Bento XVI, questões próximas do coração dos tradicionalistas haviam se tornado centrais na agenda de algumas autoridades da Cúria Romana e na intelligentsia católica europeia e de língua inglesa – como observou há vários anos o historiador italiano católico Giovanni Miccoli.
O simples fato é que, para Francisco, a agenda dos tradicionalistas não é mais uma preocupação central. "É central apenas para as biografias dos seus advogados", mas não para o futuro da Igreja.
Esses eventos recentes não significam que os tradicionalistas e a sua agenda vão ser varridos ou vão desaparecer do horizonte católico romano. O papa não tem nenhum interesse em fazer isso. Eles significam apenas que, para Francisco, a Igreja é uma grande tenda. E a reforma litúrgica do Vaticano II (uso do vernáculo, inculturação, adaptação etc.) é uma das garantias que lhe permite ser uma grande tenda e uma Igreja missionária no mundo global. Isso é algo que se perdeu nas "guerras de altar" desses últimos muitos anos.
Vale a pena lembrar que, durante a última década, a Cúria Romana e alguns círculos católicos (não apenas a blogosfera, mas também universidades, publicações acadêmicas e revistas) mostraram uma simpatia particular e uma atitude irênica em relação às questões dos tradicionalistas (na liturgia e não só).
Esse irenismo, ao menos nas mentes daqueles que tinham as melhores intenções, deveria deixar claro que a Igreja Católica estava se tornando uma grande tenda. Mas, em vez disso, o resultado de dez anos (pelo menos) desse irenismo em relação ao tradicionalismo foi que a agenda exclusivista dos tradicionalistas se tornou o manifesto teológica para uma Igreja menor e mais pura. E, a longo prazo, deveria substituir a Igreja Católica do Vaticano II.
Nesse sentido, o pontificado do Papa Francisco, especialmente nessas últimas semanas, tem sido um momento de verdade.
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Um enorme fosso separa o Papa Francisco e os tradicionalistas litúrgicos. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU